Senso Incomum

O juiz, a umbanda e o solipsismo: como ficam os discursos de intolerância?

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22 de maio de 2014, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Streck [Spacca]Explicando o case

O Ministério Público Federal entrou com Ação Civil Pública para a retirada de vários vídeos ofensivos (e intolerantes) contra as religiões afro-brasileiras (umbanda e candomblé). O juiz Federal do Rio de Janeiro, encarregado do caso, negou a antecipação de tutela sob o argumento de que as “manifestações religiosas afro-brasileiros não se constituem em religião”. E acrescentou: faltariam a elas “traços necessários de uma religião”, como um “texto base”, a exemplo da Bíblia ou do Alcorão. Apontou, ainda, a ausência de uma estrutura hierárquica e de um Deus a ser venerado. Também disse que não havia urgência na retirada. Sobre o sentido de religião e liberdade, trataria no mérito. O Ministério Público ingressou com agravo. É o relatório (brincadeira, vício de profissão).

O velho problema do decisionismo

Como o juiz negou a antecipação de tutela? Nitidamente — e tudo dá a entender isso — a partir de sua percepção pessoal sobre religião, Deus, etc. Na semana passada fiz uma coluna criticando (ler aqui) o fator “decido-conforme-minha-consciência”. Portanto, repito, não é implicância minha. Juiz não deve decidir conforme seus humores, pendores, desejos, crenças etc. Dworkin, por exemplo, diz que não importa o que pensam os juízes sobre impostos, jogos etc. Importa é que seu ato é de responsabilidade política.

Com Dworkin: Juiz decide por princípios e não por políticas ou por moral(ismos). Digo isso pela centésima vez. Democracia se faz a partir de responsabilidade política. Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões a ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador. Portanto, direito não é moral. Não é religião. Não é futebol. Não é política.

Pois o juiz Federal do Rio de Janeiro, em vez de reconstruir a história institucional do problema relativo aos discursos de ódio versus liberdade de expressão (por exemplo), ele atalhou e usou os seus próprios pré-juízos, que, como se viu, causaram um enorme prejuízo.

A decisão do juiz é inconstitucional porque a distinção entre religião e manifestação religiosa para efeito de negação de tutela constitucional viola o princípio da proibição de proteção deficiente ou insuficiente (Untermassverbot). Melhor ainda, a decisão, ao desproteger as religiões afro-brasileiras, violou o dispositivo constitucional que estabelece a liberdade de crença etc. Ou seja, não somente o legislador pode incorrer em uma violação da Untermassverbot, como também o órgão julgador.

E não adianta reconhecer o caráter de ancestralidade aos "cultos afrobrasileiros" (que ele colocou entre aspas) para depois negar-lhes proteção, algo que já denunciei alhures como sendo a aplicação da fórmula Scalia (refiro-me ao voto de Scalia no caso Bowers v. Hardwick). 

Discuti esse assunto amiúde com Marcelo Cattoni (professor da UFMG), jusfilósofo da cepa que, em vários escritos, explicita e compreende sobremodo o sentido das exigências de reconhecimento do pluralismo social e cultural próprias ao Estado Democrático de Direito que, como no caso da Constituição de 1988, condena o racismo social, cultural e de classe, além de assegurar direitos culturais aos indivíduos e às comunidades ancestrais.  Sim, existe racismo cultural do mesmo modo que existe o “racismo comum”.

Pergunta, então, Cattoni: “De qualquer forma, faz algum sentido, para efeito de garantir a liberdade religiosa (inclusive de não ter nenhuma religião!!) diferenciar manifestações religiosas e religião? Afinal, o que é liberdade religiosa e de crença num Estado Democrático de Direito, republicano, laico e protetor do pluralismo social e cultural que constitui internamente a nacionalidade e a cultura brasileira”? 

Não esqueçamos que o STF, no HC 82424 (Caso Ellwanger),[1] negou o sentido constitucional da liberdade de expressão a discursos de ódio, a expressões de preconceito e de discriminação de qualquer natureza, que visam a inferiorizar ou a não reconhecer a liberdade como igualdade na diferença e a dignidade de todos e de cada um como expressão constitucional do direito fundamental a ser tratado pelo Estado com igual respeito e consideração (o sentido amplo ali adotado pelo STF para "racismo"). 

Com relação à não concessão de tutela antecipada, não esqueçamos também, aqui, que, no caso Ellwanger, o STF não exigiu, para efeito de garantia de direitos fundamentais, que houvesse caso de dano iminente e irreparável, mas considerou a própria publicação e divulgação de material racista lesivo não apenas às comunidades judaicas, mas também à própria sociedade democrática. Bingo.

