Leis simultâneas

RDC enquanto bypass da Lei de Licitações causa preocupação

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13 de maio de 2014, 17h03

Uma das ferramentas disponíveis para realizar mudanças no ordenamento jurídico (ou reformas institucionais) é a utilização do bypass[1], onde, diante das dificuldades em proceder com uma alteração direta de um ato normativo tido como ineficiente — seja pelos quóruns legislativos, path dependence, ou grupos de interesse —, cria-se uma nova lei, em tese melhor, que competirá com sua predecessora.

Para que determinada lei (ou instituto) seja classificada como bypass ela precisa reunir quatro características essenciais: 1) a lei preexistente deve ser mantida; 2) cria-se uma alternativa e passa a haver “competição” entre as duas leis; 3) há uma tentativa direta de suprir as deficiências e ineficiências da preexistente; e 4) só serão abrangidos alguns dos serviços ou a execução de apenas algumas das funções da preexistente.

Diante das dificuldades em realizar uma reforma geral da Lei de Licitações, cujas críticas são públicas e notórias, notadamente em relação ao excesso de burocratização, a Administração utilizou justamente um bypass quando da criação do Regime Diferenciado de Contratações (RDC),que reúne todas as características apontadas acima: 1) não foi substituída a Lei de Licitações; 2) criou-se uma alternativa; 3) a justificativa de sua criação foi de tentar reduzir custos, burocracia e lapso temporal para as contratações; e 4) ele só se aplica a determinadas situações legalmente previstas.

A relação entre a lei preexistente e o bypass poderá ser harmoniosa ou combativa a depender dos contornos a ela dado pelos agentes públicos responsáveis pela sua condução, havendo, a priori, cinco cenários finais possíveis: (i) a preexistente e seus defensores resistirão e impedirão a implantação do bypass; (ii) a preexistente cede e desaparece devido ao apoio crescente ao bypass, o qual passa a angariar cada vez mais funções; (iii) a preexistente se modifica para superar suas próprias ineficiências e passa a competir de forma efetiva; (iv) ambas se unem para formar um único sistema; e (v) propõe-se uma divisão de competências entre as leis, mantendo ambas em funcionamento.

Quando da análise deste tema em momento anterior[2], foi sugerido que o cenário final desta relação seria aquele previsto no item “ii”, sendo afirmado que “uma hipótese preliminar, pelo menos até este momento, é que haverá uma verdadeira substituição de um regime de contratações pelo outro, assumindo o RDC o papel de lei ‘guarda-chuva’ para contratações públicas”.

Esta afirmação tinha respaldo nas declarações do Governo Federal, especialmente do alto-escalão da Administração, além da crescente utilização deste mecanismo em recentes projetos de lei, notadamente a atual lei dos portos e os anteprojetos do novo marco regulatório da mineração. As últimas notícias confirmam esta conclusão preliminar.

No final de 2013 foi editada a Medida Provisória 630 (MP 630), que previa a ampliação das hipóteses de utilização do RDC para a reforma de estabelecimentos penais e unidades de atendimento socioeducativo, dentre outras mudanças. Durante a análise desta MP pelo Congresso Nacional, a senadora Gleisi Hoffman emitiu o Parecer 11/2014 (Clique aqui para ler), aprovado pela Comissão Mista do Congresso Nacional, no qual opinou pela “constitucionalidade, juridicidade e boa técnica legislativa” da Medida. No mesmo parecer, a senadora opinou pela aprovação de algumas das emendas propostas, sendo apresentado Projeto de Lei de Conversão (01/2014), o qual alteraria a redação do artigo 1º da Lei 12.462 para: “Fica instituído o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) aplicável a licitações e contratos administrativos no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”; ou seja, a adoção de um novo regime geral de contratações públicas: o contorno final da Lei de Licitações.

