Direito Comparado

Marco Civil e opção do legislador pelas liberdades comunicativas

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

14 de maio de 2014, 8h00

Spacca
Desde o início da série de colunas sobre o Marco Civil da Internet (leia a primeira e a segunda), dois pontos têm-se sobressaído: (a) a existência de incoerências internas ou redundâncias normativas na lei e (b) seu caráter simbólico. Diversos dos artigos da Lei 12.965, de 23 abril de 2014, como já exposto nas colunas precedentes, reproduzem conteúdos jurídicos constitucionais e não lhes emprestam a necessária — ou a adequada — conformação, o que seria de se esperar quando o legislador exercer suas prerrogativas. Esse ponto foi muito bem apreendido por vários leitores, que expressaram suas opiniões nesta página ou em correspondência ao colunista.

Uma exceção a esse reproduzir de princípios está na escolha do legislador em favor da liberdade comunicativa, como anotado na coluna anterior, em relação ao texto dos artigos18-20 da Lei 12.965/2014. Boa ou má essa opção, trata-se de um debate que a doutrina deverá enfrentar. É, no entanto, importante que se tenha saído da imponderabilidade anterior.

O elemento simbólico talvez seja uma boa explicação para a existência da Lei do Marco Civil. A nova lei, como bem me afirmou Bruno Lewicki, insere-se em um projeto de normatização mais amplo, que envolve os direitos autorais, a proteção de dados e o exercício do direito de acesso à internet. É para esse horizonte que os interessados nesses temas devem-se voltar. Interessa agora retomar o exame dos principais pontos do Marco Civil, como anunciado na primeira coluna.

Como já exposto, o provedor de aplicações de internet não mais poderá ser responsabilizado pelos conteúdos supostamente ofensivos após a mera provocação extrajudicial da vítima para que os retire da página. A concreção do princípio reitor das liberdades comunicativas deu-se evidentemente em favor destas, nos termos do artigo 19 da Lei 12.965/2014.

A inserção de conteúdos pode ser causadora de dois tipos diferentes de violação de direitos. A primeira diz respeito à produção autoral e sobre esta o artigo 20, parágrafo 2º, da Lei do Marco Civil, ofereceu uma solução diferenciada: as infrações a direitos de autor ou a direitos conexos dependerá “de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5o da Constituição Federal”. Ora, a lei relativa à proteção de direitos autorais já existe, que vem a ser Lei 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, que “altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências”.

O uso da expressão “depende de previsão legal específica”, no artigo 20, parágrafo 2º, implicaria duas possíveis interpretações: a) não se poderá invocar, em matéria de direitos autorais na internet, a Lei 9.610/1998, pois esta não é específica para atos praticados na internet; b) a Lei do Marco Civil refere-se, quando alude à “previsão legal específica”, à Lei de Direitos Autorais vigente, ressalvando, porém, a possibilidade de nova legislação específica sobre o assunto. O artigo 31 da Lei do Marco Civil resolveu essa aparente contradição nesses termos: “Até a entrada em vigor da lei específica prevista no parágrafo 2º do artigo 19, a responsabilidade do provedor de aplicações de internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros, quando se tratar de infração a direitos de autor ou a direitos conexos, continuará a ser disciplinada pela legislação autoral vigente aplicável na data da entrada em vigor desta Lei”.

A segunda possibilidade de violação de direitos por inserção de conteúdos está em uma forma particular de ofensa ao núcleo de direitos fundamentais do artigo 5º, inciso X, CF/1988, que foi, com terminologia cambiante, concretizado nos artigos 3º e 7º da nova Lei do Marco Civil. É o caso de alguém que coloca na rede um conteúdo que viole a intimidade de outrem por meio “da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado” (artigo 21, Lei 12.965/2014).

