Justiça Comentada

Prerrogativa de foro e desmembramento de ações

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21 de março de 2014, 8h00

Spacca
Em recente decisão, a atual composição plenária do Supremo Tribunal Federal fixou como regra geral o desmembramento de inquéritos ou de ações penais de competência originária em relação aos agentes não detentores de foro por prerrogativa de função, possibilitando, entretanto, exceções nos casos em que a relevância e a relação dos fatos indiquem a necessidade de julgamento único, sob pena de prejuízo à prestação jurisdicional (Inq. 3515 AgR/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, 13-2-2014).

Entendo ser essa a correta interpretação dos dispositivos constitucionais, uma vez que a definição de competências penais originárias do Supremo Tribunal Federal é prevista nas alíneas “b” e “c”, do inciso I, do artigo 102 da Constituição Federal e, seguindo tradição em nosso Direito Constitucional, é taxativa e não pode ser alterada por disposições legais (RTJ 43/129, RTJ 44/563, RTJ 50/72, RTJ 53/776), pois, como salientado por nossa corte suprema seu “complexo de atribuições jurisdicionais de extração essencialmente constitucional, não comporta a possibilidade de extensão, que extravasem os rígidos limites fixados em numerus clausus pelo rol exaustivo inscrito no artigo 102, I, da Carta Política” (STF – Petição 1.026-4/DF – Rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 31 maio 1995, p. 15855).

Tendo o STF já pacificado a impossibilidade de ampliação do rol expresso e taxativo de suas competências constitucionais originárias por legislação ordinária, não guardaria lógica e razoabilidade, a possibilidade de se permitir essa ampliação por aplicação interpretativa de lei ordinária já existente, com a aplicação da Súmula 704 (“não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do co-réu ao for por prerrogativa de função de um dos denunciados”).

A Súmula 704 não se refere às competências penais originárias do STF, como ostensivamente perceptível ao analisarmos os precedentes desse enunciado, não tendo, portanto, aplicabilidade em relação ao artigo 102, I, “a” e “b” da Constituição Federal, sob pena de frontal paradoxo: “não é possível a ampliação da competência penal taxativa do STF pela edição de legislação ordinária, mas é possível por aplicação de lei ordinária já existente”.

A exegese lógica e razoável impõe que haja total impossibilidade de aplicação das regras legais de conexão e continência previstas no Código de Processo Penal à previsão de foro privilegiado no STF, uma vez que, estaríamos de forma inconstitucional ampliando as competências originárias da Corte e afastando, do julgamento daqueles que não possuem prerrogativa de foro, o princípio do juiz natural e o devido processo legal, em especial, a tutela judicial efetiva, que engloba o direito de recorrer.

A tutela judicial efetiva supõe o estrito cumprimento pelos órgãos judiciários dos princípios processuais previstos no ordenamento jurídico, em especial o Devido Processo Legal, o Contraditório e a Ampla defesa, incluído o direito a uma dupla instância em relação aos recursos existentes (direito de recorrer), pois não se trata de mero conjunto de trâmites burocráticos, mas um rígido sistema de garantias para as partes visando ao asseguramento de justa e imparcial decisão final (STF, 2a T., Agravo em embargos de declaração em Ag. Instr. 181.142‑1/SP – Rel. Min. Carlos Velloso, Diário da Justiça, Seção I, 27 mar. 1998, p. 5).

O direito fundamental a tutela judicial efetiva compreende também sua eficácia em relação aos recursos existentes no ordenamento jurídico, pois como salientando pelo Tribunal Constitucional Espanhol, “o direito a uma dupla instância supõe o direito de ser ouvido e poder defender-se em ambas, e ver-se privado de fazê-lo em uma, acarreta privação de uma possibilidade legalmente oferecida que é precisamente o poder de defender-se perante Tribunais distintos” (S. 195/90, de 29 de novembro, FJ 5. No mesmo sentido: S. 176/90, de 12 de novembro, FJ 2, FJ 3 do STC 50/90, de 26 de março, S. 111/92, de 14 de setembro, FJ 4 e S. 20/91, de 31 de janeiro, FJ 3 – MORI, Tomás Gui. Jurisprudência Constitucional integra. 1981 – 2001. Volume 1. Barcelona: Bosch, p. 512).

As garantias do juiz competente e imparcial e do direito de recurso a instância superior, quando previsto pelo ordenamento jurídico, estão consagradas em nosso ordenamento jurídico, não só pela previsão expressa do princípio do Juiz Natural e do Devido Processo Legal, Contraditório e Ampla Defesa no texto constitucional, mas também pelo artigo 8, 2 “h” da Convenção America de Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica, devidamente incorporada em 1992 com status supralegal (STF, Pleno, RE 349703/RS, Rel. Min. Carlos Britto, decisão: 3 dezembro 2008), e, portanto, superior a qualquer norma de conexão e continência prevista pela legislação processual penal.

Assim sendo, a regra prevista pela Constituição brasileira e reforçada pelo Pacto de São José da Costa Rica é a ampla possibilidade de utilização de todos os recursos existentes na legislação (direito de recorrer) para garantir a tutela jurisdicional efetiva; enquanto a exceção ocorrerá nas hipóteses taxativamente previstas de competência constitucional originária do Supremo Tribunal Federal (“foro privilegiado”), prevista no artigo 102, I, “b” e “c”, aplicáveis somente às autoridades enumeradas taxativamente em seu texto.

Não será possível, sob pena de grave ferimento à Constituição Federal e a Declaração Americana de Direitos Humanos, aplicar norma legislativa ordinária (CPP – conexão ou continência) às hipóteses de “foro privilegiado”, de maneira a subtrair réus, cuja competência penal originária não seja do Supremo Tribunal Federal, de seu Juízo Natural, sob pena de — além das inconstitucionalidades já citadas — efetivar-se grave restrição protetiva aos direitos humanos, referente ao devido processo legal, e em especial, ao direito de recorrer.

No âmbito de proteção aos Direitos Humanos, o princípio hermenêutico básico é a aplicação da norma mais favorável à pessoa humana, como já consagrado pelo Supremo Tribunal Federal, tendo salientado seu decano, ministro Celso de Mello, que “os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar‑lhe a mais ampla proteção jurídica” (STF –  2ª T. – HC 96772/SP – Rel. Min. Celso de Mello, DJe‑157, 21‑8‑2009).

Dessa maneira, na hipótese de coautoria em infrações penais de competência originária do Supremo Tribunal Federal, deverá ocorrer o desmembramento em relação àqueles corréus que não possuam “foro privilegiado”, aplicando-se o princípio hermenêutico básico na proteção dos Direitos Humanos, qual seja a aplicação da norma mais favorável à pessoa humana, com ampla incidência das garantias do Juiz Natural e do Devido Processo Legal.

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