Quase 10 mil PECs foram apresentadas desde 1988
9 de março de 2014, 8h06
Em livro assombrosamente interessante, Arnaldo Godoy nos remete aos recantos problemáticos da “legística”, por ele referida como “o minado campo das ciências sociais aplicadas que se ocupa da qualidade das leis”. Menciona-se a preocupação sobre a qualidade e a quantidade das normas.[1]
Este não é um problema que seja tido como um “privilégio” de uma administração, governo, presidência ou partido específico, conforme asseverado à seguir, e concita reflexões urgentes. Cite-se como exemplo de legislações inusitadas, curiosas ou meramente históricas, o Decreto 4.859, de 26 de setembro de 1924, pelo qual o então presidente Arthur da Silva Bernardes declara o dia 1º de maio como feriado nacional, “consagrado á confraternidade universal das classes operarias e á commemoração dos martyres do trabalho”.
Ou o Decreto 22.233, de 17 de dezembro de 1932, pelo qual Getúlio Vargas concede a “Alberto Santos Dumont as honras de Ministro de Estado e considera feriado o dia do seu enterramento”. Ou ainda o Decreto-Lei 1.908, de 26 de dezembro de 1939, pelo qual Getúlio Vargas institui o “dia do reservista” a ser comemorado no dia 16 de dezembro, “data do nascimento do poeta e grande patriota Olavo Bilac, pioneiro da execução da Lei do Serviço Militar”, e este dia ainda tem suas festividades regido pelo Decreto-Lei 2.751, de 6 de novembro de 1940.
Também o então presidente Jânio Quadros, pelo Decreto 51.045, de 26 de julho de 1961, instituiu o “Dia do Cego” com fundamento na “necessidade de incentivar o princípio de solidariedade humana”. Do mesmo presidente, o Decreto 50.912, de 5 de julho de 1961, institui o “Dia do Órfão”, que será comemorado, todos os anos, a 24 de dezembro. É “brasilianamente atemporal” o problema de legística, e um estudo sobre a historiografia jurídica que seja menos legitimador e apologético, conforme apontado pelo mesmo Arnaldo Godoy traria interessantes descobertas. [2]
O referido ensaio sobre legística foi escrito antes do ano eleitoral de 2010, a ele se refere expressamente, e a exemplo de 2014, o tema (re)volta novamente. Inicialmente, é preciso estar assombrado [3] com um dado absolutamente chocante advindo de pesquisa que fizemos especialmente para este artigo sobre o assombroso número de Propostas de Emendas Constitucionais apresentadas nestes 25 anos de promulgação da Constituição (1988-2013).
A jovem Constituição de 1988, durante seu jubileu de prata (88-2013) foi emendada 76 vezes, sem contar as seis emendas constitucionais da revisão de 1994, e o que é mais aterrador, foram apresentadas neste período nada menos do que o pantagruélico número de 9.020 Propostas de Emendas Constitucionais!
Estes dados traduzem o fato de que “apenas” aproximadamente 0,85% das PECs apresentadas foram aprovadas, e fundamentalmente, de que não há debate público entre o titular do poder — o povo — e seus representantes —parlamentares — no que tange às alterações do estatuto político do poder, tão importante para a vida do cidadão, ou seja, um abissal déficit democrático, correspondendo àquilo que Saramago chamou de “democracia sequestrada”. [4]
Em uma comparação forçosamente “impressionista”, chamemos assim, é como se a Constituição de 1988 estivesse sendo moldada — e aqui não nos referimos ao termo “constituição de Cera”, “wax constitution” — por uma espécie de “monstro de Ouvir-dizer” conforme descrito por Rabelais, e esta metáfora multiforme se aplica a inúmeras outras situações. [5]
A Constituição, assim, para o cidadão, se assemelha ao próprio “monstro de Ouvir-dizer”, nesse caso com 9.020 línguas, 513 braços, 81 olhos, aproximadamente 39 narizes, 11 cerebelos e uma cosmovisão. Houvesse ainda o “Imperial Conselho de Estado” e o “Imperial Poder Moderador”, poderíamos falar em pernas e “relho”, mas eles se transformaram em algo que ainda não é suficientemente discutido.
