Previsão constitucional

"Separação entre Estado e religião não é indiferença", diz Gilmar Mendes

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20 de maio de 2014, 13h35

O Estado ser laico não significa indiferença ou separação absoluta em relação às religiões. Embora a Constituição preveja que o Estado não adote uma religião oficial, também prescreve diversas situações em que deve existir cooperação e até mesmo integração. Esse foi o teor do discurso do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, em palestra na Associação dos Advogados de São Paulo na noite desta segunda-feira (19/5). 

O ministro veio a São Paulo exclusivamente para o evento, que termina nesta terça (20/5), e falou a um público de cerca de 200 pessoas no auditório da Aasp — formado por profissionais da área jurídica e também por religiosos. Segundo Mendes, a previsão constitucional de laicidade não quer dizer apenas que o Estado não deve interferir na liberdade das religiões, o que chamou de direito negativo, mas que deve agir positivamente para garantir direitos. Casos como os de colaboradores de cultos que pedem reconhecimento de vínculo empregatício com as igrejas, ou de membros expulsos que procuram a Justiça para serem novamente aceitos, são exemplos de situações em que o Estado é chamado a agir positivamente. “O constituinte não quis só garantir a liberdade religiosa como um direito negativo, em que o Estado cumpre esse dever com a mera abstenção, mas também com medidas de caráter positivo para proteção das liturgias”, disse.

Carlos Humberto/SCO/STF
Conflitos dentro da comunidade religiosa, de acordo com o ministro (foto), demandam a atuação do Estado. “É o chamado direito horizontal, o direito fundamental nas relações privadas, com efeitos sobre terceiros”, explicou. Outro exemplo citado foi o de fiéis que desejam se casar na igreja, mas são proibidos por já terem tido outros casamentos antes, o que algumas liturgias vedam. “Em que medida, ao decidirmos sobre esses casos, não estamos respeitando a autonomia das religiões?”, disse Mendes, propondo a questão. “Temos de disciplinar a matéria no plano jurídico de modo a sermos respeitosos e não desproporcionais nas restrições.”

Os debates a respeito do tema não envolvem questões fáceis. Para além das objeções de consciência, há embates, por exemplo, sobre o direito do fiel de se recusar a passar por um tratamento médico que viole suas crenças, mesmo que o procedimento seja vital, e o possível dever do Estado em fornecer essa via gratuitamente. Da parte do médico, a questão é se o profissional pode ser responsabilizado criminalmente, seja por ação ou omissão, por colocar a vida do fiel em risco ao atender seu pedido.

Em relação às razões de consciência, o ministro citou a dificuldade, no Brasil, que têm os religiosos que se opõem a prestar o serviço militar obrigatório. Isso porque a Constituição reconhece esse direito no artigo 5º, inciso VIII, mas delega às Forças Armadas a função de propor uma solução. Como resultado, muitos são obrigados a limpar os quartéis ou guardar as armas, o que pode ser encarado como humilhação proposital. “A formulação dessa disposição deveria ser mais ampliada para que o serviço alternativo não fosse proposto pelas Forças Armadas, mas que houvesse uma possibilidade de prestação civil”, disse.

Crucifixos e calendários
Ele também mostrou contrariedade em relação a ações civis públicas que pedem a retirada de crucifixos de repartições públicas. “É uma leitura da Constituição divorciada da cultura judaico-cristã que desenvolvemos. O símbolo não é só religioso, mas de uma cultura que precisa ser reconhecida.” E ironizou: “Essa discussão levada ao extremo pode nos obrigar a revogar o calendário gregoriano.”

A presença de crucifixos e outros símbolos religiosos em locais públicos é dilema que ultrapassa as fronteiras brasileiras. Gilmar Mendes contou que, na Baviera, na Alemanha, os crucifixos são aceitos em determinados locais públicos, mas não em outros, como em escolas públicas e locais de formação e ensino. Na mesma Alemanha, houve discussão sobre a resistência de pacifistas em prestar o serviço militar obrigatório, também por razões de consciência.

A laicidade do Estado no Brasil foi sacramentada com a Constituição Federal de 1891, primeira a romper com os alicerces do modelo anterior, em que o catolicismo era reconhecido como religião oficial desde a Constituição de 1824, ainda no Império. A Constituição de 1988 também balizou o assunto. Um dos dispositivos é o artigo 5º, inciso VI, que fala do livre exercício de culto e da proteção aos locais onde eles ocorrem, bem como de suas regras.

Mas a própria Constituição também prevê a participação das religiões como elemento público importante. É o que prevê o inciso VII do artigo 5º. Diz o texto ser assegurada a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva, cujas normas de organização e procedimento devem ser disciplinadas por lei. “Há nesse exemplo uma ideia de cooperação entre a entidade civil estatal ou pública não estatal e as de caráter religioso”, exemplificou o ministro, lembrando de conclusões semelhantes de juristas portugueses de renome, como Jorge Miranda e J.J. Canotilho. “Neutralidade não quer dizer indiferença.” E citou o artigo 226, parágrafos 1º e 2º, da Constituição, para mostrar que o casamento religioso é aceito, no Brasil, com efeitos civis.

Mendes lembrou que o próprio dispositivo constitucional que veda a adoção de uma religião pelo Estado — artigo 19, inciso I — faz a ressalva quanto às colaborações de interesse público. “A ênfase na laicidade gera uma interpretação da Constituição de que a religião é uma inimiga do Estado, o que não tem fundamento”, disse.

Ele também mencionou o artigo 210, parágrafo 1º, da Constituição, que prevê o ensino religioso facultativo nas escolas públicas. Nesse ponto, lembrou que a Lei de Diretrizes Básicas da Educação, que regulamenta esse dispositivo constitucional, é alvo da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.439 no Supremo, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República.

O diretor cultural da Aasp, Luís Carlos Moro, encerrou a palestra lembrando que a associação, com o evento, quer esclarecer os conceitos em torno do tema, e cumprimentou outros advogados presentes, como o presidente da entidade, Sérgio Rosenthal; Rui Geraldo Carmargo Vieira, professor da Universidade de São Paulo; e Ricardo Pereira de Freitas Guimarães, que palestram nesta terça.

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