Assistência judiciária

"Modelo brasileiro garante paridade entre defesa e acusação"

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25 de maio de 2014, 7h22

Spacca
Garantir uma assistência judiciária eficiente para a população sem quebrar os cofres públicos é um dos desafios dos sistemas jurídicos modernos. Na Europa, o assunto ganhou os holofotes com a crise econômica que varreu o continente. O defensor público no Rio de Janeiro Cleber Francisco Alves pesquisa o tema há mais de 10 anos, tempo suficiente para afirmar: “Não existe um modelo padrão ideal. Cada país precisa descobrir o que é mais adequado para a sua realidade”.

Nesse ponto, o Brasil vai bem. Para Alves, o modelo de Defensoria Pública é o mais apropriado para a realidade brasileira. Ele permite, com menos recursos, abranger um maior número de pessoas. Além disso, garante paridade entre defesa e acusação, já que tanto o promotor como o defensor foram selecionados por meio de concurso público.

Cleber Francisco Alves vai passar o segundo semestre de 2014 em Londres pesquisando o modelo inglês de assistência judiciária, como parte do seu pós-doutorado. Para ele, o sistema inglês comprova que, com dinheiro, qualquer modelo dá certo. Mas, quando o país entra em crise, o sistema de judicare —que tem advogados privados defendendo carentes e sendo pagos pelo Estado — pode não ser a melhor alternativa. Principalmente quando, para conter gastos, o poder público começa a cortar honorários de quem faz assistência judiciária. O resultado disso é que os bons profissionais deixam de atender carentes e só aqueles que não conseguiram uma boa colocação no mercado continuam na assistência.

Em entrevista à Consultor Jurídico, Alves comparou o sistema de Defensoria Pública no Brasil com o judicare na Europa. Ele ressaltou os defeitos e vantagens de cada um e rebateu críticas ao modelo brasileiro. Uma dessas críticas é que defesa feita por um funcionário do Estado não pode ser independente. “Os vícios que podem atingir a Defensoria — falta de independência e o defensor virar um burocrata — também podem atingir o Ministério Público e a magistratura”, disse. A maneira de contornar esse risco é garantir autonomia às instituições.

Cleber Francisco Alves tem 45 anos. Há 20, é defensor público no Rio de Janeiro e professor na Universidade Católica de Petrópolis. Concluiu seu mestrado sobre assistência judiciária em 1999 pela Pontifícia Universidade Católica do Rio. Para o doutorado, feito pela mesma universidade, passou um período morando nos Estados Unidos e na França. A ideia era comparar o modelo de assistência judiciária dos dois países com o Brasil. O resultado virou um livro: Justiça para todos! Assistência Jurídica Gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil.

Leia a entrevista:

ConJur — Qual é o modelo de assistência judiciária ideal?

Cleber Francisco Alves — Depois de todos os estudos que eu fiz, não consigo conceber um modelo padrão ideal. As realidades econômicas e sociais são muito diferentes, assim como a cultura jurídica de cada país. Cada um precisa descobrir um modelo que potencialize virtudes adequadas às suas necessidades e neutralize defeitos. Óbvio que, com abundância de recursos, qualquer modelo é bom. Vamos pegar o modelo inglês, que é o judicare, expressão usada por Mauro Cappelletti [jurista italiano] para designar o sistema em que advogados privados são remunerados pelo poder público para defender carentes. Esse modelo é muito eficiente com abundância de recursos porque é caro. É difícil fazer um controle de qualidade de um serviço tão pulverizado, com advogados espalhados por todo o país. Quando começa a haver escassez de recursos, aí aparecem os defeitos desse modelo. Um desses defeitos é que sobram para o sistema apenas advogados que não têm boa colocação no mercado e, provavelmente, têm uma qualificação profissional inferior. No modelo adotado na América Latina, de Defensoria Pública, a virtude é que há um processo de seleção rigoroso dos profissionais que vão prestar o serviço, similar ao feito para as demais carreiras jurídicas. E ele tem se mostrado mais econômico também.

ConJur — Quer dizer, enquanto países com Defensoria Pública fazem um controle de qualidade prévio, em lugares como a Inglaterra existe apenas uma fiscalização depois que o serviço já foi prestado?

Cleber Francisco Alves — Na Inglaterra, também existe um controle prévio, que é exigir como pré-requisito que quem faz assistência judiciária seja um advogado habilitado. Mas esse modelo não assegura paridade na profissão ou entre o defensor e o promotor, por exemplo. Eu não sei valores, mas certamente o poder público paga menos que o setor privado. Os advogados muito bons são selecionados pelo mercado, têm uma grande quantidade de clientes e não vão reservar tempo para atender casos pagos pelo Estado. Já no modelo de Defensoria Pública, dá para assegurar uma paridade. É óbvio que há defensores no início da profissão que ainda são inexperientes, mas o mesmo acontece com os juízes. A dinâmica desse sistema não traz para a função quem é menos qualificado.