Enfim: se a Umbanda e o Candomblé são manifestações culturais centenárias e profundamente enraizadas na cultura brasileira, somente isso já justifica a sua proteção contra formas de discriminação social e cultural, expressão, em sentido amplo, de racismo social e cultural. 

Dito isso, qual é o papel de um juiz? 

Decidir não é escolher. Escolhas são da ordem de nossa razão prática. Escolhe-se entre ir ao cinema ou ao futebol. Mas quando o juiz decide (judicialmente falando) deve fazê-lo a partir do Direito. Evidente que a decisão não é um ato subsuntivo (a subsunção sequer se sustenta filosoficamente; subsunção é tão fictícia quanto a sustentação da verdade real). Mas a decisão tampouco é um ato arbitrário. O juiz não é escravo da lei… Óbvio isso. Mas, por favor, ele tampouco é dono da lei (ou da Constituição ou do conceito de religião ou do conceito de cultura ou do conceito de preconceito ou do conceito de discurso de ódio…).

Juiz não é neutro. Ninguém o é. Não é disso que se trata. O que venho sustentando em meus escritos sobre teoria da decisão é que a subjetividade do juiz deve ser constrangida epistemologicamente (quer dizer, controlada) pela intersubjetividade. Se o juiz não consegue suspender seus pré-juízos, ele não pode (e não deve) ser juiz. Ele pode odiar ou amar algo. Mas na hora da decisão isto deve ficar suspenso (uma epoché). Isso se chama de responsabilidade política. Democracia é isso. Caso contrário, meus direitos dependerão da boa vontade do juiz. E, repito a frase (que não é minha, é do Agostinho Ramalho): Deus me livre da bondade dos bons.

Ora, no caso dos vídeos objetos da Ação Civil Pública promovida pelo MPF, há que se consultar as práticas sociais e aquilo que a tradição acerca do que seja religião e cultura afro significa (o comentário acima elucida a quaestio juris). Aquilo que já faz parte da tradição de um povo. Esse é o primeiro movimento que o juiz deve fazer: buscar o sentido a partir do revolvimento do chão linguístico em que está assentada determinada tradição sob questionamento. É o que se chama de método hermenêutico, que venho trabalhando amiúde sob a epígrafe de “a alegoria do hermeneuta” (neste sentido, meu Lições de Crítica Hermenêutica do Direito).

Nitidamente os tais vídeos configuram abuso de liberdade de expressão. São discursos de ódio e de intolerância que a democracia veda. No mínimo, racismo cultural. Parafraseando Dostoievski e sem fazer trocadilhos (e invertendo a frase), se Deus morreu, agora não podemos tudo…

Portanto, muita calma. Liberdade de expressão não quer dizer que dê para passar a mão na bunda do guarda. E nem ofender a crença e a cultura de milhões de brasileiros. Para que existe a Lei da Igualdade Racial, por exemplo? Por que o Brasil assina tratados e acordos contra a descriminação?

Por isso, a minha insistência: aos juízes incumbe a apuração da coerência, ou não, do texto de cada lei em relação à Constituição. O juiz cumpre um papel. São os dois corpos do Rei, tese desenvolvida por Kantorowitz. No seu cotidiano, na sua vida pessoal, o juiz pode fazer as coisas que quiser. Mas, no papel de juiz, tem uma representação social e política.

Cada coisa no seu lugar, como diria Voltaire, falando do personagem Pangloss (e compreendamos as suas desventuras): “reparem que o nariz foi feito para sustentar óculos. Por isso usamos óculos. As pernas foram visivelmente instituídas para vestirem calças; por isso usamos calças. As pedras foram feitas para serem talhadas…”.

Post scriptum I

Já finalizada a coluna — no “crepúsculo de jogo”, como dizia Fiori Gigliotti — soube da noticia que dava conta de uma espécie de retratação do juiz no que tange ao problema semântico-conceitual a fim de se saber se os cultos afro-brasileiros representam religião ou não. Segundo o jornal Estado de S. Paulo (clique aqui), o juiz autor da decisão voltou atrás na fundamentação, mas manteve a decisão liminar que autorizou a permanência no YouTube dos vídeos considerados ofensivos pelo Ministério Público Federal.

Note-se: a nova argumentação possui um nítido caráter instrumental. A decisão, em si, não mudou. Mesmo com uma nova roupagem, seu teor solipsístico continua inalterado. Trata-se de uma demonstração do velho “decido primeiro para fundamentar depois”, que também pode se expressar da seguinte maneira: “na minha jurisdição, primeiro decido segundo minha formação humanística e experiência, depois procuro justificar a decisão nos aspectos técnicos oriundos do ordenamento jurídico”. Caráter instrumental da fundamentação/argumentação, indeed. E não se venha dizer que o “juiz decidiu conforme sua consciência”. Isso não é argumento na democracia. Aliás, o juiz de Três Passos (RS), do “caso Bernardo”, também justificou a sua decisão de deixar que o pai — acusado de matar o menino — ficasse com a sua guarda. Disse: “decidi conforme minha consciência”. E quando a “consciência” não bate com a lei e a Constituição?

