Resposta a impasse

Constituição de 1824 ainda deixa marcas no país

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25 de março de 2014, 15h09

*Texto publicado originalmente no jornal Folha de S.Paulo do dia 25 de março de 2014.

O conselheiro Aires, em seu diário, no dia 25 de março, fez a seguinte anotação: "Era minha ideia hoje, aniversário da Constituição, ir cumprimentar o imperador…".

Personagem fictício do último romance de Machado de Assis, intitulado Memorial de Aires, o velho diplomata do Império, nessa discreta passagem, destacava o significado da Constituição de 1824 para o Brasil do século 19.

Passados 190 anos, a primeira Constituição brasileira, outorgada por um imperador da dinastia portuguesa dos Bragança e casado com uma arquiduquesa do Império austríaco, ainda hoje deixa suas marcas na vida constitucional do país.

Elaborada após o encerramento da assembleia constituinte de 1823, a Constituição imperial foi a resposta possível a um clima de impasse. De um lado, liberais escravagistas eram também defensores do federalismo com um poder central fraco. De outro, conservadores — muitos deles antiescravagistas, como José Bonifácio de Andrada — eram favoráveis a uma monarquia centralizada, a única resposta contra os movimentos separatistas que mostrariam suas garras no período da Regência.

Um exemplo desse equilíbrio paralisante está na escravidão, que se manteve no Brasil a despeito de não figurar no texto constitucional.

Apesar de sua origem autocrática, foi a Constituição votada em todas as Câmaras Municipais brasileiras, como bem recorda Paulo Bonavides, e não se poder negar que foi um texto jurídico de grandes qualidades técnicas, conferindo ao Brasil a estabilidade necessária para atravessar o conturbado século 19.

A comparação entre o Brasil e o destino das demais nações latino-americanas naquele período é capaz de produzir um juízo, no mínimo, mais favorável ao texto de 1824.

A instituição do Poder Moderador — "a chave de toda a organização política" (artigo 98) — foi um dos pontos mais originais da Constituição de 1824. Bastante criticada por historiadores e juristas, ao exemplo de Zacarias de Góis e Vasconcelos, essa fórmula terminou por atenuar os permanentes conflitos horizontais e verticais entre os diversos grupos de pressão e as forças políticas do Império.

Não é equivocado dizer que o Poder Moderador manteve-se no Brasil, ao longo do século 20, mesmo sem previsão expressa nas Constituições republicanas, exercido pelos militares (direta ou indiretamente) ou pelos presidentes civis, por meio do estado de sítio.

Após a Constituição de 1988, o Supremo Tribunal Federal, ainda que sem convicção, parece ter assumido parte dessas atribuições, que um dia pertenceram ao imperador e que foi uma das razões da própria criação do STF, seguindo-se o modelo norte-americano.

Os alemães, após a constituição democrática de 1949, desenvolveram o conceito de "patriotismo constitucional", como superador da antiga identificação do povo e do Estado com um símbolo de poder ou com um arquétipo de base ideológica, fornecido por grupos da classe dominante.

A data de 25 de março foi muito representativa para os brasileiros do século 19, como elegantemente descreveu Machado de Assis, de um sentimento incipiente de pertencimento a um Estado de Direito, com todas as suas imperfeições.

Em todo o Brasil, há dezenas de ruas nomeadas em honra do aniversário da Constituição de 1824. Em São Paulo, a rua 25 de Março, a mais importante via de comércio popular do país, é uma bela metáfora de que é possível, ainda que por razões insondáveis, a reinvenção simbólica do poder.

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