Contas à Vista

Orçamento mínimo social garante a execução de políticas públicas

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

20 de maio de 2014, 8h00

Spacca
Não existem direitos sem custos para sua efetivação. Stephen Holmes e Cass Sustein, em oportuna obra[1], demonstram que mesmo os direitos básicos, de 1ª dimensão, possuem altos custos que devem ser sustentados por toda a sociedade.  A manutenção do aparelho judiciário e do sistema de segurança pública, dentre outros necessários para a implementação dos civil rights, possuem um alto preço e precisam ser financiados através de um sistema tributário forte e ágil. Não são apenas os direitos de 2ª e 3ª dimensão que necessitam de verbas públicas para sua implementação.

Os economistas possuem uma expressão bastante interessante denominada “Limite do Orçamento”, que Amartya Sen, com sua perspicácia habitual, comenta como sendo “onipresente”, pois “o fato de que cada consumidor deva fazer suas escolhas não significa que não existam limites orçamentários, mas simplesmente que a escolha deve ser feita internamente ao limite orçamentário ao qual cada indivíduo deve adequar-se. Aquilo que vale para a economia elementar vale também para a decisão política e social de alta complexidade”[2]. Esta limitação adentrou no Direito a partir de uma decisão do Tribunal Constitucional alemão, com o nome de “Reserva do Possível[3], o que foi objeto de análise em outra coluna na ConJur .

É através do Orçamento que serão estabelecidas as prioridades nos gastos públicos e que será possível determinar quanto de recursos será alocado para a implementação dos direitos sociais. A partir desta quantificação é que se poderá constatar o nível de prioridade que a efetivação daquele direito possui em uma dada sociedade, em certo período[4]. De nada adianta falarmos de direitos se não olharmos o montante de recursos financeiros estabelecido pelo Estado para sua realização. A singela proclamação de direitos tem um papel muito mais retórico e simbólico do que eficaz, caso não sejam atribuídos os recursos necessários para sua implementação.

A partir dessas considerações surgem dois aspectos fundamentais para o debate dos direitos sociais. Saber: (1) quem paga a conta dos gastos realizados e (2) quem estabelece as prioridades para a realização desses gastos.

Quem paga a conta é a própria sociedade, através dos tributos pagos diretamente ou indiretamente na aquisição de bens ou serviços. O Estado é financiado por tributos, pagos de forma desigual entre as pessoas  —  e aqui se encontra uma primeira possibilidade de implementação de Justiça, pois se deve cobrar mais de quem pode pagar mais, o que nem sempre ocorre. Se a sociedade demanda a presença maior do Estado, deve arcar com maior cobrança de tributos  —  e se esta cobrança for efetuada de modo mais equânime, muito melhor. Quem ganha mais deve pagar progressivamente mais tributo.

E quem determina as prioridades para a realização desses gastos públicos? O Poder Legislativo  —  como aliás, em todos os países “ocidentais”  —,  através do sistema orçamentário, pois é nele que serão designadas as prioridades a serem implementadas em curto e médio prazo  —  os objetivos de longo prazo estão previstos na Constituição. A isto se chama “Liberdade do Legislador Orçamentário” ou “discricionariedade do legislador” — a possibilidade de escolha pelo legislador dos objetivos de curto e médio prazo que devam ser implementados visando alcançar as metas estabelecidas na Constituição. A função do Poder Executivo é a de realizar estes gastos e implementar os objetivos de curto e médio prazos, da forma e no limite estabelecido pela lei. Claro que existe uma margem de “discricionariedade administrativa”, mas esta é circunscrita pelas normas constitucionais e legais que regem as situações concretas sob responsabilidade da Administração.

Aqui se insere um precioso debate entre a Liberdade do Legislador Orçamentário e a Vinculação Orçamentária. Na Constituição brasileira de 1988 o artigo 167, IV, estabelece o Princípio da não-afetação, que claramente privilegia a Liberdade do Legislador Orçamentário, ao atribuir a este ampla possibilidade de alocação de recursos orçamentários de acordo com suas prioridades — claro que mirando atingir os objetivos da República brasileira, inscritos na Constituição. Todavia, esta norma contempla exceções, pois vincula algumas receitas para o custeio de certas despesas. Costumo dizer, de forma meio jocosa, que o legislador constituintedesconfiou do legislador orçamentário e estabeleceu na Carta fontes específicas de recursos para financiar certos gastos sociais importantíssimos. Para Regis Fernandes de Oliveira quem vincula quer manter o controle — e foi isso mesmo que fez o constituinte sobre o legislador orçamentário. Assim, no Brasil, oconstituinte não concedeu ao legislador tão ampla discricionariedade sobre quantodestinar do montante arrecadado para os gastos sociais. Isto porque a própria Constituição traz uma série de vinculações mínimas de receita às despesas sociais; além de existir uma espécie tributária, as contribuições, que possuem referibilidade— o que obriga a utilização da receita das contribuições para as finalidades a que foram criadas. A este conjunto de vinculações e referibilidades denomino de “Orçamento Mínimo Social” ou ainda, “Garantias Constitucionais de Financiamento dos Direitos Sociais” a ser utilizado para sua implementação. Nesse sentido, existem receitas destinadas pela Constituição para serem gastas com a área de:

a)   Saúde (Art. 198, § 2° e 3° c/c ADCT Art. 77): 15% da receita de todos os impostos arrecadados pelos Municípios; 12% da receita de todos os impostos arrecadados pelos Estados; O percentual da União foi estabelecido pela Lei Complementar 141/12, de forma incremental, isto é, a obriga a aplicar anualmente o montante correspondente ao valor empenhado no exercício financeiro anterior, acrescido de, no mínimo, o percentual correspondente à variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB) anual — se o PIB for negativo, o percentual não pode ser reduzido[5].

