Processo Novo

Do golpe à democracia, ambiente influencia concepção do CPC

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

31 de março de 2014, 16h10

Spacca
Em tempos recentes, tenho dialogado sobre algo que está subjacente, sempre que tratamos do projeto de novo Código de Processo Civil: o ambiente em que o texto está sendo concebido.

O tema ganha ainda mais relevo nesses dias, em que nos recordamos dos 50 anos do golpe de 1964.

Os ares, hoje, são outros, evidentemente.

O Código de Processo Civil em vigor é de 1973, e foi concebido no auge do regime autoritário que então vigorava.

Chamado por muitos de “Código Buzaid” — por ter sido elaborado pelo então ministro da Justiça, que, depois, viria a se tornar ministro do Supremo Tribunal Federal, Alfredo Buzaid[1] —, trata-se de arcabouço legislativo muito elogiado e considerado, por muitos, texto bastante moderno para seu tempo.

Muitos dos elogios decorrem do fato de o Código de 1973 ter sido elaborado em consonância com o que de mais moderno havia na legislação de outros países. Isso é algo marcante entre nós. Não raro, consideramos modelos normativos de outros países melhores que os nossos. Já não nos assustamos ao ler estudos sobre temas do direito brasileiro realizados quase que exclusivamente à luz de modelos jurídicos estrangeiros…

Lembro-me, por exemplo, de ter lido vários autores criticando o modelo da execução previsto no Código de 1939 e enaltecendo a unificação das vias executivas adotada pelo Código de 1973, que seguiu, no ponto, o mesmo modelo previsto para a execução de sentenças e de títulos extrajudiciais em “modernas legislações processuais européias”, como se costuma afirmar. Tal unificação não mais subsiste, entre nós (cf., especialmente, as reformas da Lei 11.232/2005, mas também, e embora inspiradas por outros valores, a alteração do artigo 461 do CPC pela Lei 8.952/1994).

Entendo que há, hoje, muito pouco da essência do direito processual civil que vigia nos idos da década de 1970, no alvorecer do CPC em vigor. Não me refiro ao refinamento do processualismo ou da compreensão do direito processual como ciência — nesse ponto, avançamos e continuamos avançando muito. O enfoque, aqui, é outro: Pouco se pensava o direito — inclusive o processual civil — à luz da Constituição. Aliás, como já anotei em outro texto, demoramos para despertar para o real sentido da Constituição de 1988.

A partir do momento em que passamos a conferir pleno alcance às disposições constitucionais, já não se pode dizer que o direito processual seja o mesmo, ainda que tenhamos o mesmo Código de Processo Civil. O direito processual civil, pois, é outro, a partir da ordem constitucional inaugurada em 1988.

A sociedade também mudou, tornando-se mais complexa e transformando-se intensa e rapidamente. Isso naturalmente repercutiu no direito substantivo e, inevitavelmente, no direito processual civil. Em grande medida, tais fenômenos — nova ordem constitucional e transformações sociais — explicam as variadas alterações legislativas pelas quais passou o Código de 1973. Dessas, considero as novas redações dos artigos 273 e 461, dadas pela Lei 8.952/1994, as mais significativas.

Diversamente do Código de 1973, o projeto de novo CPC surge em uma nova conjuntura. O projeto é criado em um ambiente democrático, tendo sido objeto de intensos debates desde sua fase embrionária, por ocasião da elaboração do anteprojeto, e, depois, também no Senado e na Câmara dos Deputados.

Não se trata de obra autoral, e ninguém pode, diversamente do que ocorre com o CPC/1973, indicar uma pessoa que seja a “criadora” do projeto.

O texto do projeto foi lido e relido por todos, sujeitou-se a e ultrapassou toda sorte de críticas e a obra a que se está prestes a concluir é fruto do trabalho de muitos. Evidentemente, não agrada a todos. Mas mesmo nisso revela tratar-se de um Código de seu tempo.

Os valores democráticos encontram-se presentes também dentro do Código ora em construção. Embora ainda mal compreendidas, todas as garantias mínimas do devido processo legal foram contempladas no texto. Trata-se de um Código alinhado ao que de mais moderno se produziu, na doutrina processual recente.

Temos muito ainda a avançar, contudo. O projeto de novo CPC acaba de retornar ao Senado, onde, espera-se, deverá ter uma tramitação célere. Mas um novo Código não é capaz de resolver todos os problemas da Justiça. Um código é apenas um código, e espera-se que um novo código resolva ou minore significativamente os problemas do código que o antecedeu. Não se melhora a gestão e nem se resolve problemas como falta de investimento, por exemplo, com novas leis. Uma vez aprovada e posta em vigor a nova lei processual, deveremos centrar forças em uma nova etapa, a fim de se empreender uma mudança cultural — algo que, talvez, seja mais difícil que elaborar um novo Código. E isso se resolve com mais democracia, aprimorando a democracia que temos, que, creio, ainda é deficitária. Temos muito a caminhar, nesse sentido.


[1] A respeito da atuação de Alfredo Buzaid em relação ao Código de Processo Civil de 1973 e como Ministro da Justiça do governo Medici, cf. texto escrito por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, aqui.

 

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