ConJur — Mas, mesmo em um modelo de Defensoria Pública como no Brasil, o advogado ainda consegue ganhar mais no setor privado. Por que um bom profissional escolhe a Defensoria, então? Por vocação?

Cleber Francisco Alves — Sim, assim como juiz e promotor. Daí a paridade entre as categorias. Trata-se de um serviço prestado pelo Estado, que não gera uma discriminação daqueles que serão os atores protagonistas do serviço jurídico. Mas é óbvio que, se a remuneração é muito baixa, a vocação não é suficiente para atrair bons profissionais. É o que acontece em estados do Brasil que têm a Defensoria fragilizada. A Justiça é um serviço público, acusação e defesa têm de ter paridade de armas.

ConJur — O modelo de Defensoria Pública é bom para a realidade brasileira ou existe algum melhor?

Cleber Francisco Alves — É o mais adequado porque permite igualdade de tratamento e uma abrangência próxima da necessidade, mesmo com recursos limitados. Mas eu tenho consciência de que ele está muito aquém do desejável. Em alguns estados, falta um comprometimento dos defensores. Eu sou defensor público e digo que é preciso se precaver sempre de assumir a postura de um funcionário público burocrata. Esse risco é real, somos seres humanos. Outro vício apontado por críticos do nosso modelo é a ausência de independência, no sentido de que o funcionário público não pode empenhar adequadamente uma função de combatividade na defesa dos seus assistidos. Eu acho isso perfeitamente contornável, desde que se assegurem prerrogativas e garantias legais, inclusive orçamentárias e financeiras, para que não haja retaliações à Defensoria Pública e ao defensor quando ele defender interesses que não são os do Estado.

ConJur — Mais ou menos como acontece com o Ministério Público, que muitas vezes age contra os interesses do poder público.

Cleber Francisco Alves — Exatamente, tanto o Ministério Público como a magistratura. Embora o juiz e o promotor sejam funcionários do Estado, não se submetem a ele. Os vícios que podem atingir a Defensoria — falta de independência e o defensor virar um burocrata — também podem atingir o MP e a magistratura.

ConJur — O modelo brasileiro funcionaria na Inglaterra?

Cleber Francisco Alves — No final da década passada, quando eu cogitei fazer doutorado na Inglaterra, o país estava com alguns projetos-piloto para ver se o modelo de Defensoria Pública evitaria a crise pela qual passa a assistência judiciária hoje. E, pelo que eu li, esses primeiros experimentos não foram bem sucedidos porque os defensores públicos tinham que concorrer com advogados privados. A minha hipótese é de que, na mentalidade do cidadão, o que é privado é melhor que o que é público.

ConJur — Outro ponto que certamente incomodaria os ingleses é o fato de que, com o modelo de Defensoria Pública, o jurisdicionado não pode escolher quem vai defender seu caso. O governo britânico propôs tirar esse direito de escolha, mas rapidamente desistiu diante dos protestos.

Cleber Francisco Alves — Essa é uma das críticas contra o modelo, com o argumento de que fere um direito fundamental do cidadão de escolher. É um foco equivocado porque a efetividade da assistência é mais importante do que o direito de escolha. Não adianta poder escolher dentro de um rol de advogados menos qualificados. O ideal seria poder escolher um figurão e o Estado pagar, mas nenhum modelo pode se dar esse luxo. Se o cidadão não tem dinheiro, não escolhe a escola que o filho vai estudar, não escolhe por qual médico vai ser atendido no hospital. E, ainda que tenha, não escolhe qual juiz e promotor vão lidar com seu processo.

ConJur — Compromete a defesa do cidadão o fato de não ser designado um único defensor para cuidar do processo do começo ao fim? Quer dizer, o jurisdicionado é representado pela instituição que se mostra, cada vez, na figura de uma pessoa diferente.

Cleber Francisco Alves — Não há problema nisso. O importante é que o cidadão tenha uma defesa efetiva, a melhor possível. Nos escritórios grandes, também não há um advogado único para cuidar do caso do começo ao fim. É uma equipe. Isso de o processo ficar nas mãos de um único profissional não é a regra geral do mercado. Na Inglaterra, por exemplo, é o barrister que faz sustentação oral e ele quase não tem contato com o cliente.

ConJur — O modelo inglês funcionaria no Brasil?

Cleber Francisco Alves — Eu creio que não. Exigiria um volume de recursos que o nosso país não pode se dar o luxo de despender. Embora não existam pesquisas conclusivas sobre isso, eu considero que o modelo de judicare exige muito mais recursos para funcionar de maneira minimamente adequada do que exige uma Defensoria Pública. Com um órgão público, o Estado pode planejar quanto vai gastar. No judicare, a demanda vai aparecendo conforme os advogados vão dizendo que prestaram serviço e o poder público só pode tentar controlar se impedir determinados casos de serem atendidos por assistência judiciária. Na Defensoria Pública, não existe esse problema. Não sejamos ingênuos, claro. Se há uma explosão de demanda, não dá para aumentar o número de defensores rapidamente, o que acaba gerando um represamento. Mas o mesmo acontecer nas outras carreiras jurídicas.