Neste sentido, importa sim o número de Emendas Constitucionais, diferentemente do afirmado por Virgílio Afonso da Silva em artigo recente e com título provocativo “Constituição: 50 anos, 150 emendas, e daí?” [6], especialmente se somarmos o número de PECs e a ausência de debate público sobre elas. Portanto, redarguimos: Constituição: 25 anos, 9.020 PECs, que absurdo! A propósito, segue a tabela abaixo para uma apreensão visual e detalhada sobre o número de PEC’s apresentadas por ano:
Ano | Nº de PEC’s |
---|---|
2013 | 376 |
2012 | 236 |
2011 | 535 |
2010 | 531 |
2009 | 454 |
2008 | 320 |
2007 | 216 |
2006 | 590 |
2005 | 491 |
2004 | 357 |
2003 | 226 |
2002 | 591 |
2001 | 483 |
2000 | 319 |
1999 | 639 |
1998 | 632 |
1997 | 568 |
1996 | 442 |
1995 | 300 |
1994 | 192 |
1993 | 180 |
1992 | 147 |
1991 | 89 |
1990 | 63 |
1989 | 40 |
1988 | 3 |
25 anos | Total = 9020 |
Segundo o artigo 60, inciso I, da Constituição Federal, o mínimo de 1/3 dos membros da Câmara ou do Senado pode propor emenda à Constituição, o que no caso da Câmara equivale a 171 deputados e no Senado a 27 senadores. Esta questão, em razão da arquitetura e da engenharia constitucional, faz com que ocorra a bizarra possibilidade de que três Estados Populosos — com 70 deputados cada — consigam propor uma Emenda e possuam cerca de 70% dos votos necessários para aprová-la.
Não há norma constitucional expressa e/ou explícita que estabeleça uma discussão de PECs entre a municipalidade, os estados, o Legislativo Federal e o Poder Executivo, antes, o que pressuporia — de maneira equivocada como observaremos à frente — que esta questão da deliberação pública fosse inerente a certo elemento de respeito ao eleitorado cidadão, mas está não é uma realidade brasileira.
Este já é em si, a toda vista, um problema de participação, mas ele não é o pior e nem o mais grave em termos constitucionais, antes fosse. Não há tempo para discutir adequadamente as Propostas de Emendas Constitucionais, o que se dirá sobre as discussões de emendas orçamentárias, análises de vetos presidenciais, e a completa realização de todo o projeto constitucional.
Tempo e qualidade das discussões: uma piada inexplicável
Apenas para que tenhamos uma ideia mais robusta, os dados pesquisados nos dão uma média de 360 PECs apresentadas por ano, dentro de um período em que o menor número de PECs apresentadas foi em 1988 e o maior em 1999, e assim, pela média, deveria haver discussão de cerca de três PECs por dia. Isso pressupondo que um ano fosse tempo razoável para deliberação, o que fundamentalmente, na pratica, não permite uma discussão sobre a alteração pretendida, levando-se em conta que a sessão legislativa ocorre entre os dias 2 de fevereiro e 17 de junho, bem como entre os dias 1º de agosto e 22 de dezembro, ou seja, além da constatação de que os parlamentares têm 85 dias de férias enquanto o cidadão comum tem 30 dias e o advogado no geral tem recesso entre os dias 20 de dezembro e 6 de janeiro.
Em anos normais, considerada a sessão legislativa, esta tem apenas 280 dias, mas na realidade devem ser consideradas outras peculiaridades como dias úteis, feriados, finais de semana. O Parlamento brasileiro É conhecido pela sigla "TQQ", porque a grande parte do ano, por razões as mais diversas, os políticos trabalham terça-feira, quarta-feira e quinta-feira no plenário e nas comissões e nos demais dias voltam para suas bases, ou seja, na prática observa-se uma possibilidade de discussões em apenas, aproximadamente, 120 dias.
