Antecedentes criminais

Princípio da privacidade deve prevalecer em processos seletivos

Autor

  • Gustavo Filipe Barbosa Garcia

    é livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito pela Universidad de Sevilla.

5 de novembro de 2014, 7h37

Discute-se a respeito da licitude da conduta do empregador de exigir e solicitar certidão de antecedentes criminais para a admissão do empregado.

A Constituição da República, no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea b, determina ser assegurada a todos, independentemente do pagamento de taxas, a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal.

Ainda a respeito do tema em estudo, o artigo 5º, inciso XIV, assegura a todos o acesso à informação.

A consulta e exigência de certidão de antecedentes criminais, pelo empregador, assim, decorrem dos mencionados direitos fundamentais.

Não obstante, a Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, inciso X, dispõe que são invioláveis a intimidade e a vida privada das pessoas.

Além disso, integram os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º, inciso IV, da CRFB/1988).

A discriminação é, portanto, vedada, o que também se confirma pelo artigo 5º, inciso XLI, da Constituição da República, ao prever que a lei deve punir qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais.

O artigo 7º, nos incisos XXX, XXXI e XXXII, da Constituição Federal de 1988, apresenta disposições pertinentes ao Direito do Trabalho fundadas na vedação de discriminação.

A Convenção 111 da OIT, de 1959, aprovada pelo Brasil e promulgada pelo Decreto 62.150/1968, trata da discriminação em matéria de emprego e profissão.

A discriminação, ao contrariar o princípio da igualdade, significa o preconceito exteriorizado pela pessoa, grupo, comunidade ou sociedade, representando uma distinção, exclusão ou preferência infundada, ou seja, não justificável[1].

A Lei 9.029/1995, no artigo 1º, também proíbe a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso a relação de emprego, ou sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar ou idade (ressalvadas, neste caso, as hipóteses de proteção ao menor, previstas no artigo 7º, inciso XXXIII, da Constituição Federal de 1988).

Como se pode notar, os direitos fundamentais à privacidade e de não discriminação se opõem à exigência e à consulta de certidão de antecedentes criminais, no caso, para a admissão do empregado.

A respeito da matéria em estudo, cabe salientar a presença de leis especiais que autorizam a exigência de certidão de antecedentes criminais pelo empregador, para o objetivo específico de contratação de empregados que exercem certas funções.

Nesse sentido, a Lei 5.859/1972, no artigo 2º, inciso II, prevê que para admissão ao emprego deve o empregado doméstico apresentar “atestado de boa conduta”.

Da mesma forma, a Lei 7.102/1982, art. 16, inciso VI, dispõe que para o exercício da profissão, o vigilante deve preencher, entre outros, o requisito de “não ter antecedentes criminais registrados”.

Nota-se que, nas hipóteses acima, a lei infraconstitucional fez prevalecer os princípios fundamentais de acesso à informação e de obtenção de certidões em repartições públicas.

Na realidade, a questão em análise deve ser examinada sob o enfoque da colisão de princípios, relativos a direitos fundamentais, com a incidência do princípio (ou máxima) da proporcionalidade, em seus três níveis (adequação, necessidade, proporcionalidade em sentido estrito), para que se possa aferir se a restrição estabelecida em lei, a um dos direitos fundamentais envolvidos, é (ou não) constitucional.

Vale dizer, as previsões dos diplomas legais referidos, ao estabelecerem restrições a certos direitos fundamentais envolvidos quanto ao tema (privacidade e não discriminação), para serem consideradas constitucionais, devem atender ao princípio da proporcionalidade.

Sendo assim, tendo em vista as peculiaridades das funções envolvidas, as mencionadas disposições legais podem ser consideradas constitucionais: se adequadas quanto ao meio utilizado, levando em conta o objetivo que se busca atingir; se necessárias para alcançarem os fins pretendidos; se não acarretarem restrições excessivas aos direito fundamentais (proporcionalidade em sentido estrito), em exame de ponderação entre os valores e direitos em discussão.

Pode-se entender que, nos casos em questão, o princípio do acesso a informações, por meio de certidões públicas, é necessário ao exercício das funções disciplinadas nas leis 5.859/1972 e 7.102/1982.

Não se observa, por outro lado, violação ao princípio da igualdade, uma vez que este deve ser interpretado em seu enfoque substancial, por ser vedado tratar de forma igual os que estão em situação desigual.

Diversamente, para outras funções, a lei não prevê, expressamente, a possibilidade de exigência de certidão de antecedentes criminais para a admissão do empregado.

