Normas que regulam premiação de agente fiscal são inconstitucionais
29 de maio de 2014, 8h37
Muitos operadores do direito tributário já ouviram falar na premiação dos agentes fiscais de acordo com a sua produtividade, porém a maioria não conhece a sistemática utilizada. Ela está, em regra, baseada na quantidade de apreensões, lançamentos e restrições a créditos. Aqueles que deveriam ser fiscais do cumprimento da lei, em lugar de educarem o cidadão a cumpri-la, são incentivados apenas a emitir atos administrativos imputando-lhes o seu descumprimento.
A tomada de decisão do agente é subjetiva, ou seja, apesar de o Código Tributário Nacional, no seu artigo 3º, afirmar ser ela uma “atividade plenamente vinculada”, nenhum servidor aplica objetivamente a lei, pois, ao fazê-lo, necessariamente confere traços da sua subjetividade. Leis e fatos estão sujeitos às interpretações.
O agente, a todo o momento, precisa tomar decisões: exigir ou não tributo, apreender ou não a mercadoria etc. Nessas situações, pode-se dar que, mesmo de forma inconsciente, diante da possibilidade de auferir um benefício pessoal como consequência da sua decisão, o agente fiscal acabe decidindo por apreender, por autuar, por restringir créditos; enfim, por realizar o ato que lhe dê mais pontos e lhe gere maior ganho financeiro.
Relação comunicacional tributária
A relação tributária é pouco estudada no Brasil numa perspectiva pragmática que analise a interação entre fisco e contribuinte, o jogo de perguntas e respostas. A relação é estudada quase sempre sob o ângulo kelseniano, como consequência da incidência da norma, quando surgem dois polos, um exigindo algo do outro. Pouco se estudou como agem as partes na relação; as razões que impulsionam alguns agentes fiscais a agirem com arbitrariedade, buscando retirar toda a propriedade possível dos contribuintes; e as razões pelas quais esses sonegam tributos e realizam planejamentos desprovidos de substância negocial.
Ao contrário do Brasil, há várias décadas os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália e vários países europeus vêm estudando a relação tributária sob uma perspectiva pragmática, de modo a propor melhorias concretas a essa interação e, consequentemente, de forma a alterar positivamente a realidade social e econômica. A OECD vem ajudando nesse sentido, liderando estudos por meio de um programa intitulado “enhanced relationships”.
Esses países têm buscado maior horizontalidade na relação tributária, pois notaram algo elementar: quanto mais uma parte coopera numa interação, ela tende a obter maior cooperação da outra parte. Esses países têm evitado interpretações esdrúxulas da legislação tributária, têm dialogado com os contribuintes, sobretudo em busca do compliance, de lhe fornecer o máximo de informações para que ele, por sua vontade, se adéque à lei.
A legislação que premia o agente fiscal que autua mais não se enquadra nesse modelo de horizontalidade, a menos que, na melhor das hipóteses, a sistemática esteja atrelada à perda futura de pontos, e até de mais pontos do que aqueles ganhos, para o caso de o auto de infração ser derrubado em qualquer nível administrativo ou até judicial.
A sistemática de premiação dos agentes fiscais no Estado de São Paulo
A Lei Complementar do Estado de São Paulo 1.059/2008, em seu artigo 15, prevê duas formas de remuneração do agente fiscal: uma fixa, que diz respeito ao valor-base (inc. I), e uma variável, que diz respeito ao prêmio por produtividade (inc. II, “a”) e a outras formas que vierem a ser previstas em lei (inc. II, “b”).
O prêmio está previsto de forma genérica na referida lei, tendo os detalhes ficado para a legislação infralegal. Foi difícil encontrar as normas que regem a premiação dos agentes fiscais de São Paulo. Isso apenas foi viável por meio dos diários oficiais. Apesar de a maior parte das resoluções da Secretaria da Fazenda estar disponível no seu site, algumas delas não estão, e dentre essas as que dizem respeito ao prêmio por produtividade.
As Resoluções SF 12/2010, 81/2010 e 25/2011 foram algumas que trataram do tema. Aparentemente, a Resolução SF 28, de 8 de abril de 2013, é aquela que normatiza o prêmio por produtividade do agente fiscal nos dias de hoje. O seu artigo 2º estabelece o prazo de vigência: 01/04/2013 a 31/07/2014.
A resolução traz “Tabelas de Atribuição de Pontos” e “Notas Explicativas”. A Tabela I atribui pontos de acordo com os dias trabalhados em certas atividades. A título de exemplo, “Dia aplicado em reunião de trabalho de equipe de fiscalização” – 68 pontos, e “Dia aplicado no atendimento de demanda formalizada por outro Órgão da Administração Pública” – 135 pontos.
Não vemos problemas na “Tabela I”. Os problemas começam na “Tabela II”, que atribui pontuação por apreensões feitas. Assim, a pontuação, que está vinculada à remuneração variável, melhora, por exemplo, quando o agente apreende mais mercadorias (90 pontos por ato) e quando ele apreende livros com a finalidade de comprovar infração (8 pontos por livro).