A utilização desses conteúdos poderá recair em um duplo filtro de proteção: a) o relativo aos direitos autorais; b) o que diz respeito à proteção ao conteúdo do artigo 5º, inciso X, CF/1988, no que não for secante à esfera da letra “a”. O artigo 21 da Lei do Marco Civil é precipuamente voltado para a proteção conferida na letra “b”. E sua operacionalização é muito simples: 1) o responsável pela inserção dos conteúdos será o responsável direto pelo ilícito; 2) o provedor de aplicações de internet, que permitir o acesso a tais conteúdos, será responsável subsidiário, desde que, depois de notificado, não promova diligentemente, “no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo” (artigo 21, caput, parte final).

Neste caso, é dispensada judicialização, tal como se exige no artigo 19, e o interessado poderá requerer a supressão do conteúdo por mero ato extrajudicial (notificação), obedecidas as formalidades do parágrafo único do artigo 21: o ato deve, “sob pena de nulidade”, conter “elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido”. A sanção indicada no parágrafo único do artigo 21 é tecnicamente incorreta. Os requerimentos ou as petições não podem ser considerados nulos por deixarem de indicar qual o conteúdo ofensivo aos direitos de quem postula sua retirada, muito menos a ilegitimidade, assim considerada a pertinência subjetivo-objetiva do requerimento, seria causa de nulidade. Não poderá, desse modo, o agente notificado ou o Poder Judiciário considerar essa notificação como nula, se não observar os termos legais, mas sim determinar sua emenda, sob pena de indeferimento do pedido.

Ainda quanto ao procedimento previsto no artigo 21 da Lei 12.965/2014 hão de ser anotados outros problemas conceituais e que se dilatam ainda para o artigo 19:

(a) No artigo 21, há uma exigência genérica de que a vítima faça a “identificação específica do material” tido como ofensivo. No artigo 19, deixou-se aberta uma ressalva para o não cumprimento da ordem judicial, que determine a retirada do conteúdo ilícito ou danoso: os limites técnicos do serviço. Ainda que a linguagem utilizada tente exalçar uma preocupação com o estado-da-arte tecnológico e as condições objetivas de cumprimento da ordem judicial ou do atendimento ao pedido administrativo, ela colide que noções há muito sedimentadas no Direito Civil, sobre a atividade de risco, e no Direito do Consumidor, sobre a vulnerabilidade técnica. O Superior Tribunal de Justiça não considerou os provedores de aplicações de internet como exercentes de atividades de risco.[1] No entanto, é absolutamente incompatível com a separação atual entre atividades de risco e atividades nas quais incide o princípio da culpa a colocação do usuário ou da vítima de um serviço de internet na condição de responsável pela localização de um conteúdo ofensivo ou de quem foi o verdadeiro culpado por sua inserção. Se não prevaleceu a tese da responsabilidade objetiva, ao menos que não se lancem as vítimas de condutas descritas nos artigos 19 e 21 da Lei do Marco Civil em um regime tão inadequado de tutela de seus direitos.

(b) A escusa quanto aos limites técnicos é também censurável. Se limites técnicos são oponíveis para se furtar ao cumprimento de uma ordem judicial ou de um pedido administrativo, estar-se-á franqueando o uso desse argumento para várias outras atividades econômicas que dependem diretamente da internet, da informática e de equipamentos submetidos a tais controles.

Uma interpretação do Marco Civil da Internet, que ainda se encontra em período de vacatio legis, é dependente de um número limitado de fontes. Uma das chaves para se interpretá-la é a consulta ao projeto de lei, que deu origem à norma sancionada pela Presidência da República.[2]

No que se refere aos princípios e aos objetivos da lei, a leitura dos artigos 1º a 4º do projeto demonstra que eles se conservaram na versão aprovada pelo Congresso Nacional. As questões terminológicas e as redundâncias não foram devidamente examinadas nos debates legislativos.

