Parcerias no Judiciário

Preconceito e incompreensão explicam negativa do CNJ em reconhecer PPPs

Autores

  • Andréa Lavourinha

    é advogada do Portugal Ribeiro Advogados formada pela FGV Direito Rio e foi aprovada para o programa de LL.M. da Harvard Law School de 2014/2015.

  • Mauricio Portugal Ribeiro

    é sócio do Portugal Ribeiro Advogados especialista na estruturação e regulação de projetos de infraestrutura autor de vários livros e artigos sobre esse tema mestre em Direito pela Harvard Law School ex-professor de Direito de Infraestrutura da FGV-RJ.

28 de maio de 2014, 9h45

Pode o Poder Judiciário celebrar parcerias público-privadas (PPPs)? Segundo uma recente e claudicante decisão do Conselho Nacional de Justiça, não.

O tema foi julgado pelo CNJ após consulta apresentada pela Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Maranhão em 2011, relativa à formalização de uma PPP para a construção e aparelhamento de dez novos fóruns em comarcas do interior, de uma sede para os juizados especiais e de um complexo judiciário para varas da Infância e Juventude, além da reforma da sede do TJ-MA.

Na consulta, a Corregedoria do TJ-MA argumentou que “a adequada reestruturação física e a disponibilização de equipamentos de informática exigem investimento de grande monta, tal como a construção de novos fóruns, a modificação na logística de distribuição de materiais, no gerenciamento do patrimônio”. A racionalidade por trás da utilização de PPPs advém da carência de recursos, insuficientes para garantir a prestação jurisdicional em determinadas localidades e comportar o número de funcionários existente.

Além do Maranhão, os estados de São Paulo, do Paraná e de Pernambuco também já haviam sinalizado interesse em celebrar PPPs para aprimorar a infraestrutura necessária à prestação do serviço jurisdicional.

No Paraná, o Judiciário havia demonstrado interesse em implantar o Centro Judiciário de Ahú por meio de uma PPP. No estado de São Paulo, três empresas apresentaram, em 2013, estudos de viabilidade para uma PPP para construção e gestão de fóruns da Justiça Estadual, após publicação de chamamento público. Em Pernambuco, no fim de 2013, um dos projetos prioritários que figurava na carteira de PPPs visava à construção e operação da nova sede para o Tribunal de Justiça do Estado e para o Fórum Criminal de Recife.

Vale notar que as parcerias público-privadas para atividades de suporte à atividade jurisdicional têm sido amplamente utilizadas nos países desenvolvidos, particularmente para a construção, manutenção, serviços de vigilância e suporte administrativos dos prédios nos quais funcionam os órgãos do Poder Judiciário. Não se trata de inovação brasileira. A rigor, as PPPs para provimento de infraestrutura e prestação de suporte administrativo ao Judiciário são muito semelhantes às PPPs para provimento de infraestrutura e suporte administrativo para funcionamento de repartições do Poder Executivo. No Brasil, já há contratos desse tipo assinados e em plena execução para implantação de centros administrativos. O exemplo que nos vem à mente é o do Centrad, o novo centro administrativo do governo do Distrito Federal, que se encontra em estágio final de construção. Mas, como se verá a seguir, a decisão do CNJ sequer notou isso.

Após o recebimento pelo CNJ da consulta realizada pelo TJ-MA em 2011, o então conselheiro do CNJ Relator Paulo Tamburini respondeu afirmativamente à consulta. Considerou possível a realização de PPP pelo Judiciário, na modalidade administrativa ou patrocinada, desde que respeitados os limites legais e o condicionamento do contrato de parceria à regulamentação específica. Segundo o ex-conselheiro, a constituição de uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) para a PPP seria “incompatível com o Estatuto da Magistratura e a autonomia do Poder Judiciário”. Não há explicação do porquê dessa suposta incompatibilidade. A formação de SPE diz respeito à organização interna, societária, do parceiro privado. Significa apenas que a empresa contratada para a prestação do serviço tem estatutariamente apenas a finalidade de prestar o serviço objeto do contrato de PPP. Em nada afeta à prestação em si dos serviços e não desafia qualquer princípio ou regra do nosso direito. Não nos parece que sequer seja possível haver alguma relação entre isso e o Estatuto da Magistratura…

Já o ministro aposentado Ayres Britto, também conselheiro do CNJ à época, respondeu negativamente à consulta. Mas o mais desalentador, na nossa opinião, foi a superficialidade dos argumentos utilizados.

Primeiramente, o então ministro afirmou que o desempenho das atividades-fim do Poder Judiciário não se compatibiliza com concessões patrocinadas ou administrativas. Conforme expõe, a atividade jurisdicional é incompatível com a ideia de delegabilidade para a iniciativa privada. Por conta disso, afirma que só seria possível argumentar e discutir a utilização de PPPs para atividades-meio do Poder Judiciário. Até aqui concordamos com o Britto. De fato, as PPPs só deveriam ser utilizadas para a contratação de atividades-meio do Judiciário, como a construção e a disponibilização de prédios públicos, com serviços que, no mercado privado, são conhecidos como “facility management”: manutenção predial, limpeza, vigilância, portaria, recepção e apoio administrativo.

