Diário de Classe

A doutrina precisa de "Taxi Driver" e "Os Imperdoáveis"

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10 de maio de 2014, 8h01

Spacca
Consideração propedêutica
Há uma admoestação, comum em nossos trabalhos[1], que afirma o seguinte: no Brasil, a doutrina não doutrina. Trata-se, por certo, de uma assertiva provocatória. Todavia, ela carrega consigo intenções teóricas que indicam uma gramática conceitual mais profunda. Quer a expressão significar que a doutrina, enquanto um saber dogmático que procura justificar suas próprias razões oferecendo-lhes um fundamento de autoridade, no contexto cultural atual do pensamento jurídico brasileiro se apresenta como refém de outras instituições que agenciam o conhecimento jurídico. No caso, estamos falando, mais especificamente, da jurisprudência. Desse modo, a admoestação em epígrafe poderia também ser mencionada da seguinte forma: a doutrina brasileira, em sua enorme e numerosa maioria, é caudatária da jurisprudência dos tribunais.

Explicando melhor a afirmação
Em verdade, doutrina e jurisprudência fazem parte de um cabedal conceitual maior que pode ser apresentado como dogmática jurídica. A definição de dogmática jurídica é complexa e não pode ser reproduzida de forma satisfatória no espaço restrito de uma coluna. Todavia, podemos lembrar aqui as lições de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Primeiramente, o autor mostra-nos que a dogmática jurídica, nos moldes como a conhecemos hoje, é produto de um processo histórico que só chega a se cristalizar nos albores do século XIX, como resultado da aglutinação de três elementos centrais: a) a jurisprudência dos romanos; b) a dogmaticidade dos glosadores medievais; e c) o racionalismo sistemático-iluminista dos séculos XVII e XVIII[2].

Importante anotar que, no que tange à jurisprudência romana, não se pode entendê-la no modo como articulamos o termo jurisprudência no contexto atual. Para os romanos, a jurisprudência era uma confirmação, um fundamento do certo e do justo. Tratava-se da realização concreta da prudência grega, que entre os gregos permanecia retida como uma simples promessa de orientação — pela reta razão — para a ação. Na Idade Média, a teoria jurídica torna-se uma disciplina universitária, na qual o ensino era dominado por textos que gozavam de autoridade. Por certo, permanece presente o pensamento prudencial da jurisprudência romana, mas acontece uma reformulação no seu caráter: aquilo que os romanos chamavam de casos problemáticos são transformados em casos paradigmáticos pelos medievais, casos estes que deveriam expressar uma harmonia interna. Dito de outro modo, a ideia de cúria presente nos romanos é substituída pela ideia de escola dos medievais. Já na modernidade, a autoridade já identificada nos textos medievais passará por uma modificação decisiva, na medida em que a harmonia reivindicada deverá se adequar à ordem de um sistema abstratamente considerado segundo os padrões do pensamento matemático. Assim, a tarefa da dogmática jurídica será transformada radicalmente, na medida em que, além da simples tarefa de exegese dos textos, ser-lhe-á agregada a tarefa de posicionar os resultados de sua produção no contexto de um sistema.

No contexto do século XIX, a dogmática jurídica se organizará a partir de críticas lançadas ao método dos antigos glosadores, que basicamente ficarão restritas ao problema da falta de sistematicidade dos estudos medievais. Ao mesmo tempo, seu trabalho será construído em torno dos códigos dos oitocentos – que, por sí só, já expressavam o ideal de sistematicidade –, de modo que ela passa a receber um caráter lógico-demonstrativo de um sistema fechado dedutivamente, cuja maior expressão será a chamada jurisprudência dos conceitos. Assim, podemos identificar como traços marcantes deste período de sedimentação da dogmática jurídica a primazia da lei e o caráter sistemático do Direito.

