Tendência regional

Legislação brasileira limita a liberdade de imprensa

Autor

  • Daniel M. Boulos

    é advogado professor conselheiro do LLM Direito dos Contratos do Insper em São Paulo membro da Comissão de Direito Bancário do Iasp e da Comissão de Instituições Financeiras da OAB-SP. Mestre e doutor em Direito Civil pela PUC-SP.

31 de março de 2014, 7h44

Artigo produzido por especialistas do Insper. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores

A tendência verificada em alguns países da América Latina de restringir a liberdade de imprensa aliada, internamente, a diversos casos de ataques à liberdade de imprensa — com a tentativa de restringi-la a ponto de anulá-la — e aos recentes ataques a jornalistas no exercício da sua função — em manifestações populares ou fora delas —, fez com que o tema da liberdade de imprensa merecesse, novamente, as atenções do público e das autoridades em geral.

Já não é de hoje que se discute, no Brasil, a legitimidade, a pertinência e a intensidade dos limites impostos pelo Estado à atuação livre dos particulares. Quaisquer restrições, limitações ou regramentos mais contundentes impostos por qualquer dos poderes estatais — o Legislativo, por exemplo, por meio de leis, o Executivo, por decretos e o Judiciário, por meio de decisões judiciais — à livre atuação dos particulares no exercício dos seus direitos e de suas prerrogativas, soam, para alguns, como “limitação descabida”, “censura”, “autoritarismo” ou mesmo como um verdadeiro “atentado à democracia”.

Valores como, por exemplo, a liberdade de imprensa, os direitos e garantias individuais, os direitos adquiridos, e a própria democracia são freqüentemente utilizados para justificar e embasar as críticas à tais restrições, em um verdadeiro jogo argumentativo no qual haveria, supostamente, lados excludentes entre si. Assim, alinham-se, de um lado, aqueles que defendem a validade das restrições impostas pelo Estado como forma de tornar a vida em sociedade melhor e mais segura e, de outro, os defensores da ideia de que tais restrições ferem de morte os direitos individuais e as liberdades asseguradas pela Constituição.

Com a liberdade de imprensa, não é diferente. Parece haver, de um lado, um preconceito contra a imprensa a quem parte minoritária — felizmente — da população atribui as mazelas enfrentadas pelo país, a insuficiência dos serviços públicos a ela prestados diuturnamente, o encobrimento de casos de corrupção — quando, a bem da verdade, é exatamente o contrário que ocorre —, dentre outras acusações. Por outro lado, talvez influenciada pela lembrança da ditadura militar que preponderou no país por cerca de 20 anos, parcela da imprensa, de órgãos de classe e até mesmo parte da população em geral, apresentam-se absolutamente contrários a qualquer “regulação”, “regulamentação”, “controle” ou “limite” ao exercício dessa liberdade jurídica, receosos — o que é compreensível face à censura que tantos anos foi imposta à liberdade de imprensa — de que possam se aproveitar dessa “regulação” para, na realidade, retomar a censura estatal à atividade da imprensa.

Ora, à luz dessas posições é conveniente brevemente analisar e esclarecer, no que toca à liberdade de imprensa, se ela é limitada, censurada ou combatida.

Primeiramente, é fundamental observar que a liberdade de imprensa, enquanto projeção da liberdade de manifestação do pensamento e da comunicação, constitui um dos pilares do Estado Democrático de Direito, envolvendo diversos direitos a ela conectados como o direito de informar, o de ser informado, o de opinar, o de criticar e o de buscar a informação1. Ocorre que o exercício da referida liberdade jurídica encontra limites jurídicos na própria Constituição Federal que a garante. Com efeito, é possível encontrar diversos dispositivos que representam, direta ou indiretamente, uma limitação à referida liberdade. São exemplos disso: a proteção da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III2), com a proteção da sua integridade moral, da sua personalidade, intimidade, privacidade, honra e imagem; a proteção dispensada à pessoa que tenha direito seu ameaçado ou violado (artigo 5º, XXXV, da CF3), permitindo que ela adote medidas judiciais para evitar a consumação da lesão a direitos ou, quando esses já tiverem sido violados, para reparar a lesão; a vedação ao anonimato (artigo 5º, IV, da CF4), o que permitirá a posterior responsabilização civil e penal daquele que veicular uma notícia falsa e com isso gerar danos a outrem, por exemplo (artigo 5º, V, da CF5).

