Consultor Tributário

Eficiência e honestidade do Estado são direitos fundamentais dos contribuintes

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5 de novembro de 2014, 7h00

"Power tends to corrupt, and absolute power corrupts absolutely”[1]. (Lord Acton)

Entre os dias 12 e 16 de outubro realizou-se em Mumbai (antiga Bombaim), na Índia, o 68º Congresso da International Fiscal Association (IFA), do qual tive a satisfação de participar, na companhia de colegas de diferentes países.

A delegação brasileira, uma vez mais, se fez presente e diversos colegas tiveram importante participação nas mesas de debates. Aproveito para parabenizar Lionel Nobre, Felipe Vallada, Igor Mauler Santiago, Antonio Carlos de Abreu e Silva, André de Souza Carvalho e Geraldo Valentim Neto por terem brilhantemente representado o Brasil nos painéis que participaram. Igualmente parabenizo os “branch reporters” Carlos Henrique Bechara e João Rafael Carvalho pela importante contribuição científica no estudo sobre o tema “Cross-Border Outsourcing”.

Também não posso deixar de parabenizar o quarteto composto por Gustavo Brigagão, Marcos André Vinhas Catão, André Oliveira e Bruno Lyra que trabalhou arduamente para a apresentação dos preparativos do 71º Congresso da IFA que será realizado no Rio de Janeiro em 2017.

Por fim, quero registrar a sempre marcante presença do colega de coluna Heleno Torres, nosso anterior representante no Comitê Executivo (cargo atualmente ocupado por André Oliveira) e fazer uma menção honrosa ao trabalho incansável da amiga Ana Cláudia Utumi no importantíssimo Comitê Científico Permanente, sem dúvida alguma, o foro de discussão técnica mais abalizado da IFA, onde se pensam os próximos congressos e, com isso, as novas direções do Direito Tributário Internacional.

E foi precisamente pensando o futuro que registrei duas importantes falas ao longo do evento.

A primeira que me chamou atenção foi a palestra proferida na cerimônia de abertura pelo convidado de honra Shri. Shaktikanta Das, Secretário da Receita do Governo da Índia. Entusiasmou-nos o seu ânimo e orgulho de fazer parte de um governo de renovação e transformação, com muitas promessas de realizações econômicas em geral e, em especial, no campo da tributação.

Com efeito, em 26 de maio de 2014, assumiu o poder na Índia o Bharatiya Janata Party (BJP), comandado pelo competente ex-governador do estado de Gujarat, Narendra Modi, que foi feito primeiro-ministro.[2] A vitória do BJP significou o fim de um longo período de dominação do Congress Party (“Partido do Congresso”), liderado por Sonia e Rahul Gandhi, que esteve sempre envolvido em incontáveis escândalos de corrupção. A derrota do Partido do Congresso foi fragorosa mesmo em seu reduto eleitoral mais importante (Uttar Pradesh), onde a população que elegeu o BJP afirmava ansiar por desenvolvimento econômico e não mais por caridade feudal.

Mas o caminho para alcançar esse crescimento será difícil, já que a Índia recebida por Modi está economicamente estagnada, com as finanças públicas desorganizadas, com uma inflação de 9% ao ano com tendência de alta e experimenta um declínio da produção industrial.

Muito embora difícil, nesses dias pela Índia pude perceber uma vontade política hercúlea para fazer as reformas acontecerem e, no campo tributário, medidas concretas já vêm sendo adotadas, como revelou a fala do Secretário da Receita, confirmada pelos jornais que pude ler enquanto lá estive[3].

As principais medidas em matéria tributária consistem na implementação, em seis meses, do (i) Direct-Tax Code (DTC), tendente a ampliar a base de contribuintes dos tributos diretos; e do (ii) Goods and Services Tax (GST), tendente à unificação de uma miríade de tributos regionais estaduais sobre o consumo, de modo a simplificar o regime fiscal do país.

As medidas em questão enquadram-se na chamada iniciativa Make in India que tem por meta melhorar a posição do país no ranking do Doing Business Report do Banco Mundial[4], que atualmente está no 134º lugar, atrás dos vizinhos China (96), Nepal (105), Paquistão (110) e Bangladesh (130). A intenção de Modi é levar a Índia aos primeiros 50 lugares e transformá-la em um centro manufatureiro de mão-de-obra intensiva, tendo em vista o capital humano excedente que dispõe um país de um bilhão e duzentos milhões de habitantes.