Não se defende o RDC como o antídoto para todos os males que assolam as contratações públicas; apenas se reconhece que há tempos o Poder Executivo vem sinalizando que este seria o novo regime[3], contando, inclusive, com afirmações expressas neste sentido da presidente. Por bem ou por mal, parece que o RDC veio para ficar.

Há, porém, preocupações trazidas pelo bypass da Lei de Licitações.

Primeiramente: por quanto tempo mais a Lei de Licitações ainda perdurará, tanto no quesito de aplicação, quanto em relação a sua existência no plano formal? Considerando que alguns dos motivos pela eleição do novo regime seriam maior eficiência e flexibilidade, não se crê que a existência de dois regimes competindo entre eles seja o mais adequado. Apesar de o verdadeiro objetivo ser a substituição da Lei de Licitações, não parece ser isto que ocorrerá, pois em coluna recente, a senadora Gleisi afirmou que “apesar do sucesso das novas regras, persistem algumas restrições entre os que defendem a preservação da lei 8.666, de 1993. Ocorre que essa lei não está sendo revogada. Se o Congresso Nacional vier a aprovar a ampliação do RDC, ele será uma ferramenta adicional, uma via alternativa à disposição do gestor público ao lado das leis que estão em vigor”. Pode ser que este posicionamento seja estratégico para apaziguar os interesses dos defensores da Lei de Licitações, porém isto também traz problemas; nas palavras de André Castro Carvalho, em coluna publicada neste site: “[a] subsistência de dois regimes, como ocorre com as concessões comuns e as PPPs, acaba, naturalmente, fazendo com que a Administração Pública queira colher o que há de melhor dos dois regimes, ainda que em prol do interesse público. O problema é que, quando há dois sistemas subsistentes, a formação de “ornitorrincos” pela Administração Pública passa a não ser aceita juridicamente (…)”.

Desta preocupação emana outra: quais são as implicações para o direito, enquanto sistema consistente e unitário de normas, da convivência de duas leis que tratam do mesmo objeto, porém partindo de lógica e racionalidade diferentes?

Explicando melhor, é possível que, num futuro próximo, convivam duas normas válidas e vigentes que: (1) regulam a mesma matéria; (2) são direcionadas ao mesmo sujeito (Administração Pública); e (3) são aplicáveis na mesma situação. O problema com isto é que, apesar destas semelhanças, suas divergências são inúmeras: a racionalidade de uma é instituir maior rigidez nas contratações públicas enquanto na outra se introduz maior flexibilidade e discricionariedade; em ambas a ordem do certame é distinta; uma parte de um edital extremamente detalhado, especialmente no que tange ao orçamento de determinada obra, enquanto a outra introduz um orçamento sigiloso (disponível apenas para órgãos de controle), na tentativa de impossibilitar um benchmarking de preços; sendo estes apenas alguns exemplos.

Esta convivência, num sistema dinâmico de normas, poderá ser no mínimo problemática, vez que em tese ter-se-ão duas medidas para um peso; ou seja, duas normas cuja aplicação será determinada ao bel prazer da Administração. É preciso, portanto, que seja reconhecido e abordado o elefante na sala: o verdadeiro destino da Lei de Licitações; e isto passa diretamente pela manutenção da consistência do sistema, vez que é preciso extirpar as antinomias, ou seja, a presença “simultânea de normas válidas que se excluem mutuamente”[4]. Como será solucionada esta antinomia, se por revogação expressa posterior, costume negativo ou desuso, de forma explícita ou implícita, está para ser visto ainda.

Por fim, a ultima preocupação que aqui será abordada é: quando da sua introdução no ordenamento jurídico, a utilização do RDC se limitava a obras da Copa do Mundo e das Olimpíadas[5], ou seja, uma lei com tempo e objeto definidos. Não obstante, com o passar do tempo as hipóteses de sua utilização foram sendo paulatinamente ampliadas, até chegarmos a este momento: a tentativa de instituir o RDC como nova lei geral. Ou seja, o transitório se perpetuou para se tornar duradouro. Quais são as implicações disto? Isto é algo positivo?

