Imobilismo processual

Juiz brasileiro opta pela replicação e automatização

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24 de maio de 2014, 12h26

[Artigo originalmente publicado no jornal Valor Econômico desta sexta-feira (23/5)]

O clássico conto do século XIX Bartleby, o escriturário – uma história de Wall Street, de Melville, o autor de Moby Dick, que para muitos é o precursor do existencialismo, induz uma triste analogia com o atual exercício da jurisdição no Brasil.

Bartleby é um escrevente copista, que trabalha em um entediante escritório de advocacia e se recusa a fazer outras tarefas, que não cópias de documentos, com a misteriosa frase "preferia não fazer". Bartleby acaba na pura catatonia, morrendo de fome por inanição, na cadeia. O conto é, segundo Borges, uma das obras primas da literatura universal, e está sujeito a um sem número de interpretações.

Cobrado por sua ineficácia, o juiz brasileiro está se transformando no juiz-Bartleby, o juiz que "prefere não" repensar seu quefazer diário, optando pela replicação, pela automatização, pela decisão-cópia e pela jurisprudência defensiva. Afogado em quase 100 milhões de processos, a produção em série parece ser a única resposta possível, ao passo que estatísticas dos serviços médicos dos tribunais revelam um aumento preocupante do número de magistrados adoecidos pelo stresse.

Os órgãos responsáveis pelo governo do Poder Judiciário brasileiro têm mais do que simplesmente incentivado, têm exigido dos juízes esse comportamento replicante, quantitativo, que acaba por reduzir a sentença a um produto serial e os direitos a mercadoria. Transita-se na pura indistinção entre cidadania e mercado.

E o pior é que nem na orla da produção privada prevalece mais a reprodução. É a emergência da inovação que agrega mais valor. A produção em série está sujeita, como se sabe, à clássica lei econômica dos rendimentos decrescentes.

Na pirotecnia jurídica aparecem críticas teóricas de toda ordem. Chega-se a transpor da doutrina norte-americana, de forma descontextualizada, o mito do ativismo judicial, quando na verdade, salta aos olhos que o juiz é cada vez mais passivo e impotente, diante do avassalador tsunami de microconflitos em massa que inunda os foros e tribunais.

A doutrina nacional tem uma colossal lacuna quanto a esses problemas candentes do processo brasileiro. Tem se dedicado cada vez mais ao principiologismo abstrato, fingindo que o problema não é com ela, quando a questão é de todo o sistema de justiça e não apenas do Judiciário, sistema que pressupõe o envolvimento de todos os atores do processo, quais sejam, Judiciário, advocacia, pública e privada, Ministério Público, doutrina, peritos, polícia, ministério e Secretarias de Justiça.

Esse espaço vazio de ideias e ações acaba sendo ocupado pelo puro gerencialismo processual, decalcado da iniciativa privada, sem qualquer inflexão republicana. A informatização, por exemplo, é reduzida a mera automatização de atos forenses, quando, na verdade, o que de mais promissor pode apresentar é a possibilidade de se construir um processo judicial em rede, beneficiário da inteligência movente e coletiva da internet e dos dispositivos sem fio.

Os autos plugados podem sepultar a tradição, que vem desde o século XIII, com a medieval decretal do ano de 1216, que consagrou o princípio da escritura no processo – quod non est in actis, non est in mundo – princípio que na prática só faz separar dos autos do mundo, alimentando o autismo do sistema e potencializando a inadequação da insciência do processo praticada no Brasil. Como nos alerta Castells, em nossa época o mundo real é híbrido, "não um mundo virtual nem um mundo segregado que separaria a conexão on-line da interação off-line".

Mas é preciso conectar não apenas os autos ao mundo, mas também aproximar os atores do processo, promover uma interação processual, uma contiguidade dialógica, para que a gestão do conflito abandone de vez o ranço da perspectiva linear, segmentaria, vertical, fragmentária, hierárquica, para ensejar uma nova topologia do processo, mais democrática, participativa, informal, eficaz e, sobretudo, justa.

Caminhamos para a pura catatonia judiciária, para o imobilismo processual imposto pelo titânico volume de ações judiciais, sem precedentes no mundo, pelo bacharelismo gongórico, pela teorética abstrata e pelo gerencialismo modernoso. No Brasil, a questão não é mais de “acesso” ao Judiciário, senão de “saída” desse labirinto forense.

O que será preciso para salvar o Judiciário de si próprio de seus especialistas de plantão? Gritar, espernear ou só resta desanimar? Até quando será preciso esperar para o agenciamento de alternativas que efetivamente despertem a emergência da inovação no mundo jurídico-processual? Os quase 100 milhões de processo são o atestado da absoluta incompetência de todo o sistema brasileiro de justiça. A sociedade não suporta mais o ricochete da troca de acusações entre os atores do sistema: somos todos culpados, sem atenuantes, nem excludentes. As exceções confirmam a regra.

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  • Brave

    é desembargador do TRT-MG e doutor em Direitos Fundamentais. Foi Juiz Auxiliar da Presidência do CNJ (2010-2012). Compõe a Comissão de Cooperação Nacional e Internacional do CNJ e coordena o Grupo de Pesquisa sobre E-justiça da Escola Judicial do TRT-MG. Presidente do Conselho Deliberativo da Escola Judicial da América Latina. Coordenador da obra ‘Comentários à Lei do Processo Eletrônico’ (2010).

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