Diário de Classe

Da carnavalização do Direito ao baile de máscaras no STF

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1 de março de 2014, 8h00

Spacca
Warat e a carnavalização do Direito
Escrever em pleno sábado de Carnaval sobre ensino do Direito exige a convocação de Luis Alberto Warat. Como festa histórica, o Carnaval é a liberação da carne, mais especificamente, dos prazeres da carne. Há uma suspensão, por assim dizer, da ordem estabelecida, período no qual quase tudo é permitido. As máscaras ocultam a identidade, algumas ações e comportamentos são aceitos somente nesse período, enfim, uma vez oculto, o sujeito se faz ver. Em seguida, surge a repressão da Quaresma e o reestabelecimento da ordem.

Para Bakhtin, intelectual russo conhecido por seu conceito literário de polifonia, “o Carnaval é um espetáculo sem ribalta e sem divisão entre atores e espectadores. No Carnaval, todos são participantes ativos, todos participam da ação carnavalesca. Não se contempla e, em termos rigorosos, nem se representa o carnaval, mas vive-se nele, e vive-se conforme as suas leis enquanto estas vigoram, ou seja, vive-se uma vida carnavalesca. Esta é uma vida desviada da sua ordem habitual, em certo sentido uma vida às avessas, um mundo invertido” (Problemas da poética de Dostoiésvski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981, p. 105).

Nesse mesmo sentido, é possível aproveitar a indicação de Warat quando diz que, na sociedade atual, nos parecemos com Forrest Gump, rodeados de circunstâncias tênues, excedidos em transparência e sem capacidade de simbolização. Alguém que vive e vai se deixando levar pela vida, à deriva. Os objetos estão na vitrine, para consumir, bastando um ato, muitas vezes, sem mediação simbólica. Daí que a inveja se instaura, sem referências, na falta, substituindo objetos incessantemente, na lógica do que for útil.

O discurso masculino, viril, do uso e abuso da força e da coerção desfilam como um abre-alas dos Acadêmicos do Direito, vinculado aos discursos normativos que apostam na solução de todos os problemas do mundo a partir da subsunção perfeita entre texto normativo e mundo da vida, não se dando conta de que o mundo é inapreensível e de que aceitar essa impotência é condição de possibilidade para a alteridade. O problema, conhecido de todos e negado por muitos, é que a alteridade promove o encontro com algo estranho e, ao mesmo tempo, tão próximo, a saber, a violência constitutiva da sociedade. Ela se identifica e incorpora, de alguma maneira, o discurso normativista — baseado numa imaginária paz perpétua —, mediante intervenções violentas para, paradoxalmente, promovê-la.

Em seu Manifesto do Surrealismo Jurídico, Warat propunha a reinvenção do ensino do Direito através do amor, da magia, da poesia e da loucura — sem se esquecer dos desvios instaurados pelo inconsciente atravessados pelo desejo —, a partir dos aportes do surrealismo e da carnavalização. Esta mesma “fórmula” se encontra em seu A Ciência Jurídica e seus dois maridos, cuja leitura é desde logo recomendada!

Brincando de mocinho na democracia constitucional
Se uma coisa é a carnavalização do Direito, nos termos propostos por Warat, a partir dos aportes teóricos de Bakhtin, outra, bem diversa, é o baile de máscaras que se observa no Supremo Tribunal Federal.

Talvez boa parte dos magistrados e membros do Ministério Público tenha, quando criança, brincado de mocinho e bandido. A dinâmica era simples: o bem contra o mal. Na luta eterna, idealizada pela mídia e super-heróis, era assim que preenchíamos o imaginário infantil. Flávio Kothe, professor de estética da UnB, aponta que a narrativa trivial encena um ritual banal de vitória do bem contra o mal. Essas dicotomias são dadas desde antes, maniqueisticamente, e beiram ao obsessivo e doentio retorno do mesmo. Diz Kothe: “Sob a aparência de diversão, faz uma doutrinação, em que os preconceitos do público são legitimados e auratizados”.

Isso nos mostra que a convivência democrática não se faz presente para aqueles cujo retorno é sempre atrelado a ocupar o lugar de mocinho, imaginário por excelência, que ficou retido na vida, aparentemente, adulta. A luta por defenestrar o mal, acabar com os ditos “criminosos”, punir todos que fazem objeção à cruzada pela salvação social é o mote. Nessa luta pelo bem, claro, podem existir juízes que dizem não! Há regras a se cumprir. Sabemos, por Agamben, que a necessidade de purificar a sociedade não encontra barreiras. Tal necessidade faz a sua lei, sempre de exceção, contando, também, com o apoio do público, no espetáculo da destruição subjetiva do outro.

Tudo isso, quem sabe, possa servir para entender o que se passa com o julgamento recente da Ação Penal 470 pelo Supremo Tribunal Federal. Não se trata de discutir o mérito da decisão. A decisão está fundamentada, o relator ministro Joaquim Barbosa disse expressamente que aumentou a pena para não prescrever, ou seja, o julgamento foi condicionado pela prescrição, e não pela pena adequada. Daí que a discussão precisa ser recomposta. Realinhar a discussão no campo jurídico, e não sob os holofotes, é um caminho importante em tempos de linchamento público e de pessoas amarradas em postes. O Poder Judiciário tem essa função de evitar a vingança privada, colocando-se como barreira. Isto não significa, todavia, que os juízes possam assumir o papel de mocinhos (e nem de bandidos). Sua função é resgatar o processo civilizatório dentro de limites democráticos. Todavia, nos últimos tempos, sua atuação ganhou contornos de Salvação dos Bons.

Agostinho Ramalho Marques Neto nos pergunta: “Quem nos salvará da bondade dos bons?” O perigo de uma cruzada dessas foi representado na história por Robespierre e outros tantos, para os quais o discurso precisa ser forte, entendendo, todavia, que não adianta o querer convencer. Estão eclipsados em suas fantasias de mocinhos eternos, insuflados por eles mesmos, para os quais, nada adianta dizer…

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