Apenas a título comparativo, o Brasil está em 116º lugar no mesmo ranking, enquanto os vizinhos Chile (34), Peru (42) e Colômbia (43) estão no top 50, o Uruguai (88) e o Paraguai (109) aparecem acima do Brasil (116), e os bolivarianos Argentina (126), Equador (135) e Bolívia (162) ocupam posições muito piores, com destaque negativo para a Venezuela (181) uma das lanternas na lista de 189 países.

Medida fundamental para restaurar a credibilidade e confiança dos investidores na Índia será a revogação das medidas legais retroativas que foram adotadas pelo Governo anterior com vistas a dar sustentação à cobrança de imposto sobre ganhos de capital obtidos pela alienação indireta de ativos localizados na Índia.

Referimo-nos especificamente ao chamado “caso Vodafone”, discussão judicial em que o fisco indiano pretendia aplicar sua lei interna de tributação de ganhos de capital em operação pela qual uma empresa do Grupo Vodafone, domiciliada na Holanda, adquiriu de uma empresa domiciliada nas Ilhas Cayman, integrante do grupo multinacional Hutchinson Telecommunications, com sede em Hong-Kong, ações de outra empresa (CGP Holdings Ltd.), também domiciliada nas Ilhas Cayman, detentora, por seu turno, de participações societárias em empresas na Índia e nas Ilhas Maurício que lhe asseguravam a titularidade de 67% do capital da companhia de telefonia móvel indiana Hutchinson Essar Limited (HEL).[5] A Suprema Corte indiana no ano de 2012 decidiu favoravelmente ao contribuinte, sustentando a interpretação segundo a qual a lei interna não autorizava a tributação de alienações indiretas de ativos. A operação realizada entre dois não residentes (Vodafone Holanda e Hutchinson Cayman) tendo por objeto ações de empresa estrangeira (CGP Holdings) não é hipótese de incidência do imposto sobre ganhos de capital indiano. A Corte considerou ainda que a cadeia de participações não poderia ser considerada simulada uma vez que a estrutura já existia como tal há tempos, logo não fora montada exclusivamente para evitar a tributação, enfatizando o direito das partes de organizarem seus negócios de boa-fé.

Sucede, porém, que na sequência do julgamento em questão, foi editada uma lei com efeitos retroativos, prevendo expressamente a sujeição à tributação a título de ganho de capital, de operações que importem na venda indireta de ativos situados na Índia.

Esta providência levou a Vodafone a iniciar um procedimento arbitral contra o Governo indiano ao abrigo do tratado de proteção de investimentos celebrado entre a Índia e a Holanda. O processo segue em curso, mas há especulações sobre seu encerramento em breve, já que o governo Modi manifestou-se recentemente no sentido de revisar as cobranças retroativas.

A comunidade internacional espera ansiosamente o desfecho desse caso, uma vez que a postura do governo indiano anterior foi acintosamente afrontosa à segurança jurídica, desrespeitando os mais comezinhos direitos dos contribuintes. Espera-se que o novo governo corrija os rumos e transmita segurança jurídica para os particulares, cumprindo e fazendo cumprir as decisões do Poder Judiciário.

E foi justamente a temática dos direitos dos contribuintes que pontuou a segunda fala que me referi. Trata-se da intervenção do professor Philip Baker, advogado de litígios (barrister) inglês uma das maiores autoridades em tributação internacional. Baker falou em evento paralelo organizado pelo prestigioso escritório indiano Nishith Desai Associates e utilizou seu tempo para introduzir um dos temas do Congresso da IFA de 2015 a realizar-se na Basiléia, Suíça: The practical protection of taxpayer´s fundamental rights (A proteção prática dos direitos fundamentais dos contribuintes).

A fala de Baker começou pela frase da epígrafe dessa coluna: Power tends to corrupt, and absolute power corrupts absolutely (O poder tende a corromper, o poder absoluto corrompe absolutamente).

A grande preocupação de Baker, da qual compartilhamos plenamente, está na dificuldade prática de limitar esse poder cada vez mais absoluto demandado pelas autoridades fiscais.

Mas como conceder tamanho poder a quem não se pode confiar? Vejam o exemplo indiano. Como confiar em um Estado que muda retroativamente suas leis porque se “zanga” com uma decisão contrária aos seus interesses?

E o que se esperar de um Estado inconfiável com amplos poderes? Nada garante que não os irá usar em proveito de uns e em detrimento de outros.

