Coordenação de normas

Critérios clássicos não resolvem bem as antinomias

Autor

  • Tiago Bitencourt De David

    é juiz federal substituto da 3ª Região mestre em Direito (PUC-RS) especialista em Direito Processual Civil (UniRitter) especialista em Contratos e Responsabilidade Civil (Escola Verbo Jurídico) e pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM Toledo/Espanha).

14 de maio de 2014, 6h19

Tornou-se amplamente conhecida a exposição de Norberto Bobbio a respeito dos três critérios para a resolução de antinomias, a saber, o cronológico (lex posterior derogat lex priori), o hierárquico (lex superior derogat lex inferiori) e o da especialidade (lex specialis derogat generali)[1]. Trata-se, enfim, de lição amplamente difundida e que não impõe apresentação pormenorizada neste espaço.

Entretanto, já Bobbio[2] vislumbrou a insuficiência dos critérios apresentados e enfrentou problemas tormentosos derivados das antinomias de critérios resolutivos de antinomias, ou mais precisamente, aqueles relativos às antinomias de segundo grau, como o do conflito entre os critérios especial e cronológico, hipótese na qual a norma de caráter geral sucede a especial precedente, conflitando ambas e sendo necessária a escolha de uma. No caso de conflito entre a norma especial anterior e a de caráter geral posterior, entendeu o jusfilósofo italiano[3] pela manutenção da primeira, ou seja, daquela pretérita e especial, negando-se que se tenha operado a revogação. Ainda assim, o tema ainda suscita dúvidas com intensas consequências práticas.

É perfeitamente concebível que uma lei geral e posterior, sucedendo uma lei especial e anterior, revele-se mais benéfica e consentânea com a tutela diferenciada que moveu a feitura da normatização especial. Isso foi o que ocorreu quando do advento do atual Código Civil em face do Código de Defesa do Consumidor, sendo exemplar o cotejo entre a previsão de prazo decadencial constante do artigo 26 do CDC em face do artigo 445 do CC/02, sendo este mais favorável ao consumidor do que seu próprio estatuto protetivo, pois prevê prazos de 180 dias e de um ano, ao invés de trinta ou noventa dias, tal como emerge do CDC[4]. Impondo-se, portanto, aquilo que Cláudia Lima Marques[5], com arrimo em Erik Jayme, chama de “diálogo das fontes”, não se operando a supressão normativa em face de antinomias, mas coexistência no sistema com aplicação coordenada em movida em razão de outros vetores, que não apenas os tradicionais critérios hierárquico, cronológico e de especialidade. Como pontifica Cláudia Lima Marques[6], busca-se “harmonia e coordenação entre as normas do ordenamento jurídico (concebido como sistema)” ao invés “da exclusão” de uma ou outra norma do ordenamento jurídico. Ao fim e ao cabo, a insuficiência dos critérios de resolução de antinomias é um problema intrínseco ao caráter predominantemente analítico[7] atribuído por Bobbio.

A coordenação de normas, para além dos critérios tradicionais, é apenas parte de uma revisão do pensamento jurídico em seu retorno à assunção do caráter dialético[8] do debate jurídico, universo no qual inexiste lugar para a dicotomia verdadeiro/falso, constituindo-se em espaço no qual os interessados trazem à lume suas razões que deverão ser publicamente expostas, devidamente confrontadas e detidamente analisadas, emergindo de tal confronto a tomada de posição, momento no qual não se declara o que realmente foi ou será, mas resolve-se o caso do melhor modo possível e à luz do que democraticamente foi estabelecido e é razoavelmente esperado. E é em um cenário assim que faz todo o sentido tanto o “diálogo das fontes” quanto a modulação dos efeitos das decisões no controle de constitucionalidade (art. 27 da Lei Federal 9.868/99), seja para restringir os efeitos a determinadas situações, seja para reduzir a retroação temporal, bem como para postergar os efeitos do reconhecimento da inconstitucionalidade, tudo dependendo de quão gravosas as consequências no caso em tela, prestigiando-se a segurança jurídica e as expectativas legítimas que não podem ser surpreendidas e frustradas. Assim, o critério hierárquico também não se coloca sem que sejam bem medidas as consequências reais de sua aplicação, deixando-se de lado o vetusto pensamento binário em conformidade = válido, em desconformidade = inválido, impondo-se que se reconheça que às vezes o que é desconforme está em maior sintonia com a Constituição do que a pura e simples declaração de inconstitucionalidade, revelando-se absurdo pensar que o operador do Direito deve atuar sem atenção aos efeitos concretos de sua interpretação, devendo a realidade ser observada para que seja adequada sua compreensão do problema que está pendente de apreciação.

Da resolução de antinomias ao exercício da jurisdição constitucional emerge, sempre, a necessidade de um silogismo dialético[9], de um escrutínio de razões pro et contra, assumindo-se que a solução não está dada, nem vai ser descoberta, mas vai ser construída, não ex nihilo, mas a partir das decisões políticas postas, do que outros já disseram (doutrina e jurisprudência), da posição do sujeito no mundo, situação na qual o sujeito está imerso na tradição que o envolve mesmo quando ele não quer. A visão não decorre nem de lugar nenhum e nem do teor do café da manhã, mas do esforço para capacitar-se a resolver, do melhor modo, a questão existencial que é colocada diante de si.

