AP 470

Polêmica sobre trabalho externo de condenados é artificial

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19 de maio de 2014, 15h16

Recentemente tive a oportunidade de participar de um dos trabalhos mais importantes da minha trajetória profissional, nomeado membro da Comissão de Reforma da Lei de Execução Penal no Senado. No exercício desta função pública conheci pessoas e expus experiências pessoais, dentre elas a contratação de um preso, condenado por tráfico de entorpecentes e por homicídio, que em meu escritório trabalhou até o momento em que encontrou melhor oportunidade de trabalho no Ministério da Justiça. E para lá foi. 

Esta exposição, sobre posicionamentos, atitudes e exercício da advocacia, fez com que um amigo, advogado em Goiânia, me pedisse emprego para João Paulo Cunha. O pedido assustou, mas ofertei a oportunidade de trabalho em ambiente externo ao da prisão para ele. 

Em meu escritório, João Paulo Cunha trabalha todos os dias úteis. Em diversas ocasiões, recebi os policiais responsáveis pelo acompanhamento de seu processo de execução. Passei a conhecer este personagem da história recente. Por não conhecê-lo anteriormente, o relacionamento foi se desenvolvendo de forma gradual e formal. 

Mesmo com a formalidade no trato, João Paulo passou a me indagar sobre procedimentos de execução penal. E agora acerca do artigo 37 da Lei de Execuções Penais, citado em decisões recentes para revogar ou indeferir pedidos de trabalho externo. A discussão tomou grande proporção, exorbitando o interesse particular de um empregado. 

O fundamento jurídico utilizado para revogar e ou indeferir pedidos de trabalho externo dos sentenciados na Ação Penal 470 foi o seguinte: “Ao eliminar a exigência legal de cumprimento de uma pequena fração da pena total aplicada ao condenado a regime semiaberto, as VEPs e o STJ tornaram o trabalho externo a regra do regime semiaberto, equiparando-o, na prática, ao regime aberto, equiparando-o, no ponto, ao regime aberto, sem que o Código Penal ou a Lei de Execução Penal assim o tenham estabelecido”.

Na sequência, as decisões transcrevem o artigo 37 da Lei de Execuções Penais, que estipula: “Artigo 37. A prestação de trabalho externo, a ser autorizada pela direção do estabelecimento, dependerá de aptidão, disciplina e responsabilidade, além do cumprimento mínimo de 1/6 da pena”.

A questão jurídica sequer tangencia os fundamentos adotados pelo ministro que executa a pena. O artigo 37 não deve ser lido isoladamente, pois Direito é sistema. O artigo antecedente ao supracitado estipula regras para a concessão de trabalho externo para presos do regime fechado.

Lendo os dois artigos na sequência, a conclusão óbvia é de que o artigo 37 regulamenta o artigo 36 da citada lei: "O trabalho externo será admissível para os presos em regime fechado somente em serviço ou obras públicas realizadas por órgãos da Administração Direta ou Indireta, ou entidades privadas, desde que tomadas as cautelas contra a fuga e em favor da disciplina". E seguem os parágrafos:

"§ 1º O limite máximo do número de presos será de 10% (dez por cento) do total de empregados na obra.

§ 2º Caberá ao órgão da administração, à entidade ou à empresa empreiteira a remuneração desse trabalho.

§ 3º A prestação de trabalho à entidade privada depende do consentimento expresso do preso."

Já o artigo 37 diz que "a prestação de trabalho externo, a ser autorizada pela direção do estabelecimento, dependerá de aptidão, disciplina e responsabilidade, além do cumprimento mínimo de um sexto da pena". O parágrafo único do artigo estabelece que a autorização poderá ser revogada caso o preso venha a cometer outro crime, falta grave ou "tiver comportamento contrário aos requisitos estabelecidos neste artigo"

Não fosse isso, no Código Penal é que está a regulamentação das regras do regime semiaberto, está no artigo 35 do Código Penal: "Aplica-se a norma do art. 34 deste Código, caput, ao condenado que inicie o cumprimento da pena em regime semi-aberto". Os parágrafos complementam:

"§ 1º – O condenado fica sujeito a trabalho em comum durante o período diurno, em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar.

§ 2º – O trabalho externo é admissível, bem como a freqüência a cursos supletivos profissionalizantes, de instrução de segundo grau ou superior." 

Ora, o trabalho externo do preso em regime semiaberto está descrito, portanto legitimado, no Código Penal. A interpretação do direito deve ser efetivada de forma sistemática. 

Necessário dizer, em respeito à Comissão de Reforma da Lei de Execução Penal, que o malfadado artigo 37 foi modificado, conforme exposição de motivos do projeto de lei: "Esclarece-se que o trabalho externo poderá ser realizado em regime fechado ou semiaberto, não se aplicando, neste último caso, a limitação do número de presos em 10% (dez por cento) do total de empregados na obra. A autorização para o trabalho externo é dada pelo diretor do estabelecimento penal e dependerá somente de juízo sobre a aptidão, disciplina e responsabilidade, independentemente da fração de pena cumprida. Isto porque não se trata de benefício penitenciário, mas de componente da própria execução penal tendente à reintegração social do apenado. Por outro lado, a autorização será revogada se houver a prática de novo crime, o cometimento de falta grave ou comportamento contrário às exigências legais". 

Por isso, consta da redação proposta: 

"DO TRABALHO EXTERNO 

Art. 37 (alteração). A prestação de trabalho externo no regime semiaberto, a ser autorizada pela direção do estabelecimento, dependerá de aptidão, disciplina e responsabilidade.

§ 1° (inclusão). Igual autorização poderá ser concedida ao condenado que tenha sido admitido, durante o cumprimento da pena, em curso de instituição de ensino superior, condicionada a autorização à matrícula no curso de ensino superior conrrespondente.

§2° (remunerado). Revogar-se-á a autorização de trabalho externo ao preso que vier a praticar fato definido como crime, for punido por  falta grave, ou tiver comportamento contrário aos requisitos estabelecidos neste artigo". 

O objetivo da modificação do referido artigo, mais do que trazer a lume a real finalidade da execução, que a é a reinserção do preso a sociedade, é sanar controvérsias jurídicas artificiais criadas para o fim único de punir aqueles que foram condenados por um crime. O próprio Conselho Nacional de Justiça, em seu programa Começar de Novo, não exige o cumprimento de um sexto da pena nestes casos. 

Execução penal, mais do que punição, é instrumento de ressocialização. O Supremo certamente decidirá isso, quando e se o relator da Ação Penal 470 disponibilizar seu voto ao Plenário da Corte.

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