É certo que depois de 2008 vivenciamos um momento crítico à escala mundial, em que se puseram em polos contrapostos, de um lado, os cada vez maiores gastos estatais e a necessidade de incremento de arrecadação, forçando a adoção de medidas corretivas e coercitivas, como é o caso do conjunto de providências reclamado pelo G-20 intitulado “Base Erotion Profit Shifting” (BEPS), que já conta com sete relatórios[6]; de outro lado, a necessidade de assegurar uma justa medida de tributação, evitar efeitos confiscatórios e permitir um equilíbrio econômico e uma concorrência salutar entre as regiões econômicas do mundo, cada vez mais integradas e que se devem desenvolver conforme suas aptidões.

É uma vez mais um movimento pendular. Exigem-se medidas que assegurem mais recursos para o Estado; exigem-se medidas que protejam o cidadão contra a voracidade desse mesmo Estado. O ponto de equilíbrio é que deve ser perseguido.

O fato é que os contribuintes demandam um Estado eficiente e profissional. São consumidores de serviços públicos e querem a mesma eficiência que se permitem demandar do setor privado. Aceitam contribuir para financiar o Estado, mas estará o Estado gastando corretamente os recursos arrecadados? Parece que não, haja vista os tantos ralos da corrupção, cada vez mais multibilionária e desavergonhada. Eficiência e honestidade da máquina estatal não deixam de ser novas garantias individuais a serem reclamadas pelos particulares.

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A demanda por medidas protetivas, por maiores garantias, será a tônica do Congresso da IFA na Basiléia, mas bem antes disso, bem mais perto, aqui mesmo no Brasil, em Belo Horizonte, teremos grandes oportunidades para sua ampla discussão.

É que no dia de hoje, 5 de novembro, está começando o XVIII Congresso Internacional de Direito Tributário da Associação Brasileira de Direito Tributário (ABRADT), em homenagem ao ministro João Otávio Noronha.

Serão dedicadas algumas mesas ao tema da segurança jurídica e dos direitos fundamentais dos contribuintes, além disso, pretende-se divulgar a carta de Belo Horizonte onde se reivindicarão medidas concretas para uma reforma tributária que restaure o equilíbrio do pacto federativo.

Valerá muito a pena participar.

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Recomendo o filme LUCY de Jean-Luc Besson, com Scarlett Johansson, um dos muitos que assisti no longo voo de regresso. O filme ensina que a humanidade se revela naqueles cujo tempo de vida destina-se à transmissão do saber. Tento ser humano nessa coluna; também o são meus amigos Igor, Gustavo e Heleno. Estivemos juntos em Mumbai, estaremos juntos em Belo Horizonte, que sigamos juntos pelas linhas da ConJur transmitindo nosso conhecimento.

Dedico essa coluna a nós quatro.

Forte abraço.


[1] A frase completa de John Emerich Edward Dalberg-Acton, 1º Barão Acton é "Power tends to corrupt, and absolute power corrupts absolutely in such manner that great men are almost always bad men." Em vernáculo: "O poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente, de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus."

[2] Para maiores detalhes da vitória do BJP de Narendra Modi, recomendo a leitura da edição da revista The Economist de 24 de maio de 2014.

[3] Hindustan Times de 22/10/2014 p. 15

[4] Cfr. http://www.doingbusiness.org/~/media/GIAWB/Doing%20Business/Documents/Annual-reports/English/DB14-Full-Report.pdf

[5]Cfr. http://www3.cbiz.com/page.asp?pid=9757; cfr. ainda http://www.kpmg.com/in/en/services/tax/flashnews/kpmg-flash-news-vodafone-international-holdings-bv.pdf

[6] Cfr. OECD/G20 Base Erotion and Profit Shifting Project. (i) Action 1 – Addressing the Tax Challenges of the Digital Economy; (ii) Action 2 – Neutralising the Effects of Hybrid Mismatch Arrangements; (iii) Action 5 – Countering Harmful Tax Practices More Effectively, Taking into Account Transparency and Substance; (iv) Action 6 – Preventing the Granting of Treaty Benefits in Inappropriate Circumstances; (v) Action 8 – Guidance on Transfer Pricing Aspects of Intangibles; (vi) Action 13 – Guidance on Transfer Pricing Documentation and Country-by Country Reporting; and (vii) Action 15 – Developing a Multilateral Instrument to Modify Bilateral Tax Treaties.

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