Sigo. Ainda segundo a notícia, a fundamentação foi readequada (sic) de modo a "registrar a percepção (sic) deste juízo de se tratarem os cultos afro-brasileiros de religiões". Quer dizer que o-sentido-do-que-seja-religião depende de uma “nova” percepção? Ou de uma “percepção melhor ou mais adequada”? Mas, afinal, o que é isto — a religião ou a manifestação cultural? É uma questão meramente semântica? Trata-se de um neo-nominalismo?

Na versão 2.0 da decisão, o juiz explica que a manutenção dos vídeos teve como fundamento a defesa da liberdade de expressão. A partir de um pretenso liberalismo, afirma que, embora os vídeos sejam de mau gosto “refletem exercício regular da referida liberdade”. E, novamente, errou o alvo. Isto porque tanto a proteção da liberdade de religião e crença, quanto a tutela da liberdade de expressão não implicam indiferença do Estado para com esses campos.

Explico melhor: há um erro de base naqueles que pensam que a liberdade de expressão representa uma espécie de direito absoluto em uma democracia constitucional: o esquecimento que a liberdade de expressão implica o exercício da tolerância. Como dizia o velho Kant  que, por sinal, era um liberal , a autoridade política, no campo da liberdade de religião, possui um direito negativo de preservar a comunidade política de toda influência que possa ser prejudicial à tranquilidade pública. Nesse passo, a autoridade política  no caso o Estado  deve, por consequência, diz Kant, não permitir que a concórdia civil fique em perigo, seja pelas disputas internas, seja pelo conflito de diferentes religiões entre si, o que constitui, então, um direito de polícia. Ponto para o velho Imannuel!

Ou seja, diante de discursos que incitam o ódio e a intolerância (quem tem paciência, veja os vídeos), não podemos falar em exercício legítimo da liberdade de expressão. Logo, mudar a fundamentação não retirou o caráter solipsista (e inconstitucional) da decisão. Ao contrário, apenas serviu para demonstrar, de forma mais categórica, a sua ocorrência.

Aliás, por ocasião do julgamento do famoso caso Ellwanger, acima referido, chegou-se a sustentar que “judeu não era raça”, para descaracterizar o crime de racismo… Quer dizer que se “judeu não fosse raça”, os livros de Ellwanger poderiam ter sido publicados (por exemplo, Acabou o Gás, entre outros)? Se judeu não é raça, o que mudaria? No caso aqui sob comento, o que muda se a umbanda é religião ou não? Quer dizer que, em sendo religião, pode ser vítima de discurso de ódio ou de intolerância ou de racismo cultural?

Mais: o que é isto — a fundamentação? Ela é condição de possibilidade ou é meramente um adorno, um artifício retórico? Como é possível que uma decisão seja proferida tendo por base a premissa de que umbanda não é religião e, depois, reconhecida a circunstância desta ser religião, permanecer igual? Ou seja: ao que entendi, tanto faz se umbanda e candomblé são religiões; em nome de liberdade de expressão, pode-se delas dizer o que se quiser!

Na democracia tudo pode? Veja-se como, em nome da liberdade, vamos criando permissividades: de repente, sem qualquer aviso, São Paulo é vítima das greves de ônibus. Milhões de pessoas prejudicadas. Viva a liberdade de fazer greve! Viva a liberdade de expressão em poder fazer vídeos recheados de intolerância. Viva! E as consequências desse “Deus morreu e agora pode tudo”? Bem, as consequências sempre vem depois…como dizia o genial Conselheiro Acácio.

Post Scriptum II – um pequeno desagravo 

Li o artigo do ex-ministro Eros Grau (aqui) em que ele espinafra a coluna Diário de Classe, na qual André Karam Trindade criticou a decisão do ministro Joaquim Barbosa acerca da polêmica sobre o cumprimento de um sexto da pena. Embora Grau não tenha citado o texto de André, é evidente o alvo (embora politicamente o texto de Grau possa ter outro endereço). A crítica de Grau foi, no mínimo, deselegante. Não fica bem usar falácia do tipo ad hominem. Não ficou “legal” isso. Só para registrar. 


 [1] A crítica mais consistente até hoje feita ao caso Elwanger foi feita por Marcelo Cattoni, no artigo Direito, política e filosofia: contribuições para uma teoria discursiva da constituição democrática no marco do patriotismo constitucional. Rio de Janeiro: Mandamentos, 2007, cap. 8., p. 113-125.

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