Assim, não sendo imprescindíveis as referidas informações, pode-se entender que devem prevalecer os princípios da privacidade e da não discriminação. Por outro lado, se, conforme as circunstâncias do caso concreto e a função a ser exercida, houver necessidade de se ter conhecimento de informações sobre antecedentes criminais, justifica-se a sua exigência[2].

A respeito do tema, cabe destacar os seguintes julgados do Tribunal Superior do Trabalho:

“Recurso de revista. Exigência de antecedentes criminais em entrevista de admissão em emprego para exercício de cargo de atendente com acesso a dados pessoais de clientes. Limites do poder diretivo empresarial. Contraponto de princípios constitucionais: princípio do amplo acesso a informações, especialmente oficiais, em contrapartida ao princípio da proteção à privacidade e ao princípio da não discriminação. Ponderação. A Constituição da República consagra o princípio do amplo acesso a informações (art. 5º, XIV: -é assegurado a todos o acesso à informação…-, CF), especialmente em se tratando de informações oficiais, prolatadas pelo Poder Público (art. 5º, XXXIII, e art. 5º, XXXIV, -b-, CF). Em contraponto, também consagra a Constituição o princípio da proteção à privacidade (art 5º, X, da CF) e o princípio da não discriminação (art. 3º, I e IV; art. 5º, caput; art. 7º, XXX, CF). Nessa contraposição de princípios constitucionais, a jurisprudência tem conferido efetividade ao princípio do amplo acesso a informações públicas oficiais nos casos em que sejam essenciais, imprescindíveis semelhantes informações para o regular e seguro exercício da atividade profissional, tal como ocorre com o trabalho de vigilância armada – regulado pela Lei nº 7.102 de 1982, art. 16, VI – e o trabalho doméstico, regulado pela Lei nº 5.859/72 (art. 2º, II). Em tais casos delimitados, explicitamente permitidos pela lei, a ponderação de valores e princípios acentua o amplo acesso a informações (mormente por não se tratar de informações íntimas, porém públicas e oficiais), ao invés de seu contraponto principiológico também constitucional. Contudo, não se mostrando imprescindíveis e essenciais semelhantes informações, prevalecem os princípios constitucionais da proteção à privacidade e da não discriminação. Na situação em tela, envolvendo trabalhador que se candidata à função de operador de telemarketing ou de call center, a jurisprudência do TST tem se encaminhado no sentido de considerar preponderantes os princípios do respeito à privacidade e do combate à discriminação, ensejando a conduta empresarial, por consequência, a lesão moral passível de indenização (art. 5º, V e X, da CF). Recurso de revista conhecido e provido.” (TST, 3ª T., RR – 102400-35.2013.5.13.0007, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, DEJT 30.05.2014).

“Recurso de revista. Dano moral. Exigência de exibição de certidão de antecedentes criminais. Atendente de telermarketing. Conduta discriminatória. A exigência de certidão de antecedentes criminais para admissão em emprego, além de ser uma medida extrema, porque expõe a intimidade e a integridade do trabalhador, deve sempre ficar restrita às hipóteses em que a lei expressamente permite. Recurso de revista conhecido e provido.” (TST, 6ª T., RR – 140100-73.2012.5.13.0009, Rel. Min. Aloysio Corrêa da Veiga, DEJT 06.12.2013).

De todo modo, cabe acompanhar o posicionamento da jurisprudência sobre essa importante e controvertida questão, em especial do Supremo Tribunal Federal.


[1] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 103.

[2] Cf. ainda: “Agravo de instrumento. Recurso de revista. Responsabilidade civil. Dano moral. Exigência de antecedentes criminais. 1. A exigência de certidão negativa de antecedentes criminais de candidato ao emprego, por si só, não implica violação à dignidade, à intimidade ou à vida privada, máxime se justificada pela necessidade da empresa em aproveitá-lo em atividades que envolvam uma maior parcela de fidúcia pelo acesso a informações confidenciais dos clientes. 2. Ausência de afronta ao art. 5º incisos V e X da Constituição Federal e ao art. 186 do Código Civil. 3. Agravo de instrumento de que se conhece e a que se nega provimento.” (TST, 4ª T., AIRR – 140300-83.2012.5.13.0008, Rel. Min. João Oreste Dalazen, DEJT 24.06.2014).

Autores

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    é livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito pela Universidad de Sevilla. Pós-Doutorado em Direito. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, Titular da Cadeira nº 27. Membro Pesquisador do IBDSCJ. Professor Universitário em Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito. Advogado e Consultor Jurídico. Foi Juiz do Trabalho das 2ª, 8ª e 24ª Regiões, Procurador do Trabalho do Ministério Público da União e Auditor Fiscal do Trabalho.

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