A discussão das PECs, neste ambiente e neste contexto, não ocorre adequadamente entre os parlamentares, e historicamente não acontece fora da Praça dos Três Poderes. Aliado ao fato de que, se considerada a história do Brasil, do Império à República atual, tivemos oito Constituições — 1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988 —, refletindo alta carga de instabilidade institucional, o que nos permite inferir que isso atinge as emendas e nas Propostas de Emendas Constitucionais, refletindo alta carga de insubmissão normativa ao texto estabelecido da Constituição.
A Constituição é banalizada, e as alterações e propostas sugerem uma “trivialização vulgarizada” do texto constitucional. Uma análise detida permite afirmar, sem medo de errar, com raríssimas e honrosas exceções, que o legislador brasileiro desconhece a Constituição da República, e somadas as duas constatações, traz uma dúvida séria: desconhece porque banaliza/trivializa ou banaliza/trivializa porque desconhece?
Oportuna, assim, a recordação de recente intervenção feita pelo juiz Antonin Scalia, da Suprema Corte dos Estados Unidos, durante o diálogo com um advogado em 14 de janeiro de 2014:
“if you ignore the Constitution often enough, the meaning can change?” (Tradução Livre: “se você ignorar a Constituição muitas vezes, o significado pode mudar?”) [7]
A resposta é relativamente simples, mesmo no âmbito constitucional brasileiro, no contexto de nossa complexidade fática e normativa: a ignorância do texto constitucional, deliberadamente, não tem o condão de alterar seu significado, a menos, é claro, infelizmente, se respeitar a Constituição estiver fora de moda e for considerado brega. Aí então, trivializada, banalizada, prevalecerá a vontade de poder — Wille zur Macht — e não ao vontade de Constituição — Wille zur Verfassung —, [8] momento no qual nos daremos conta de que de 1988 até hoje, ou ainda, de 1824 até hoje, a Constituição tem sido primacialmente, assim, ignorada.
Segundo importante historiador de nossas instituições, Nelson Werneck Sodré, nossas raízes legislativas remontam à xenofobia, ao racismo e ao preconceito para com o trabalhador, na famosa dicção do “homem bom”, que era quem estava apto a governar e a ser juiz dos demais. [9]
Se a Constituição de fato não se interpreta em tiras [10], temos então uma fatalidade inadiável em um universo de quase 10 mil PECs em 25 anos de Constituição, qual seja, a de que o artigo 60 da Constituição Federal está — ou deve estar — permanentemente “encharcado” da substância de que é constituído o artigo 1º da Lei Fundamental. Ou seja, exigir respeito à cidadania, dignidade da pessoa humana, pluralismo político em um contexto em que “todo o poder emana do povo” pressupõe a ordem para uma discussão socialmente alongada e publicizada com a sociedade, sob pena de ser reputada inconstitucional qualquer norma deflagrada de afogadilho, como inequivocamente é o caso pantagruélico de quase 10 mil PECs. É responsabilidade do Judiciário, também, passar a declarar a inconstitucionalidade das normas pela ausência de discussão séria, refletida e publicizada das razões de alteração normativa.
E isto porque este número assombroso de 9.020 Propostas de Emendas Constitucionais nada mais é do que “abuso do poder de legislar”, que poderia ser caracterizado com o trocadilho de “ativismo legislativo”, e para aqueles que acharem o termo “pejorativo” assim como há quem o ache a expressão “ativismo judicial”, poderíamos sugerir, assim como já se sugeriu a alteração desta expressão por “judicial engagement" (engajamento judicial), a substituição daquela por “legislative engagement” (engajamento legislativo). [11]
O engajamento legislativo deveria levar ao aprimoramento dos mecanismos de democracia direta e uma atividade legislativa prévia de discussão seriamente comprometida com o texto constitucional, com reflexão e publicização dos debates e discussões. Estamos pisado em um campo minado, conforme sugestionou Arnaldo Godoy.
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