Quanto ao problema da responsabilidade civil, o projeto de lei estabelecia que: a) o provedor de aplicações de Internet somente seria responsabilizado “por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente” (artigo 15 do projeto); b) a ordem judicial, “sob pena de nulidade”, deveria conter “identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material” (artigo 15, parágrafo único, do projeto); c) se o provedor dispusesse do contato do usuário “diretamente responsável pelo conteúdo a que se refere o art. 15, caberá ao provedor de aplicações de Internet informar-lhe sobre o cumprimento da ordem judicial” (artigo 16 do projeto de lei).

A lei aprovada deu tratamento mais detalhado a esse tema e, à exceção de haver incluído a cláusula de exceção técnica (“no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço”, artigo 19) e a cláusula do interesse da coletividade (requisito extraordinário para a concessão da tutela antecipada, artigo 19, parágrafo 4o), as soluções inovadas parecem melhores do que o original.

Em doutrina, pode-se citar um abrangente estudo sobre o projeto, em sua redação primitiva, de autoria de Marcelo Thompson, cujas principais conclusões serão aqui resumidas:[3]

(a) O modelo de proteção das liberdades comunicativas, em ordem de precedência à proteção aos direitos do artigo 5o, inciso X, CF/1988, embora bastante nítido no julgamento da ADPF 130 (caso Lei de Imprensa), não é adequado para a realidade brasileira. E, como tal, segundo o autor, essa hierarquização terminou por ser utilizada na Lei do Marco Civil.

(b) Quanto ao condicionamento da responsabilidade civil dos provedores ao não cumprimento de ordem judicial, Marcelo Thompson anota que o modelo legislativo adotado no Brasil é impraticável em termos reais, além de criar um ônus muito pesado para as vítimas. [4]

(c) Quanto ao atual artigo 21 da Lei 12.965/2014, Marcelo Thompson alerta para o problema de que o Marco Civil “transforma a defesa da vida privada e da honra dos cidadãos brasileiros — sem mencionar os direitos da criança e do adolescente em casos que não envolvam pornografia29 — em meros assuntos de responsabilidade social corporativa”.[5]

A interpretação doutrinária de Marcelo Thompson, como observado, enfrenta um dos pontos de maior saliência da nova legislação e que se mostra inovador (e contrário) à jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça. É conveniente analisar esses argumentos críticos.

Registre-se, porém, que, como já se salientou nesta e em outras colunas, a opção legislativa foi notória e é sempre bom quando o Congresso chama para si esse papel que sempre lhe coube. Se a solução foi boa, caberá à doutrina, com uma impiedade que muita vez lhe falta quando examina decisões judiciais, desconstruir essas escolhas por meio de sua permanente crítica.


[1] A título de exemplo, de entre vários outros: STJ. REsp 1.193.764/SP, Terceira Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 14/12/2010, DJe 8/8/2011.
[3] THOMPSON, Marcelo. Marco Civil ou demarcação de direitos? Democracia, razoabilidade e as fendas na internet do Brasil. RDA – Revista de Direito Administrativo, Belo Horizonte, v. 261, set./dez. 2012. Disponível em:
[4] “O Marco Civil, em dispositivo redigido por Marcel Leonardi, professor da Fundação Getulio Vargas de São Paulo e, atualmente, diretor de Políticas Públicas do Google Brasil,26 diz que ‘a responsabilidade dos provedores de aplicações (como o Google, em diversos de seus sites) só existe quando estes descumprirem ordem judicial; nunca antes’.27 Mas entre achar um advogado, negociar seus honorários, descobrir quem de fato é o provedor e onde está estabelecido, ter uma petição redigida, ajuizada, obter uma ordem judicial, enviar uma carta precatória para São Paulo ou uma carta rogatória para Londres para fazer cumprir a ordem, notificar o réu e este, dentro de período razoável, tornar o conteúdo indisponível, o conteúdo já foi reproduzido por um, por outro, por centenas de sites na internet” (THOMPSON, Marcelo. Op. cit. item 3).
[5] THOMPSON, Marcelo. Op. cit. item 3.

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    é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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