Poder de legislar

Papel da jurisprudência precisa de mais debate científico

Autor

  • Gustavo Filipe Barbosa Garcia

    é doutor e livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo especialista e pós-doutor em Direito pela Universidad de Sevilla. Atua como professor universitário advogado e consultor jurídico. Foi juiz do Trabalho das 2ª 8ª e 24ª Regiões procurador do Trabalho do Ministério Público da União e auditor fiscal do Trabalho. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho.

23 de maio de 2014, 7h56

A jurisprudência apresenta relevância cada vez mais acentuada no Direito[1].

Ela pode ser entendida como o conjunto de decisões uniformes e constantes dos tribunais, proferidas para a solução judicial de conflitos, envolvendo casos semelhantes[2].

Nesse sentido, jurisprudência é “a forma de revelação do Direito” resultante do exercício da jurisdição, decorrente de uma “sucessão harmônica de decisões dos tribunais”[3].

A importância da jurisprudência na formação do Direito é notória nos dias atuais, ao interpretar e aplicar as normas jurídicas[4].

A jurisprudência muitas vezes acaba inovando em matéria jurídica, estabelecendo normas concretas que se diferenciam daquelas estritamente previstas nas leis, ao interpretar e aplicar diferentes preceitos normativos de forma lógica e sistemática[5]. Essa “função normativa” da jurisprudência é mais acentuada nos casos de lacuna, ou seja, omissão de lei expressa para o caso específico, bem como quando a lei autoriza o juiz a decidir por equidade (arts. 127 do Código de Processo Civil e 8º da Consolidação das Leis do Trabalho).

Em princípio, o Direito “criado” pela jurisprudência tem a sua obrigatoriedade restrita ao caso em que proferida a decisão, mas também serve como parâmetro para outros julgamentos, envolvendo questões iguais ou semelhantes.

A jurisprudência também exerce o importante papel de atualizar as disposições legais, tornando-as compatíveis com a evolução social[6].

Deve-se destacar, ainda, a função criadora da jurisprudência, desenvolvida pela interpretação, integração e correção das leis, ajustando a ordem jurídica em consonância com a evolução dos fatos e dos valores no decorrer do tempo[7].

Registre-se que os tribunais aprovam súmulas, enunciando de forma resumida o entendimento já firmado sobre certas matérias, após terem sido objeto de decisões reiteradas no mesmo sentido. As súmulas proporcionam maior estabilidade à jurisprudência, constituindo forma de expressão jurídica[8].

Ainda sobre o tema, digno de nota são as súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal, previstas no artigo 103-A da Constituição Federal de 1988 (acrescentado pela Emenda Constitucional 45/2004), regulamentado pela Lei 11.417/2006.

No caso das súmulas vinculantes, além de normalmente se apresentarem sob a forma de disposições genéricas e abstratas, apresentam caráter nitidamente obrigatório.

A par da importância da jurisprudência, acima demonstrada, cabe alertar sobre as constantes mudanças que se te observado no Direito do Trabalho, em especial quanto ao seu aspecto jurisprudencial.

Sabemos que o Brasil integra os países que, tradicionalmente, adotam o sistema romano-germânico, em que preponderam as leis na disciplina das relações sociais.

Entretanto, nota-se, cada vez mais, a aproximação entre os sistemas jurídicos, no caso, o acima mencionado com o sistema anglo-saxão, no qual se destaca a força dos precedentes jurisprudenciais.

As recentes mudanças na jurisprudência trabalhista, sem entrar no mérito de seu acerto, bem como da necessidade, ou não, de seu aperfeiçoamento, em diversos temas, revelam mudanças tão profundas, a ponto de prevalecer, de um momento para o outro, entendimentos muitas vezes diametralmente opostos àqueles anteriormente adotados, mesmo não tendo havido, em certos casos, qualquer modificação legislativa a respeito da matéria.

A questão principal, que merece reflexão, não seria, exatamente, a correção, ou não, do entendimento adotado, principalmente por meio de súmulas da jurisprudência.

O maior problema a ser enfrentado, na verdade, refere-se à legitimidade democrática de, na prática, passar-se a disciplinar muitos dos aspectos das relações sociais, de natureza trabalhista, em consonância com enunciados de súmulas da jurisprudência.

Como sabemos, cabe ao Poder Judiciário o exercício da jurisdição, no sentido de decidir imperativamente os conflitos e impor a decisão proferida no caso concreto.