Cabe aqui também uma referência ao modo como os medievais procediam ao estudo dos textos romanos para que se tenha, com maior clareza, a influência dos glosadores e comentadores para a conformação da dogmática jurídica. Nesse sentido, Harold Berman assevera: “o curriculum de uma Faculdade de Direito do século XII consistia, em primeiro lugar, da leitura de textos do Digesto. (…) Como o texto era muito difícil, ele tinha que ser explicado. Por isso, após ler o texto, o professor glosava-o , isto é, interpretava-o, palavra por palavra, linha por linha (Glosa em grego significa tanto ‘língua’, ou ‘linguagem’, como ‘palavra incomum’). As glosas, ditadas pelo professor, eram copiadas pelos estudantes entre as linhas do texto; quando se tornavam mais longas, espalhavam-se pelas margens. Logo, as glosas adquiriram autoridade quase igual à do próprio texto glosado.”[3]

É interessante notar que é nesse contexto que se forma a chamada “doutrina”. Por certo que, com o surgimento da prensa no contexto da revolução provocada por Gutemberg, essa técnica de glosar e comentar os textos romanos foi substancialmente transformada a partir da produção em larga escala de livros jurídicos. É importante também lembrar que, no ambiente da Codificação, o caráter proto-teológico atribuído aos textos romanos será transferido para os Códigos Civis, cujos marcos centrais são o Code Napoleon de 1804 e o BGB Alemão de 1900. O objeto da glosa será a obra do legislador racional, impressa na forma de código!

Sem embargo das diversas modificações que a contemporaneidade implica nessa relação (temos democracias pluralistas, muito mais complexas do que a realidade franco-alemã do século XIX), é possível afirmar que tanto doutrina quanto jurisprudência envolvem o conjunto de saberes com o qual lidam em contextos de decisão. Vale dizer, circulam em torno de textos a que são atribuídos alguma autoridade, procurando encontrar soluções decisionais para casos específicos que lhe são apresentados. Há, por certo, uma diferença de intencionalidades: a doutrina preocupa-se em ensinar o Direito, ordenando o seu conhecimento e oferecendo conformação para as contradições e paradoxos produzidos pelo discurso jurídico; a jurisprudência, por outro lado, está mais diretamente ligada à solução dos casos concretos, presa mais diretamente aos contextos decisionais.

A doutrina tem sido leniente
Em seu trabalho cotidiano, a doutrina deve oferecer uma interpretação crítica das decisões produzidas pela jurisprudência. Justamente por sua diferente intencionalidade, a doutrina tem o papel de avaliar as decisões e censurá-las nos casos de estarem em desacordo com um contexto mais amplo de análise.

Ocorre que, entre nós, a doutrina tem sido leniente no desempenho dessa sua fundamental função. Talvez, tenha ficado acuada diante da verborragia do ex-ministro Gomes de Barros, quando este afirmou: “não me importa o que a doutrina diz. Na autoridade de minha jurisdição, decido conforme a minha consciência”.[4]

O fato é que, no contexto atual, principalmente depois que um certo otimismo rousseuniano parece ter tomado conta do plenário do Supremo Tribunal Federal, a doutrina mais aplaude do que censura as decisões judiciais. Revela-se, portanto, como uma não-doutrina.

Claro que, em um ambiente democrático, a doutrina não se apresenta como um bloco monolítico de opiniões. Ao contrário, deve(ria) haver um pluralismo de ideias e um embate produtivo das mais diversas posições. Todavia, a regra é produzir uma atitude conformada de simples descrição das decisões tribunalícias.

Como o cinema e literatura podem nos ajudar
Temos a impressão, às vezes, de que estamos em algum lugar no Direito que se parece com aqueles filmes hollywoodianos em que as posições estão sempre bem definidas (quem é o bandido e quem é o mocinho) e que as coisas são sempre muito belas, românticas e charmosas. Uma espécie de romantismo. Ou um idealismo filosófico filmado por diretores conformados com a situação.

E de se consignar que, mesmo nesse ambiente, as coisas mudaram. Com efeito, Taxi Driver, por exemplo, é um filme dirigido por Martin Scorsese e que representa um divisor de águas na filmografia hollywoodiana. Filmes produzidos anteriormente retratavam uma Nova York em estado de quase-perfeição: o central park no outono, os belos prédios de Manhattan e pessoas, muitas pessoas, a ir e vir, enfrentando bravamente o drama cotidiano de suas existências. No filme de Scorsese, que conta com uma memorável atuação de Robert de Niro, somos levados junto com o desajustado taxista a passear por ruas sujas e violentas tomadas por traficantes, proxenetas e prostitutas, ao som tenso de um complexo jazz. Não queremos entregar um spoiler ao leitor, mas, sem embargo das interpretações divergentes, a película mostra-nos um dos casos mais emblemáticos do “herói por acidente”, criado por factoides e pela impressão social projetada pela imprensa.

