Limite Penal

Memória não é Polaroid: precisamos falar sobre reconhecimentos criminais

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

7 de novembro de 2014, 7h01

Spacca
A contaminação por falsas memórias é algo ainda pouco estudado no sistema brasileiro. Uma pequena entrevista com profissionais demonstra a ignorância sobre algo que não pode ser desconhecido. No campo do reconhecimento pessoal (Código de Processo Penal, artigo 226) opera-se a partir da noção ultrapassada de Verdade Real, ocasionando, com essa prática, a desconsideração das formalidades essenciais à validade do reconhecimento. Aliás, reconhecimento para o CPP é somente o pessoal. Com o desenvolvimento tecnológico, contudo, é prática comum é a utilização do dito “reconhecimento fotográfico”. A regular produção do reconhecimento policial é de fundamental importância, dado que implica e condiciona o êxito da autoria da conduta apurada.

Não raro às vítimas, sem que tenha sido colhido formalmente seu depoimento e a descrição do autor e suas características, é apresentado o famoso “álbum de fotografias” ou mesmo as “imagens de computador” dos agentes que já passaram por investigações policiais ou que os policias possuem a intuição da autoria. Há, com isso, a apresentação do conjunto dos agentes e, muitas vezes, instigação pelo reconhecimento. Segue-se a lavratura do “auto de reconhecimento fotográfico” e, não raro, o pedido de prisão e/ou indiciamento. Lembre-se que a produção de prova processual deve atender aos requisitos legais e, como tal, a exigência de diversos suspeitos, com características similares, é condição de possibilidade à sua validade. Não se trata de reconhecer a nulidade posterior e sim a ilegalidade de sua produção, a saber, o ato de reconhecimento se deu ao arrepio da regra procedimental. Daí em diante fixa-se a imagem do agente (falsa memória) e, assim, o conteúdo está contaminado. O reconhecimento fotográfico não é previsto em lei e se trata, no fundo, do “jeitinho brasileiro” aplicado ao processo penal. Uma das modalidades de doping processual.

O reconhecimento prévio por fotografia induz o posterior reconhecimento pessoal, através do “efeito perseverança” já apontado pela teoria da dissonância cognitiva, contaminando-o completamente. Não se trata mais de um reconhecimento confiável. Situação similar ocorre quando temos a prévia divulgação, pela mídia, de fotos do suspeito. São todos fatores ‘poluidores’ capazes de gerar falsos reconhecimentos. Também devemos considerar as expectativas da testemunha/vítima, pois as pessoas tendem a ver e ouvir aquilo que querem ver e ouvir, daí porque os estereótipos culturais (cor, classe social, sexo etc.) têm uma grande influência na percepção dos delitos, fazendo com que as vítimas/testemunhas tenham uma tendência de reconhecer em função desses estereótipos (exemplo típico ocorre nos crimes patrimoniais com violência, em que a raça e perfil socioeconômico são estruturantes de um estigma). Por fim não se pode desconsiderar que no imaginário coletivo, o que é bonito, é bom. Isso significa que tendemos a reconhecer como criminoso a “cara mais feia”, mais agressiva, pois um rosto bonito e atraente possui mais traços de uma conduta socialmente desejável do que uma cara feia… [1]

Embora boa parte da doutrina e jurisprudência entenda como “mera irregularidade”, cuja razão subjacente, claro, é o fundamento da Verdade Real e o desconhecimento das artimanhas da memória, não é possível negociar com o devido processo legal substancial[2]. Há limites na investigação e no uso que se possa realizar de elementos materiais que restam excluídos em face de sua má formação. O DNA da prova resta manipulado em nome da eficiência processual penal.

Dentre diversos autores, nos limites do artigo, cabe citar Antônio Damásio: “As imagens não são armazenadas sob a forma de fotografias fac-similares de coisas, de acontecimentos, de palavras ou de frases. O cérebro não arquiva fotografias Polaroid de pessoas, objetos, paisagens; nem armazena fitas magnéticas com música e fala; não armazena filmes de cenas de nossa vida; nem retém cartões com ‘deixas’ ou mensagens de teleprompter do tipo daquelas que ajudam os políticos a ganhar a vida. (….) Todos possuímos provas concretas de que sempre que recordamos um dado objeto, um rosto ou uma cena, não obtemos uma reprodução exata, mas antes uma interpretação, uma nova versão reconstruída do original. Mais ainda, à media que a idade e experiência se modificam, as versões da mesma coisa evoluem. (…) Essas imagens evocadas tendem a ser retidas na consciência apenas de forma passageira e, embora possam parecer boas réplicas, são frequentemente imprecisas ou incompletas.”[3]