b)   Educação (Art. 212): 25% da receita de todos os impostos arrecadados por cada Estado, Distrito Federal e Município brasileiro; 18% da receita de todos os impostos da União e 100% da Contribuição para o Salário Educação;

c)   Erradicação da Pobreza (ADCT arts. 80 e 82): Pode ser criado um Fundo composto, nos Municípios, de 0,5% do ISS sobre serviços supérfluos; nos Estados e DF, de 2% do ICMS sobre produtos e serviços supérfluos; e na União, de 5% do IPI sobre produtos supérfluos, além do Imposto sobre Grandes Fortunas, quando vier a ser criado. A singela indicação dessas fontes de receita demonstra a pouca relevância desse tipo de Fundo, que cumpre papel muito mais retórico que eficaz.

d)   Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT (art. 239, § 1º e 3º): A União dispõe de 60% da arrecadação das contribuições para o PIS/PASEP;

e)   Seguridade Social (art. 195): A União dispõe de 100% da Cofins; 100% da CSLL e 100% das Contribuições Previdenciárias por ela cobradas.

f)    Meio Ambiente (art. 177, § 4º): A União dispõe de 100 % da CIDE – Petróleo.

Outro aspecto desse custeio diz respeito aos valores que deixam de ingressar nos cofres públicos, por força de mandamento constitucional, em razão de atividades vinculadas aos Direitos Sociais. Tratam-se das “desonerações” constitucionais, ou seja, os valores que o Estado deixa de arrecadar em função de renúncia fiscal, através do sistema de imunidades tributárias (art. 150, VI, CF), consideradas lato sensu.  Estas imunidades não permitem a cobrança de impostos sobre as instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos e das entidades sindicais dos trabalhadores, atendidos os requisitos da lei. O foco dessas desonerações é diretamente relacionado aos direitos fundamentais. Tratar das isenções também é pertinente, mas foge ao escopo do texto.

Aqui se encontra, portanto, o “Orçamento Mínimo Social” determinadopela Constituição para que o Legislador distribua recursos para o financiamento dos direitos sociais[6]. É claro que remanesce larga margem de discricionariedade do Legislador para decidir em quê aplicar estes recursos dentro de cada área social acima determinada. Porém os recursos já se encontram discriminados a partir de fontes constitucionalmente estabelecidas.

Ocorre que os recursos são escassos e os desejos são infinitos. Como o sistema financeiro é um sistema de vasos comunicantes, para se gastar de um lado precisa-se retirar dinheiro de outro. Assim, seguramente, mais verbas para combater a malária pode significar menos verba para combater a dengue. Nestes casos a discricionariedade do legislador está presente.

Estas normas constitucionais que estabelecem fontes de financiamento para os direitos sociais se constitui em uma peculiaridade do constitucionalismo brasileiro, em especial da Constituição de 1988. Permitem sua efetivação independente de qualquer intervenção judicial, e concede a qualquer Governo a garantia derecursos orçamentários mínimos para a implementação de seu plano de ação social. Estas fontes de financiamento dos gastos sociais estabelecidos na Constituição garantem a execução das políticas públicas necessárias para a efetivação dos direitos sociais no Brasil.

Minha opinião encontra-se explicitada no texto, mas pergunto a você, caro leitor: Na sua opinião, o Brasil estaria melhor ou pior em seus indicadores sociais se esteOrçamento Mínimo Social não tivesse sido estabelecido na Constituição de 1988? Teria sido melhor ter concedido mais Liberdade ao Legislador Orçamentário?  Ou asVinculações e a Referibilidade das Contribuições vêm cumprindo um papel essencial para a melhoria dos indicadores sociais em nosso país — a despeito de eventuais imperfeições (dentre elas as relatadas por José Maurício Conti em sua mais recente coluna)?

PS – Entre os dias 6 e 8 de maio Estevão Horvath e Heleno Torres disputaram o concurso para professor titular de Direito Financeiro da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, perante banca composta por Gilberto Bercovici, Adilson Dallari, Luiz Gonzaga Belluzzo e João Maurício Adeodato, e presidida por Regis Fernandes de Oliveira. Como esta é uma coluna sobre Direito Financeiro, e a primeira após o evento, congratulo Estevão Horvath pelo bom combate acadêmicorealizado e parabenizo Heleno Torres pela vitória. 


[1] The Cost of Rights – Why Liberty Depends on Taxes. New York, Norton, 2000.
[2] Identitá e Violenza, Roma, Laterza, 2006, pág. 07/08, tradução livre.
[3] BVERFGE 33, 303, de 18/07/1972, extraído da obra “Cinqüenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão” (Montevidéu, Fundação Konrad Adenauer, 2005, págs. 656/667).
[4] Por certo para análise dessa afirmativa dever-se-á aplicar a regra da proporcionalidade, pois alguns direitos custam mais do que outros.
[5] Sobre este tema recomendo a leitura de Tributação e Financiamento da Saúde Pública, de Michel Haber Neto (Quartier Latin, SP, 2013).
[6] Tratei desse tema em outras ocasiões, e indico ao leitor interessado o livro A Eficácia dos Direitos Sociais, coordenado por mim, e por Roberto Romboli e Miguel Revenga (SP: Quartier Latin, 2010), intitulada A Efetivação dos Direitos Sociais no Brasil: Garantias Constitucionais de Financiamento e Judicialização. Outra obra sobre o tema é a que escrevi a quatro mãos com Avelãs Nunes, Os Tribunais e o Direito a Saúde (Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011). 

Autores

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    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e livre docente em Direito pela mesma Universidade.

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