Nesse tema, ressalvada a hipótese do chamado “Poder Normativo” da Justiça do Trabalho (matéria polêmica, que exigiria exame específico e autônomo), a jurisdição é o poder, a função, e a atividade do Estado, de pacificar os conflitos sociais, por meio da aplicação, nos casos concretos, do Direito objetivo já existente.

A função legislativa, que não se confunde com a atividade, mais ampla, de natureza normativa, portanto, a rigor, não está inserida nas diversas e relevantes atribuições do Poder Judiciário, pois pertence, justamente, ao Poder Legislativo, com certa participação do Poder Executivo.

No regime democrático atual, em que predomina a democracia indireta, os membros dos referidos Poderes Legislativo e Executivo são eleitos pelo povo, tornando-se os seus representantes.

Esse exercício da democracia política, por sua vez, confere, ao menos em tese, legitimidade à norma legal produzida, por meio do processo legislativo, disciplinado pela Constituição da República, ao criar ou modificar, por exemplo, de forma genérica e abstrata, a disciplina de certa matéria de natureza trabalhista.

Nesse sentido, apenas exemplificando, discute-se quanto à questão relativa aos efeitos das cláusulas normativas, previstas em convenções e acordos coletivos de trabalho, nos contratos individuais de trabalho.

A Súmula 277 do Tribunal Superior do Trabalho, em sua redação original, conforme Resolução 10/1988 (DJ 01, 02 e 03.03.1988), previa que: “As condições de trabalho alcançadas por força de sentença normativa vigoram no prazo assinado, não integrando, de forma definitiva, os contratos”.

Posteriormente, a redação da mencionada Súmula foi aprimorada, com a sua parcial modificação, na sessão do Pleno do TST, em 16 de novembro de 2009 (Resolução 161/2009, DEJT 23, 24 e 25.11.2009), passando a dispor que: “I – As condições de trabalho alcançadas por força de sentença normativa, convenção ou acordos coletivos vigoram no prazo assinado, não integrando, de forma definitiva, os contratos individuais de trabalho. II – Ressalva-se da regra enunciado no item I o período compreendido entre 23 de dezembro de 1992 e 28 de julho de 1995, em que vigorou a Lei 8.542, revogada pela Medida Provisória 1.709, convertida na Lei 10.192, de 14.02.2001” (destaquei).

Não obstante, na sessão do Pleno do TST, realizada em 14 de setembro de 2012 (Resolução 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012), a Súmula 277 foi substancialmente alterada, passando a prever, de forma diametralmente oposta da redação anterior, que: “As cláusulas normativas dos acordos coletivos ou convenções coletivas integram os contratos individuais de trabalho e somente poderão ser modificadas ou suprimidas mediante negociação coletiva de trabalho”.

Essa completa modificação de entendimento jurisprudencial, sumulado, ocorrida em setembro de 2012, entretanto, a rigor, não foi precedida de modificação constitucional, nem legislativa. Nem mesmo precedentes jurisprudenciais, que fundamentem essa nova redação, são encontrados[9].

No caso acima descrito, portanto, cabe refletir se essa normatização, relativa à integração, ou não, das cláusulas normativas negociadas aos contratos individuais de trabalho, poderia, com a necessária legitimidade democrática, ocorrer no âmbito jurisprudencial, ou se isso não seria, no Estado Democrático de Direito, uma função típica e inerente à esfera própria, do Poder Legislativo, composto pelos representantes eleitos pelo povo.

Como se pode notar, por qualquer ângulo que se medite sobre a questão, destaca-se a manifesta relevância do maior debate científico sobre o papel da jurisprudência, inserida na esfera mais ampla do Direito, em seu objetivo, essencial, de disciplinar as relações sociais.


[1] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Introdução ao estudo do direito: teoria geral do direito. 2. ed . São Paulo: Método, 2013. p. 113-117.

[2] Cf. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 295.

[3] REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 167.

[4] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito processual do trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 637-638.

[5] Cf. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, cit., p. 168.

[6] Cf. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito, cit., p. 170-171.

[7] Cf. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito, cit., p. 308.

[8] Cf. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito, cit., p. 300.

[9] Cf. http://www3.tst.jus.br/jurisprudencia/Sumulas_com_indice/Sumulas_Ind_251_300.html#SUM-277

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    é doutor e livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, especialista e pós-doutor em Direito pela Universidad de Sevilla. Atua como professor universitário, advogado e consultor jurídico. Foi juiz do Trabalho das 2ª, 8ª e 24ª Regiões, procurador do Trabalho do Ministério Público da União e auditor fiscal do Trabalho.

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