A questão se agrava nos casos em que houve uso de arma. A sequência visual das pessoas em cenas traumáticas é diversa da acontecida em situações normais, dado que a fixação dos olhos se dá justamente no que lhe é estranho, causador de temor e medo. Um roubo praticado com arma faz com a vítima tenha em seu campo visual um objeto raro e que convoca a percepção, a saber, o movimento ocular se direciona na arma, a qual passa a ser objeto direto da percepção. Não raro a vítima consegue descrever com rigor a cor e os detalhes da arma utilizada, tendo pouca capacidade perceptiva dos demais detalhes da cena (local, roupa e rosto do acusado). Esse fenômeno foi estudado pelos autores de psicologia e denominado como fator “foco da arma”, pelo qual o objeto raro (arma) converge a atenção da vítima e faz com que em nome da sobrevivência a sequência visual preocupe-se basicamente com seu movimento (leia o artigo de Steblay). Pode acontecer que em condutas criminais mais demoradas, em que tenha havido cárcere da vítima, o campo visual também seja desviado para o rosto do agente e o ambiente, mas em condutas breves, de curta duração, a tendência seja não saber, de fato, detalhes do rosto e características específicas do agressor (clique aqui para ler mais). Entretanto, depois, por inclusão de novas informações (pós-crime), a vítima forme “falsas memórias” (veja o vídeo), quer por sugestão, quer naturalmente. O que se pode dizer é que sem outras fontes independentes de reconhecimento (apreensão de objetos, filmagens claras, digitais, testemunhas, etc.) o mero reconhecimento se fragiliza. 

A questão é saber se é possível condenar alguém a uma pena significativa com uma prova duvidosa em face dos desenvolvimentos da psicologia — especialmente da psicologia cognitiva. A maneira como se valora, ainda, a prova, no processo penal brasileiro é medieval, como medievais são os juristas que não conseguem se atualizar. A qualidade da prova é algo que não pode ser superado com meras regras de bolso[4], como por exemplo, o “a priori” de que “o depoimento da vítima ganha forte valor no contexto probatório”, uma vez que essa primeira intuição precisa se confirmar por outros elementos probatórios diante de sua reconhecida fragilidade. Mesmo a confirmação judicial que aparenta legitimar a ilegalidade encontra-se contaminada. E o desespero maior é que a vítima confirma seu reconhecimento e não existe meio de, após a contaminação, a convencer do contrário.

É o caso de Jennifer Thompson. Por volta das três da madrugada teve a casa invadida e foi estuprada com uma faca no pescoço, tendo a vítima se focado no rosto do agressor para identifica-lo posteriormente, caso sobrevivesse. Saindo correndo pela porta conseguiu se livrar do estuprador e foi ao hospital, bem assim à polícia, elaborando um retrato falado. No dia seguinte Ronald Cotton, que tinha ficha policial (por invasão e agressão sexual) foi localizado, reconhecido por foto e depois pessoalmente. Em julgamento o reconhecimento foi confirmado. Cotton foi condenado ao cumprimento de prisão perpétua e mais cinquenta anos. Já na prisão, Cotton conheceu um homem parecido com sua descrição chamado Bobby Pool, também condenado por estupro e invasão. Ciente de sua inocência, Cotton pediu um novo reconhecimento, também na presença de Pool, tendo Jennifer, com a falsa memória fixada, novamente, afirmado ser Cotton o autor da agressão. Após Cotton estar sete anos preso, com os avanços do exame de DNA, foram feitos exames e se verificou que o verdadeiro autor do crime era Pool. Mlodinow afirma: “Estudos experimentais nos quais pessoas são expostas a falsos crimes sugerem que, quando o verdadeiro culpado não está presente, mais da metade das testemunhas faz exatamente o que Jennifer Thompson: escolhem alguém de qualquer forma, selecionando a pessoa que mais se aproxima da lembrança do criminoso.” [5]

Claro que não se exclui a fonte independente e/ou a descoberta inevitável, as quais, todavia, não podem decorrer do reconhecimento fotográfico, uma vez que estranho à regularidade processual. A desconformidade procedimental no nascedouro da investigação impede que o fair play se instaure. Deveria significar, pois, a exclusão dos efeitos processuais de ato investigatório realizado ao arrepio da norma processual por ser o fruto da árvore envenenada. Esse é o preço pelo jogo democrático no processo penal. O resto é Verdade Real e In dubio pro Hell.


[1] LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 11ª edição. São Paulo, Saraiva, 2014, p. 694.
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
[3] DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. Trad. Dora Vicente e Georgina Segurado. São Paulo: Cia das Letras, 2012, p. 105-106.
[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre; KHALED JR, Salah. In dubio pro Hell. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
[5]  MLODINOW, Leonard. Subliminar. Como o inconsciente influencia nossas vidas. Trad. Claudio Carina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2013, p. 66-67.

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