Justiça Comentada

Firmeza não deve ser confundida com restrição desnecessária

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16 de maio de 2014, 8h00

Spacca
Alexandre de Moraes [Spacca]O grande publicista do Império, Pimenta Bueno, ao comentar a previsão das penas pela Constituição do Império, afirmou que “o homem por ser delinquente não deixa de pertencer à humanidade; é de mister que seja punido, mas por modo consentâneo, com a razão, próprio de leis e do governo de uma sociedade civilizada”.

Recente decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, em sede da AP 470 (mensalão), que negou pedidos de trabalho externo alegando a ausência de requisito temporal (cumprimento de 1/6 da pena) e impedimento legal (realização de trabalho externo em atividade privada), causou grande repercussão e gerou discussão nos meios jurídicos sobre os princípios e preceitos básicos a serem aplicados em sede de interpretação das normas sobre execução penal.

A Constituição Federal, ao proclamar o respeito à integridade física e moral dos presos, em que pese à natureza das relações jurídicas estabelecidas entre a Administração Penitenciária e os sentenciados a penas privativas de liberdade, consagra a conservação por parte dos presos de todos os direitos fundamentais reconhecidos à pessoa livre, com exceção, obviamente, dos incompatíveis com a condição peculiar de preso.

Desde a Constituição Política do Império do Brasil, jurada a 25 de março de 1824, até a presente Constituição de 5 de outubro de 1988, a aplicação de sanção por parte do Estado não configura, modernamente, uma vingança social, mas tem como finalidades a retribuição e a prevenção do crime, buscando, além disso, a ressocialização do sentenciado, tendo sido previsto, inclusive, no artigo 179, XXI da Constituição Imperial, a obrigatoriedade das cadeias serem seguras, limpas e bem arejadas, havendo inclusive diferentes estabelecimentos para separação dos sentenciados, conforme suas circunstâncias e a natureza de seus crimes; assim como, também, prevê a nossa atual lei de execuções penais (LEP), que a pena em regime semi-aberto deverá ser cumprida em Colônia Agrícola, Industrial ou Similar.

Lamentavelmente, até o momento, o Brasil não conseguiu cumprir nem a previsão da Carta do Império, tampouco a determinação da atual Constituição Cidadã.

Após mais de 150 anos das sábias ponderações de Pimenta Bueno, as regras internacionalmente adotadas pelos países democráticos passaram a estabelecer preceitos mínimos para o tratamento de reclusos, tanto por meio da publicação do Centro de Direitos do Homem das Nações Unidas (GE 94-15440), quanto pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) e pelo Pacto de San José da Costa Rica; sempre levando em conta a grande variedade das condições legais, sociais, econômicas e geográficas do mundo, porém estabelecendo os princípios básicos de uma boa organização penitenciária e as práticas relativas ao tratamento de reclusos.

Entre esses importantes princípios básicos, foram consagrados o “Princípio da Igualdade” e a “busca pela ressocialização”, afirmando-se que as regras na execução penal devem ser aplicadas, imparcialmente (GE 94-15440), bem como, que a busca do regime penitenciário consistirá em um tratamento cujo objetivo principal seja a reforma e reabilitação moral dos prisioneiros (Pacto de 1966), uma vez que as finalidades essenciais das penas privativas de liberdade são a reforma e a readaptação social dos condenados (Pacto de San José).

Todas essas finalidades, porém, devem ser perseguidas dentre de um sistema de disciplina e sanções, pois, como afirmado nos instrumentos normativos internacionais, a ordem e a disciplina devem ser mantidas com firmeza, porém, sem impor mais restrições do que as necessárias para a manutenção da segurança e da boa organização da vida comunitária.

A Constituição Federal de 1988, igualmente, se posicionou no sentido de fiel cumprimento às sanções estabelecidas, porém com colaboração à tentativa de recuperação do condenado, fazendo com que a execução da pena seja, na medida do possível, individualizada, de forma a ressocializálo.

Os condenados a pena privativa de liberdade, depois da observância do devido processo legal, devem absoluta respeito ao sistema disciplinar penitenciário, sem regalias ou privilégios em virtude de suas situações econômicas, sociais ou políticas. Porém, essas mesmas situações, em hipótese alguma, poderão prejudicar-lhes na concessão de determinado benefício legal consentâneo com o princípio da igualdade e a busca pela ressocialização e readaptação social.

Em outras palavras, seja em matéria disciplinar, seja na concessão de benefícios: “A César o que é de César”!!! A firmeza disciplinar não pode ser confundida com imposição de restrições desnecessárias.

O princípio da igualdade na execução da pena e a busca da ressocialização, portanto, devem ser observados como vetores de interpretação pelo Poder Judiciário, no momento de análise, tanto na aplicação das sanções disciplinares, quanto na concessão dos benefícios legais, pois a precedência hermenêutica da norma mais favorável à dignidade da pessoa humana é imprescindível, como consagrado pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão de lavra do ministro Celso de Mello, onde foi apontado que “os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistente em atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensarlhe a mais ampla proteção jurídica” (HC 96.772/SP).

Interpretando finalisticamente as normas de execução penal — sempre em busca dos princípios da Igualdade e ressocialização do preso —, nossa Corte Suprema afirmou, em acórdão de lavra do ministro Marco Aurélio, que “tanto quanto possível, incumbe ao Estado adotar medidas preparatórias ao retorno do condenado ao convívio social. Os valores humanos fulminam os enfoques segregacionistas”, garantindo o direito do preso à assistência familiar, ao concretizar transferência para o “local em que possua raízes, visando a indispensável assistência pelos familiares” (HC no 71.179/PR). Da mesma forma, o STF, a fim de deflagrar o “processo de ressocialização”, em decisão relatada pela ministra Ellen Gracie, mitigou a “distância e a dificuldade do contato do preso com a família” (HC no 100.087/SP).

O “respeito aos valores humanos” com a adoção de “medidas preparatórias ao retorno do condenado ao convívio social”, a fim de deflagração do “processo de ressocialização” daqueles que cumprem pena privativa de liberdade, sem “enfoques segregacionistas” e em absoluto respeito ao “princípio da igualdade” devem pautar a interpretação do Poder Judiciário em relação aos requisitos e à concessão dos benefícios previstos na lei de execuções penais, inclusive no tocante à análise de concessão do “trabalho externo”, de maneira a conceder primazia à interpretação da norma que se revele mais favorável à pessoa humana.

Na hipótese em questão, a interpretação condizente com a Constituição Federal e as normas internacionais em relação ao “requisito temporal” e a “pertinência da natureza do trabalho oferecido — público ou privado” seria pela concessão do benefício, sem prejuízo de rigorosa fiscalização por parte do Estado.

Repita-se: A César o que é de César!!! 

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