O ministro argumentou ainda que as PPPs foram originalmente concebidas como modalidade contratual entre órgãos e entidades administrativas do Poder Executivo e entes privados e, por conta disso, a lei federal sobre o tema refere-se à “Administração Pública” (em maiúsculo). O seu argumento implica dizer que, se a Lei Federal de PPP tivesse utilizado a expressão administração pública com letras minúsculas, seria viável o Poder Judiciário contratar as PPPs. Apesar desse argumento não nos surpreender — em vista do formalismo tão comum nos nossos operadores do Direito —, achamos que uma decisão tão importante sobre a possibilidade de utilizar o potencial das PPPs para aumentar a eficiência da prestação do serviço jurisdicional não deveria ser tomada por esse tipo de peripécia hermenêutica.

O ministro justificou ainda sua decisão afirmando que “não cabe aos órgãos do Poder Judiciário gerir os interesses que a massa dos administrados não cessa de requestar”. Enfatiza, ainda, que essa função é do Poder Executivo. Essa premissa ignora que o Judiciário é interessado direto na prestação jurisdicional mais eficiente, viabilizada por estrutura física e suporte adequado. Por que, então, transferir ao Executivo a incumbência de gerir contratos de PPP, cujo maior interessado e beneficiário é o próprio Judiciário — além da população?

Britto também entende que a submissão das atividades do Poder Judiciário a órgão instituído por ato regulamentar do Poder Executivo — o Comitê Gestor de Parceria Público-Privada Federal (CGP) — fere a separação de poderes. Quanto a esse ponto, é preciso ressaltar, em primeiro lugar, que o CGP é um órgão criado pela parte da Lei Federal de PPPs que se refere apenas à estrutura montada na União para coordenação do Programa Federal de PPPs. Portanto, as disposições da Lei Federal de PPPs que tratam do CGP simplesmente não se aplicam aos estados da Federação, que podem, nas suas respectivas leis, estabelecer a forma que acharem conveniente para coordenar os seus respectivos programas. Nesse contexto, a existência do CGP, a sua previsão e disciplina na Lei Federal de PPPs em nada deveria tocar a possibilidade de os estados celebrarem contratos de parcerias público-privadas. Na sua decisão, o ministro não parece perceber isso.

Ainda que o argumento do ministro pudesse ter alguma relevância para se decidir se seriam viáveis as PPPs no Poder Judiciário no âmbito da União — o que achamos que não vale sequer a pena discutir aqui em vista das notórias dificuldades da União de estruturar e celebrar qualquer parceria (nenhuma foi celebrada até aqui) —, além de aparentemente não ter notado que o seu argumento atingia apenas a União, o ministro não parece ter analisado a Lei de PPP do Maranhão e a sua estrutura de gestão do Programa de PPP para checar se a estrutura de gestão do programa eventualmente estabelecido por sua lei estadual era compatível com a autonomia, a independência e a harmonia entre os Poderes.

No que toca especificamente às concessões patrocinadas, o ministro argumentou que o instituto da tarifa, a figura do usuário e a relação de serviço público são atividades estranhas ao Judiciário. Nisso nos parece que o ministro está correto. Realmente, não faz sentido a utilização das concessões patrocinadas no Poder Judiciário, pois a utilização dessa modalidade contratual pressupõe a existência de uma atividade definida como serviço público econômico, nos termos do artigo 175 da Constituição Federal.

Essa impossibilidade de utilização da modalidade de concessão patrocinada para contratações de PPPs no âmbito do Poder Judiciário não tem qualquer influência sobre a possibilidade de utilização da modalidade de concessão administrativa. É que as concessões administrativas podem ser utilizadas para contratação de quaisquer serviços à administração pública, mesmo que não configurem serviço público econômico, nos termos do artigo 175 da Constituição Federal. Seria, portanto, plenamente possível a contratação pelo Poder Judiciário de concessão administrativa para atividades-meio, de suporte à atividade de jurisdicional. Basicamente, todas atividades que o Poder Judiciário já contrata por meio de contratos de obra e/ou de prestação de serviços podem ser objeto de contratos de concessão administrativa.

Note-se que o ministro no seu voto não se refere diretamente às concessões administrativas. Ele remete, na sua decisão, ao §2º do art. 2º da Lei Federal de PPP (item 12, de sua decisão) — o qual define a concessão administrativa —, mas faz menção aos contratos de obras públicas, os quais simplesmente não são tratados no dispositivo. Com efeito, os contratos de obras públicas estão disciplinados na Lei 8.666/1993. Em outras palavras, o ministro confundiu o contrato de concessão administrativa com os contratos de obras públicas. Vamos considerar que isso foi apenas um erro de digitação no voto do ministro, pois, com o seu histórico, não podemos imaginar que tenha cometido tal imperícia.