ConJur — Na Inglaterra, um cidadão pode se defender na Justiça sozinho. Isso não ajuda a controlar essa demanda?

Cleber Francisco Alves — Sim, mas daí surge um ponto fundamental: o que é o acesso efetivo à Justiça? Formalmente, o cidadão continua tendo acesso, mas ele não conhece seus direitos, os ritos, os procedimentos. Se ele estiver litigando contra uma pessoa assistida por um advogado, vai ser prejudicado. Pelo que tenho acompanhado, isso não tem acontecido na área criminal já que, por conta das obrigações assumidas com a União Europeia, a Inglaterra não pode negar o direito a um advogado.

ConJur – Não negam necessariamente, mas baixaram o teto salarial para definir se um réu pode ser aceito ou não no sistema de assistência judiciária. Então quem ganha um pouco acima do teto, mas não tem condições de pagar um advogado particular, fica desassistido.

Cleber Francisco Alves — Essa é outra diferença entre os modelos de assistência judiciária. Conforme a régua sobe ou desce, determinado grupo de pessoas fica de fora. Essa oscilação depende das possibilidades orçamentárias. Na Inglaterra, me parece que não existe flexibilidade para atender uma realidade de vida que não é presa aos centavos. Além disso, há uma avaliação do mérito da causa, para saber se o Estado deve ou não gastar dinheiro com ela. Ora, na perspectiva do cidadão, a causa pode ser a mais importante da vida dele. Já o modelo brasileiro tem a flexibilidade como virtude. A nossa Constituição não estabelece um parâmetro de que só quem ganha até tantos salários mínimos têm direito. É verdade que existem estados pelo país que fixam um teto, mas não há um parâmetro objetivo na lei. Nosso modelo é aberto para evitar injustiças.

ConJur – Todo mundo tem de ter direito a assistência judiciária gratuita?
C
leber Francisco Alves — Assistência judiciária é para quem precisa só. Eu acho que devem existir critérios, mas eles não podem ser muito restritos.

ConJur — Seria possível um modelo com coparticipação, mais ou menos como acontecem com os planos de saúde: o segurado paga uma parte dos gastos médicos e o plano, o resto? O cidadão contribuiria com o que pode para pagar os honorários advocatícios e o Estado complementaria o pagamento…

Cleber Francisco Alves — É uma hipótese, mas eu sinceramente não tenho opinião formada sobre isso e não há também pesquisas empíricas sobre as vantagens e desvantagens de tal modelo. Acho que poderia gerar distorções no sentido de que a pessoa acha que está pagando e não sabe quanto tem que pagar ou mesmo acabar tendo cobrança por fora.

ConJur — Na Inglaterra, entidades voluntárias assumem casos rejeitados pela assistência judiciária. No Brasil, um advogado não pode atender sem cobrar e precisa respeitar a tabela de honorários mínimos. Como o senhor vê isso?

Cleber Francisco Alves — Isso tem sido muito polêmico. Eu sustento que, no Brasil, a Advocacia pro bono é livre. É um direito do advogado prestar um serviço caritativo. Isso faz parte da ética da advocacia universal. É um preceito que vem desde a Idade Média, no sentido de que o reclame de justiça não pode ser negado por quem é o provedor de justiça.

ConJur — O senhor foi até os Estados Unidos estudar assistência judiciária lá. Como é o modelo americano?

Cleber Francisco Alves — O modelo americano é bastante diversificado, porque cada estado tem autonomia para estruturar o seu sistema. A tendência nacional é uma segmentação entre a área cível e a criminal. Nesta, prevalece o entendimento estabelecido pela Suprema Corte em 1964, de que o cidadão tem direito a ter uma assistência jurídica toda vez que correr o risco de ser preso. Se a pena para o crime é apenas multa, esse direito não é garantido. Antes do julgamento da Suprema Corte, apenas alguns estados ofereciam assistência judiciária. Depois, praticamente todos começaram a oferecer e mais ou menos no esquema do Brasil, com defensor público. Já no campo cível, não existe nenhuma decisão da Suprema Corte dizendo que o cidadão precisa estar assistido por um advogado. Os estados não estão obrigados a garantir a assistência judiciária. Esse serviço, na área cível, é visto quase como uma caridade. O governo federal tem um programa que subsidia recursos para organizações estatais ou não governamentais que façam assistência judiciária na área cível, mas o serviço depende da disponibilidade de recursos e acaba sendo aleatório.

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