Como é possível notar, quanto mais apreender mercadorias, livros e dados digitais, mais remuneração o agente receberá. Não é à toa que ao longo das últimas décadas foram praticadas tantas “sanções políticas”, como a apreensão de mercadorias por tempo muito mais longo do que o de verificação fiscal, atos esses que têm o objetivo de coagir o contribuinte a pagar o ICMS que ele entende indevido.
Se ao menos houvesse uma sistemática razoável, poderia fazer sentido a atribuição de pontos, porém a resolução, no seu ponto II.4, diz apenas o seguinte: “Na hipótese de devolução de mercadorias ou bens apreendidos, sem a correspondente constituição de crédito tributário, o Inspetor Fiscal decidirá sobre a manutenção dos pontos atribuídos quando a apreensão tiver sido necessária para segurança das verificações fiscais”.
Se o ato é derrubado, não há perda automática de pontos, cabendo ainda ao Inspetor Fiscal decidir sobre isso, sem qualquer critério fixado na resolução. O mesmo acontece com a “Tabela III” da resolução. Há atribuição de 270 pontos para a constituição de crédito e para a “Redução de valores submetidos à verificação fiscal, requeridos a título de crédito acumulado, crédito de produtos rural, ressarcimento, restituição de tributos e para autorização de estorno de débitos”. Em resumo, se o contribuinte tem crédito, os agentes fiscais devem procurar, ao máximo, reduzir o seu aproveitamento.
Na “Tabela III” acontece algo semelhante à “II”: não há boa sistemática de revisão dos pontos para evitar excessos nos atos que levam ao seu ganho. Lavrado o Auto de Infração, está constituído o crédito e os pontos são ganhos. Eles apenas serão perdidos, conforme o item III.6, em caso de o crédito ser cancelado ou reduzido em julgamento de defesa ou se não ratificados pelo Delegado Regional Tributário, fatos que são bastante incomuns.
A parcialidade dos julgamentos de primeira instância administrativa no âmbito da Fazenda do Estado de São Paulo é tamanha que os contribuintes e os seus advogados a consideram uma fase pro forma. Pela falta de transparência, não sabemos qual a proporção de vitória dos contribuintes na primeira instância, mas estimamos ser algo abaixo dos 10%.
O agente fiscal tem pleno conhecimento de que, uma vez constituído o crédito, ele ganhará 270 pontos e as chances de eles serem revisados é extremamente pequena. Ora, se o agente recebe mais remuneração pela constituição do crédito e não há um controle rigoroso, há dúvidas de que ele tenderá a autuar indiscriminadamente os contribuintes? É claro que estamos tratando de uma tomada de decisão, sempre subjetiva, então dependerá de cada agente, mas nos parece inegável haver uma forte tendência a autuações arbitrárias.
O agente não ganha pontos quando educa o cidadão ou quando demonstra boa técnica. A sua produtividade está atrelada à limitação de direitos fundamentais. O Sindicato dos Agentes Fiscais de Rendas do Estado de São Paulo (SINAFRESP), no Ofício 008/2012, já teve a oportunidade de criticar o fato de não receber pontos quando induz o contribuinte a realizar o pagamento espontâneo [1].
Os próprios agentes fiscais questionam a falta de pontuação para o caso de pagamentos espontâneos provocados por eles. Não se está aqui a defender que a remuneração variável dos agentes deveria deixar de existir. Muito pelo contrário, pois as remunerações vinculadas à produtividade impulsionam o profissional a trabalhar com mais eficiência. O problema está na sistemática de pontuação, que incita o agente a apreender, a atuar e a restringir créditos, tendendo a uma limitação excessiva dos direitos fundamentais.
O nosso objetivo com este texto é propor o debate sobre as alterações que poderiam ser realizadas nessa legislação e em todas as outras semelhantes, para que o fisco possa ter maior eficiência sem ultrapassar os limites da legalidade e da moralidade. A proposta deste texto não é necessariamente beneficiar contribuintes, como também não é prejudicar a arrecadação, nem os agentes fiscais. Trata-se de proposta, como dizem os nossos colegas da GVLaw capitaneados por Eurico de Santi, “para melhorar o Brasil”!
A inconstitucionalidade do prêmio por produtividade no âmbito do Estado de São Paulo
A análise da Resolução SF 28/2013 nos parece flagrantemente contrária aos interesses da sociedade para a qual o Estado serve, mas, pela tradição positivista brasileira, é importante apontarmos os dispositivos legais que invalidam a Resolução SF 28/2013 no nosso sistema jurídico.
São muitos os dispositivos constitucionais infringidos, contudo, caro leitor, nem cogite discutir esses temas administrativamente, pois o entendimento dos órgãos fiscais é o de que não se pode questionar a lei perante a Lei Maior, ou seja, não se interpreta os atos legais perante a Constituição nos processos administrativos, que estariam sujeitos a outro tipo de sistema jurídico, um sistema unicamente infraconstitucional, conforme já criticamos anteriormente [2].