Assim, a liberdade de imprensa, como qualquer outra prerrogativa jurídica — ou situação jurídica subjetiva, como liberdades, direitos, poderes, faculdades, etc.6 — experimenta limitações no seu exercício, fruto do próprio Direito que as prevê e as regulamenta. Isto não significa que exista censura — na acepção pejorativa do termo — e nem tampouco que exista qualquer ameaça à democracia nessa regulamentação legal.

A correta compreensão do tema passa pela percepção que, ao contrário das leis, os princípios jurídicos vigentes, ainda quando contraditórios, não produzem antinomia, vale dizer, não ensejam a necessidade de se optar pela validade de apenas um deles, em detrimento do outro. Com efeito, os princípios constitucionais, muitos deles antagônicos entre si, são igualmente válidos e gozam do mesmo prestígio e importância. Ocorre que, no caso concreto, o julgador certamente terá que optar pela preponderância de um princípio sobre o outro. Essa “escolha” entre dois princípios se faz no âmbito das decisões judiciais — que apreciam casos concretos submetidos ao Poder Judiciário —  e não in abstrato, em tese7. O Supremo Tribunal Federal, nos casos nos quais ele analisou questões que confrontam, de um lado, a liberdade de imprensa, como valor fundamental do Estado Democrático de Direito (art. 5, IV e art. 220, da CF), e, de outro lado, os direitos da personalidade do cidadão — em especial, o direito à honra, à privacidade e à intimidade, art. 5º, X, CF —, fez menção, com acerto, como técnica de solução do caso concreto, à “ponderação de valores e interesses”.

É importante notar, por outro lado, que, com a revogação da Lei de Imprensa (Lei 5.250, de 9 de fevereiro de 1967) pelo Supremo Tribunal Federal, o tema é disciplinado pelo Código Civil que, no seu artigo 187, veda o exercício abusivo de qualquer direito, liberdade, faculdade, etc.. Há, portanto, limitação, não só à liberdade de imprensa, como, também, à qualquer outro direito, prerrogativa, poder ou faculdade jurídicos. Os limites de exercício de tais direitos são, justamente, a boa-fé, os bons costumes e o fim social e econômico do respectivo direito.

É possível afirmar, portanto, que a liberdade de imprensa é limitada pela legislação em vigor mas, a despeito disso, vem sendo combatida, de forma ilegal, inconstitucional e feroz, por aqueles que pretendem simplesmente “calar” a voz dos órgãos que materializam e exercitam a referida liberdade. Também é possível afirmar, nessa perspectiva, que o combate há de ser feito não à existência de limites legais à referida liberdade jurídica mas, sim, à censura que eventualmente se pretenda a ela impor, essa sim, absolutamente abominável no estágio atual da democracia brasileira.


1 Com efeito, a Constituição Federal prevê, no artigo 5º, dentre os “direitos e garantias individuais e coletivos”, o seguinte: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…….); IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; (…)”. Já no artigo 220, ao disciplinar a “comunicação social”, está prevista a seguinte norma: “Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.”
2 Que assim dispõe: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (…) III – a dignidade da pessoa humana; (…)”.
3 Verbis: “(…); XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (…)”.
4 Verbis: “IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;(…)”.
5 Verbis: “(…); V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; (…)”.
6 Acerca de situação jurídica, confirma, por exemplo: OLIVEIRA ASCENSÃO, José de, Direito Civil, Teoria Geral, vol. III, Coimbra, 2002, p. 09 e ss.
7 Acerca do tema, dentre outros: CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 1998, p. 1034 e ss.; REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 10ª ed. Coimbra: Almedina, 1982, p. 299 e ss.; GALLAS, D. Pio Cabanillas et alli. Consideraciones sobre los principios generales del derecho. Real Academia de Jurisprudencia y Legilacion. Madrid, 1977, passim.

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    é advogado, professor conselheiro do LLM Direito dos Contratos do Insper em São Paulo, membro da Comissão de Direito Bancário do Iasp e da Comissão de Instituições Financeiras da OAB-SP. Mestre e doutor em Direito Civil pela PUC-SP.

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