O cerne da preocupação está na possibilidade de, futuramente, serem introduzidas mudanças que não sejam necessariamente apoiadas pela sociedade, porém aturadas por uma necessidade pontual e pela característica transitória desta imposição. Esta oscilação entre transitório e duradouro não é novidade no país. Um exemplo disto é a Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF), que, na época da sua criação, foi instituída para ajudar, principalmente, no custeio da saúde pública, uma finalidade socialmente desejável sob a ótica redistributiva e de solidariedade. Esta exação, no momento de sua promulgação, tinha prazo definido (no caso a contribuição só incidiria sobre os fatos geradores caracterizados num determinado lapso temporal); contudo, e devido a sucessivas prorrogações deste prazo, ela efetivamente só cessou de existir em 31 de dezembro de 2007[6].

Neste caso havia uma lei destinada para fins socialmente relevantes, com prazo de vigência definido, porém ele se estendeu ao longo dos anos. Mais um caso de perpetuação (ou extensão) do temporário. A este ponto se quer chamar atenção: a promulgação de um ato normativo qualquer sob alegação de temporariedade pode acarretar efeitos imprevistos, uma espécie de moral hazard, deturpando o processo legislativo, o que, no longo prazo, pode ser extremamente deletério para o país, principalmente em relação a discussão de mudanças/reformas legislativas diretas. Há, portanto, necessidade de se ter uma visão de longo prazo, principalmente em relação às leis que regerão a sociedade. Por mais que um determinado caminho seja mais fácil no curto prazo, é preciso atentar para os efeitos imprevistos que isso pode acarretar.

Não se parte do pressuposto de que tudo que é novo é necessariamente melhor, afinal, há aqueles que defendem que lei boa é lei velha, que resiste e se adapta às mudanças ao seu redor. Contudo, a Lei de Licitações apresenta um excesso de burocracia e pouca flexibilização na sua aplicação, não sendo, em alguns casos, o melhor instrumento a ser aplicado.

De tal forma, não se crê o que o melhor posicionamento, diante das inúmeras críticas e da fuga da Lei de Licitações, é não agir/não apresentar mudanças. Inadequado seria simplesmente quedar inerte e criticar veementemente qualquer alteração proposta no sistema, seja ele via reforma direta da lei, ou a criação de um bypass. Se for para falhar, que seja na tentativa de aprimorar o ordenamento e não partindo de uma dialética negativa que se limita a criticar quaisquer mudanças. Ressalta-se, porém, a necessidade de se observar uma discussão democrática e procedimentalmente adequada destas mudanças.


[1] Sobre o tema vide o artigo da Prof.ª Mariana Mota Prado: Institutional Bypass: An Alternative for Development Reform. (http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1815442).

[2]ATHIAS, Daniel Tobias. Institutional bypass – O exemplo do Regime Diferenciado de Contratação (RDC). Revista Fórum de Direito Financeiro e Econômico – RFDFE. ano 3, n.3, mar./ago., Belo Horizonte: Editora Fórum, 2013.

[3] http://www.conjur.com.br/2012-set-11/justica-direito-jornais-terca-feira

[4] SAMPAIO FERRAZ JUNIOR,Tercio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 4. Ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 206

[5]Uma análise interessante sobre este tema é dos Professores Mario Gomes Schapiro e Carlos Ari Sundfeld (http://www.valor.com.br/opiniao/1071596/uma-copa-para-uma-nova-licitacao), que, neste ponto, sustentam que a Copa do mundo “sirva ao menos como uma janela de oportunidade para uma boa reforma da gestão pública.”.

[6] Outros exemplos são o mecanismo da Desvinculação de Receitas da União – DRU e os créditos de ICMS na aquisição de mercadorias destinados ao uso ou consumo (art. 33, I da Lei nº 87/1996).

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