Quem sabe um dia — sou otimista — possamos resgatar a consciência sobre a dialética não apenas dos discursos, mas também do universal e do particular, do abstrato e do concreto, para, a partir daí, desenterrarmos verdadeiros tesouros que nos foram deixados pela tradição greco-romana, a começar pela equidade (epiekeia) — que não é aquela do artigo 108, IV, do Código Tributário Nacional — e pela prudência (phronesis). Certamente veremos que o princípio da insignificância, da adequação social e da lesividade nem sequer precisam estar escritos, emanando da inaplicabilidade da regra geral no caso particular. Notaremos, ainda, que ainda que não exista um direito adquirido a regime jurídico, ainda assim, impõe-se um regime de transição suave e segura, não podendo o cidadão ser surpreendido, pois o planejamento é inerente ao desenvolvimento de nossa personalidade nesta vida.

De igual modo, a proporcionalidade, a razoabilidade e a ponderação serão menos objetos de querelas doutrinárias sem-fim e tornar-se-ão atributos inerentes à atuação prudente, comedida e efetiva, firme na efetivação, mas cautelosa, sempre atenta aos efeitos colaterais. Tenhamos, em tal dia, acordado e se dado conta de que ad impossibilia nemo obligatur, dando-nos conta de que a invocação acrítica e descontextualizada dos princípios da precaução, da prevenção e do regime de responsabilidade objetiva (integral?), foi apenas um pesadelo. E aí entenderemos que o tempo não é neutro, tal como muito bem denunciado por Ovídio Araújo Baptista da Silva e continuado por Marinoni, sendo a passagem dos dias um flagelo para quem espera a satisfação do direito e um alívio para o devedor. Buenas, enquanto este dia não chega, torcerei para que alguma boa alma indique a leitura pelo menos do Livro V do Ética a Nicômaco aos seus alunos, — sem que a sala de aula seja invadida, é claro… —, quando então disporão em seu material escolar da régua de Lesbos, bem como para que o julgamento do STF sobre o financiamento público de campanhas represente um duro golpe no Estamento do qual nos falou Raymundo Faoro, libertando público e privado de uma relação parasitária onde (quase) todos perdem.


[1] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo: Edipro, 2011, p. 95-100.

[2] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo: Edipro, 2011, p. 100-111. É curioso o tratamento conferido pelo doutrinador a respeito da colisão entre os critérios hierárquico e de especialidade, pois Bobbio vacila a respeito da prevalência do critério hierárquico, aduzindo que não raro na prática a especialidade é que se impõe (p. 110 e 111), mas é certo que tal tema exige um estudo detido que escapa ao presente ensaio, apenas registrando-se que se o critério hierárquico é desconsiderado parece que é porque não há uma real oposição normativa, mantendo-se a norma inferior reconhecendo-se que é um comando ainda compatível com a norma superior. Entre o critério hierárquico e cronológico, prevalece o primeiro, sem dúvida (p. 109).

[3] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução de Ari Marcelo Solon. São Paulo: Edipro, 2011, p. 109.

[4] Código de Defesa do Consumidor:
Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em:
I – trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produto não duráveis;
II – noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produto duráveis.
§ 1º Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços.
§ 2º Obstam a decadência:
I – a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca;
II – VETADO;
III – a instauração de inquérito civil, até seu encerramento.
§ 3º Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito.

Código Civil:
Art. 445. O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no preço no prazo de trinta dias se a coisa for móvel, e de um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; se já estava na posse, o prazo conta-se da alienação, reduzido à metade.
§ 1º Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de cento e oitenta dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis.

[5] MARQUES, Cláudia Lima. Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o Novo Código Civil: o “diálogo das fontes”. In: BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 2003, p. 24-52.

[6] MARQUES, Cláudia Lima. Diálogo entre o Código de Defesa do Consumidor e o Novo Código Civil: o “diálogo das fontes”. In: BENJAMIN, Antônio Herman V.; MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 2003, p. 24 e 25.

[7] Utilizando-se aqui a teoria dos quatro discursos Aristóteles-Olavo de Carvalho. Veja-se: CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos. Campinas: Vide Editorial, 2013.

[8] Mais uma vez, aqui utiliza-se a teoria dos quatro discursos Aristóteles-Olavo de Carvalho. Veja-se: CARVALHO, Olavo de. Aristóteles em Nova Perspectiva: Introdução à Teoria dos Quatro Discursos. Campinas: Vide Editorial, 2013.

[9] Veja-se a respeito: ARISTÓTELES. Órganon. 2 ed. Tradução de Edson Bini. Bauru: Edipro, 2010, p. 347 e 348 [Tópicos, Livro I, 100a18-100b25].

Autores

  • é juiz federal substituto da 3ª Região, mestre em Direito (PUC-RS), especialista em Direito Processual Civil (UNIRITTER) e pós-graduado em Direito Civil pela Universidad de Castilla-La Mancha (UCLM, Toledo/Espanha).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!