A Resolução SF 28/2013 fere o seguintes dispositivos constitucionais, sem prejuízo de ferir ainda outros: art. 5º, caput; art. 5º, II; art. 5º, XXII, art. 37, caput (várias vezes) e art. 150, I. Em breves linhas, apenas para efeito de provocação do debate, tratamos abaixo de cada um deles.
O art. 5º, caput, e o art. 5º, XXII, da CF/88 situam o direito de propriedade como um importante direito fundamental. Como já dito em outras oportunidades [3], esses direitos previstos no art. 5º devem ter máxima eficácia.
Boa doutrina internacional e nacional sustenta que os direitos fundamentais geram um ônus argumentativo em seu favor, sendo necessária justificação robusta para limitá-lo. Os excessos estatais precisam ser evitados ao lidar com direitos fundamentais do cidadão.
Uma legislação que incita o agente a apreender, autuar e restringir o aproveitamento de créditos ao máximo, sem maiores controles, nos parece ferir diretamente os direitos de liberdade e propriedade.
A Resolução SF 28/2013 incita o agente a ir além da lei nas suas interpretações, ignorando o princípio da legalidade (art. 5º, II, da CF/88) e o seu corolário da tipicidade tributária cerrada (art. 150, I, da CF/88). Na dúvida, mesmo sem ter os elementos claros na lei, o agente fiscal tenderá a apreender, autuar e restringir créditos.
A sistemática de premiação prevista na Resolução SF 28/2013 é um exemplo da corriqueira postura do Estado no Brasil de agir com base em interesses que não necessariamente repercutem benefícios para a sociedade. Fere-se com essa sistemática a legalidade e a moralidade administrativa, e fere-se um modelo razoável de gestão para busca da eficiência (art. 37, caput).
A eficiência da Administração Tributária não se resume à arrecadação de mais e mais receitas. A sua eficiência decorre também de promover atividades de arrecadação que não firam os direitos do cidadão. A eficiência envolve promover o mínimo de contencioso, que gera gastos para Estado e sociedade; agir com transparência e dar educação tributária para que o cidadão infrinja o mínimo possível as normas; dentre tantas outras coisas.
O étimo do termo “servidor” indica aquele que serve, que colabora. O servidor público é alguém que deve servir à sociedade, contribuir para fazê-la melhor, mais do que qualquer outro cidadão, que tem apenas, em princípio, um dever moral de fazê-lo. No entanto, quando estamos tratando da Administração Tributária, o que se vê, em regra, é um ambiente de conflito, de utilização da máquina estatal para benefícios do órgão ou pessoais.
A legislação que premia os agentes fiscais é reflexo e, ao mesmo tempo, causa disso. É preciso criar legislações, e meios para sua eficácia, que propaguem valores como cooperação, transparência, educação e respeito ao cidadão. Enquanto as autoridades maiores dos órgãos fiscais não lutarem por uma melhor atuação da classe, a sociedade como um todo — e isso inclui os próprios servidores, seus familiares e amigos — sofrerá com uma relação tributária muitas vezes pautada na desconfiança e na trapaça.
Custa perceber que a relação tributária, como qualquer outra, é interação, perguntas e respostas que se influenciam mutuamente, e que os melhores resultados advirão quando uma das partes tomar as medidas corretas para que haja maior simetria na relação e um sentimento de parceria. A vida mostra que, a longo prazo, é muito mais fácil obter resultados positivos numa relação em que se ganha a confiança da outra parte do que naquela em que se entra em conflito.
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[1] “4. RECOLHIMENTO ‘ESPONTÂNEO’ INDUZIDO PELA FDT – A Tabela atual não contempla os trabalhos da FDT que culminam em recolhimento ‘espontâneo’ por parte do contribuinte ou mesmo quando a ação fiscal resulta em alteração do saldo devedor (para maior) na GIA. Tudo sem lavratura de Auto de Infração, mas resultante do trabalho da FDT. Foram feitas duas propostas:
4.1 Que seja feita Tabela, semelhante àquela do Crédito Tributário, para os valores recolhidos por GARE resultantes do trabalho do AFR.
4.2 Que essa mesma Tabela contemple os valores lançados a débito na GIA do contribuinte resultantes do trabalho do AFR” – os grifos são do original (Ofício Sinafresp nº 008/2012. Disponível em: <https://www.google.com.br/url?q=http://www.sinafresp.org.br/anexo-de-noticias/documento-oficio-deat&sa=U&ei=131yU8abEZGeqAbJsIGIDg&ved=0CCEQFjAA&usg=AFQjCNEivA8kEqct_Z8AgcfODDjuNdvUfw>. Acesso em: 13. mai. 2014, p. 4).
[2] VILLAS-BÔAS, Marcos de Aguiar. A inconstitucionalidade do art. 25 da Lei nº 11.941/2009 e o controle de constitucionalidade realizado pelo CARF. Revista Dialética de Direito Tributário nº 188.
[3] VILLAS-BÔAS, Marcos de Aguiar. In dubio pro contribuinte: visão constitucional em busca da proteção dos direitos fundamentais. São Paulo: MP Editora, 2012; e VILLAS-BÔAS, Marcos de Aguiar. In dubio pro contribuinte: continuação do debate. Revista Dialética de Direito Tributário nº 220.
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