Por fim, o ministro menciona que entende que as fontes de financiamento do Poder Judiciário são apenas o orçamento e as custas e emolumentos, constitucionalmente definidos. Não entendemos qual a consequência disso para a discussão sobre a viabilidade jurídica da contratação de PPPs para atividades de suporte à prestação do serviço jurisdicional. Talvez o ministro tenha imaginado que seriam necessárias outras fontes de financiamento para se viabilizar garantias de pagamento às PPPs. Não deixou, contudo, isso explícito na decisão. Não nos parece, contudo, que o fato dessas serem as únicas fontes de receita do Poder Judiciário possa ser um argumento para proibição de PPPs. No máximo, isso poderia ser um elemento fático a dificultar a estruturação das PPPs para atividades de suporte ao Judiciário. Mas não uma razão para a sua proibição.

O conselheiro Bruno Dantas, por sua vez, apresentou voto parcialmente divergente do voto do ex-ministro Ayres Britto. Segundo ele, a produção acadêmica sobre as PPPs é restrita e a jurisprudência incipiente. Por consequência, entendeu esse conselheiro que a principal questão a ser enfrentada não se refere à possibilidade ou não de o Judiciário realizar PPPs, mas às condições que o contrato de PPP celebrado pelo Judiciário deve conter. Em razão dessa questão de ordem, suscitada pelo conselheiro, houve conversão do feito em diligência, a fim de se coletarem dados em consulta pública e o julgamento ficou sobrestado.

Em seguida, o CNJ optou por instituir uma comissão destinada a colher informações e apresentá-las ao Plenário a fim de subsidiar a decisão acerca da possibilidade de celebração de PPPs pelo Judiciário — com um prazo inicial de 30 dias. Posteriormente, em 2012, foi realizada audiência pública com o fim de colher subsídios e opiniões da sociedade que pudessem contribuir com tema.

O desfecho foi noticiado em março deste ano: o CNJ decidiu, por fim, que o instrumento das PPPs não deve ser usado pelo Poder Judiciário. A maioria dos conselheiros votou em consonância com os argumentos apresentados pelo ministro Ayres Britto, que como comentamos acima mostra uma compreensão, no mínimo, superficial do tema.

No total, responderam negativamente à consulta o ministro Ayres Britto; a então corregedora nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon; os conselheiros Carlos Alberto, Neves Amorim, Ney Freitas, Silvio Rocha, Wellington Saraiva, Gilberto Valente Martins, Jefferson Kravchychyn, Jorge Hélio, Guilherme Calmon e Emmanoel Campelo. Já os conselheiros Rubens Curado e Fabiano Silveira acompanharam o voto do ex-conselheiro Paulo Tamburini.

Em resumo, os seguintes pontos não ficam claros nos votos exarados pelos conselheiros:

· Por que motivo a constituição de uma sociedade de propósito específico seria incompatível com o Estatuto da Magistratura e a autonomia do Poder Judiciário, conforme menciona o conselheiro Paulo Tamborini?

· Por que uma interpretação excessivamente formal, fundada na grafia do termo administração pública — se em maiúscula ou minúscula — deveria prevalecer sobre outras interpretações possíveis, que primam pela melhoria na prestação do serviço jurisdicional?

· Por que o ministro Ayres Britto faz alusão a contratos de obras públicas ao se referir ao art. 2º, §2º, da Lei Federal de PPP que trata apenas das concessões administrativas?

· Por que o fato do Poder Judiciário ter como fonte principal de receita o orçamento público e as custas e emolumentos o proibiria de celebrar PPPs?

· O que tem a ver o CGP, órgão que coordena apenas o Programa Federal de PPP, com a possibilidade de estados da Federação realizarem parcerias no Poder Judiciário?

Independentemente da nossa divergência em relação à posição do CNJ, a baixa qualidade da decisão do CNJ denota desmazelo no tratamento do tema e, na nossa opinião, sinaliza um misto de preconceito ideológico contra as PPPs e incompreensão a respeito do seu funcionamento e da contribuição que podem dar para a melhoria da prestação jurisdicional. Só nos resta esperar que o tema seja novamente apreciado pelo CNJ no futuro, com o cuidado que merece.

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    é advogada do Portugal Ribeiro Advogados, formada pela FGV Direito Rio e foi aprovada para o programa de LL.M. da Harvard Law School de 2014/2015.

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    é advogado especializado em contratos de concessões e PPPs, sócio de Portugal Ribeiro Advogados e autor do livro Concessões e PPPs: melhores práticas em licitações e contratos (Editora Atlas, São Paulo, 2011) e Comentários à Lei de PPP – Fundamentos econômico-jurídicos (em coautoria com Lucas Navarro Prado; Malheiros Editores, São Paulo, 2011).

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