Reputação ilibada

Falta ao Senado cumprir seu papel na escolha de ministros do Supremo

Autor

  • Adilson Abreu Dallari

    é professor titular de Direito Administrativo pela Faculdade de Direito da PUC/SP; membro do Conselho Científico da Sociedade Brasileira de Direito Público (SBDP); membro do Conselho Superior de Assuntos Jurídicos e Legislativos da FIESP; membro do Núcleo de Altos Temas (NAT) do SECOVI; membro do Conselho Superior de Direito da FECOMÉRCIO; membro do Conselho Consultivo da Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico (ABRADADE); membro do Conselho Superior de Orientação  do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Administrativo Financeiro e Tributário (IBEDAFT);  membro do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP); consultor jurídico.

7 de novembro de 2014, 13h23

A história tem mostrado que a composição da Suprema Corte, tanto nos Estados Unidos da América, quanto no Brasil, tem enorme repercussão no cenário institucional e no equilíbrio de poderes. Por essa razão, é extremamente importante alguma meditação sobre o processo de escolha dos ministros.

O modelo brasileiro segue de perto o processo adotado pela Constituição norte americana. O artigo 101 da Constituição Federal confere ao presidente da República o poder de escolher ministros “dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada”. Porém, a nomeação do escolhido, nos termos do parágrafo único do mesmo artigo, somente pode ser feita “depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado Federal”.

Trata-se, portanto, de um processo que envolve dois Poderes: o Executivo tem liberdade para escolher; mas não pode nomear sem a concordância do Legislativo. Neste ponto, cabe perguntar: qual o papel do Senado? O que deve ser aferido pelo Senado? A resposta é simples: verificar se o indicado preenche os requisitos para a nomeação, quais sejam: estar dentro da faixa etária e, efetivamente, ser detentor de notável saber jurídico e reputação ilibada.

É certo e inquestionável, portanto, que o presidente não pode indicar qualquer pessoa, mas, sim, apenas, quem tenha efetiva reputação ilibada e evidente notável saber jurídico. Essas expressões são vagas, mas não são imprecisas, não são destituídas de sentido perfeitamente identificável. O adjetivo notável, aplicado ao saber jurídico, indica que não basta o título de bacharel em direito, mas, sim, que o indicado deve ter um elevado conceito no meio jurídico, por sua trajetória acadêmica e/ou de trabalho, que o identifique como figura exponencial no mundo do direito. A reputação ilibada, nesse contexto, não é aferida apenas pela certidão negativa de antecedentes, mas, sim, deve ser caracterizada por uma vida profissional marcada pela ética, pelo equilíbrio e pela respeitabilidade no meio jurídico.

Pelo menos, é perfeitamente possível identificar quem tem reputação duvidosa, na vida prática, na trajetória política ou profissional e, principalmente pelas ideias que já defendeu, ou posições que assumiu, ou atitudes que adotou, com relação a pontos essenciais para o reconhecimento da probidade, na vida social, econômica e política. Da mesma forma, não pode ser havido como detentor de notável saber jurídico, para o fim de nomeação como ministro do STF, quem teve uma atividade jurídica irrelevante, ou, pior que isso, quem já se posicionou contra os fundamentos da República e do Estado Democrático de Direito, como a soberania nacional, o pluralismo político e o sistema representativo. Não basta, para ser ministro, que o indicado tenha demonstrado uma fidelidade canina ao governo.

Fique claro que isso nada tem a ver com a simples filiação partidária. Por exemplo, o ministro Carlos Britto era militante do PT, mas tinha, sem dúvida alguma, reputação ilibada e notório saber, o que lhe permitiu atuar com independência e colocar em pauta o julgamento do mensalão, sem o que a maioria dos crimes seria  nulificada pela prescrição. Sem Carlos Britto, não teria havido Joaquim Barbosa. Ambos foram nomeados no governo do PT, mas nenhum dos dois era fundamentalista, e ambos preenchiam os requisitos constitucionais.

Nada existe de errado na disciplina constitucional do processo de nomeação de ministro do STF. O grande problema é que, ao contrário do Senado norte americano, que faz uma severa sabatina com o indicado e já reprovou diversos postulantes, no Brasil, até agora, o Senado não cumpriu seu dever de apurar as efetivas e concretas condições do indicado.  Cabe lembrar que, na esfera pública, toda competência é, ao mesmo tempo, um poder e um dever. No caso, o Senado sempre usou o seu poder como uma prerrogativa pura, arbitrária, sem pautas ou finalidade, mas, na verdade, cada senador tem, perante o povo que o elegeu, o dever de fazer com que a Constituição Federal seja cumprida, para que o cargo de ministro da Suprema Corte seja ocupado por alguém digno desse posto e qualificado para exercê-lo.

Como suprir essa indesculpável e deletéria omissão do Senado? Cabe à cidadania, aos grupos intermediários da sociedade, exigir que o Senado cumpra o seu dever, examinando, criteriosa e cuidadosamente, a vida pregressa do indicado. A oportunidade é agora, pois há uma vaga a ser preenchida e o artigo 383 do Regimento Interno do Senado, em sua redação atual (dada pela Resolução 41/2013), determina que a aprovação de qualquer autoridade indicada seja feita com observância de um processo, que começa pela leitura, em plenário, da mensagem com a indicação, que deverá estar acompanhada de amplos esclarecimentos sobre o candidato, inclusive um “curriculum vitae” , do qual deve constar as atividades profissionais exercidas pelo indicado, com a discriminação dos referidos períodos e, até mesmo, a relação das publicações de sua autoria, com as referências bibliográficas que permitam sua recuperação.

Vale dizer: a arguição não mais poderá ser uma fantasia; uma simples troca de elogios para futura cobrança. A arguição deverá ser séria, feita com responsabilidade e ponderação, para que não se transforme numa “desconstrução” do indicado. É perfeitamente possível que se faça um exame criterioso, pois a maturidade do senadores milita nesse sentido.

Não há desenvolvimento econômico e social sem que se tenha segurança jurídica. E jamais será possível ter segurança jurídica se o STF for integrado por pessoas sem qualificação, influenciáveis ou, até mesmo comprometidas.

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