Claro que Taxi Driver não é o único filme a possuir tais características. Chinatown, de Roman Polanski, também explora aspectos similares com uma inspiração noir ainda mais forte. No ramo western, por exemplo, temos Os Imperdoáveis, de Clint Eastwood, que também traz um toque de realidade-nua-e-crua para as telas. Diferentemente dos vetustos enfrentamentos de bandido e mocinho em que John Wayne, montado em um reluzente cavalo puro-sangue, disparava com perfeição tiros certeiros e infalíveis, em Os Imperdoáveis vemos equinos de duvidosa procedência, armas que não funcionam, tiros que erram seu alvo, além de percebermos uma dificuldade muito maior para avaliar quais são os representantes do “bem” quais são os do “mal”. Ah… e, claro, as moças dos prostíbulos não são de uma beleza perfeita como a de uma Claudia Cardinale.

Por isso, a doutrina precisa de Os Imperdoáveis, se entendem a ambiguidade do que estamos falando, a exemplo de Fernando Pessoa, ao dizer que “navegar é preciso…viver não é preciso”. Observem a duplicidade de “preciso”. Assim, a doutrina de Os Imperdoáveis é precisa (certeira), porque mostra uma sociedade real, sem a idealidade e o romanceamento do personagem no qual tudo gira em seu entorno (lembremos que o realismo tratará da estrutura… – um bom exemplo é a ruptura provocada por Flaubert, em seu Madame Bouvary).

E, ao mesmo tempo, a doutrina precisa (necessita) de algo como Os Imperdoáveis. Necessita mostrar o direx (Direito Realmente Existente, em suas mazelas, os erros dos Tribunais, as decisões solipsistas, a incoerência, a falta da integridade nas decisões… enfim, mostrar como a prostituta é feia, o whisky é ruim, como a arma só acerta quando for de perto e com o cano serrado, etc). E deve ser precisa (nos dois sentidos) para mostrar como o Direito deve ser compreendido e aplicado.

A doutrina precisa de Taxi Driver… Precisa ao demonstrar as ruas sujas… E precisa no sentido da necessidade de mostrar as coisas sem as glosas idílicas.

No Direito, a dogmática jurídica, ao não produzir uma doutrina precisa, também não consegue mostrar que o Direito precisa de uma doutrina que constranja a operacionalidade cotidiana. Doutrina, doutrina. Deve doutrinar. Doutrinar deve ser preciso. E é preciso que se doutrine (de novo).

A doutrina deve provocar constrangimentos epistêmicos. E deve constranger o jurista no sentido epistemológico das vivências jurídicas (no sentido filosófico do termo). Como Émile Zola faz com o leitor, ao contar, “naturalisticamente” (ou de forma realista), as mazelas da exploração dos mineiros do século XIX:

“Desta vez o velho não pôde responder imediatamente, um violento acesso de tosse o sufocava. Por fim escarrou, e seu escarro fez uma mancha negra no chão avermelhado. — É, sim, é uma mina, a Voreux. E veja, lá bem próximo está o conjunto habitacional dos mineiros…”.

Eis Zola, o príncipe do naturalismo. Zola era preciso. E como é preciso que leiamos Zola. Pois é. Precisamos de algo assim para a doutrina no Direito…! Por isso, se agora dizemos que é preciso que se doutrine, como um chamado hermenêutico, mais tarde talvez possamos dizer que “doutrinar é preciso”…! Ou que doutrinar pode, sim, ser preciso, certeiro, necessário!

Eis, portanto, uma alegoria de que como deve ser a doutrina jurídica. Dura. Como em Os Imperdoáveis. Se o TST negar recurso por causa de um cêntimo, tal fenômeno não deve ser maquiado. Se o STF utilizar argumentos meta jurídicos, isso deve ser mostrado, sem fundo musical. E sem romantismo. Machado de Assis sabia fazer bem isso. Mormente a partir de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Entrava na sua fase realista. Foi dali em diante que ele se tornou mais preciso, se entendem nossa ambiguidade! Por isso, o título desta coluna escrita a quatro mãos. Era preciso escrevê-la.


[1] A primeira vez em que a admoestação foi dita e feita, amiúde, ocorreu em Coimbra, durante Conferência de Lenio Streck na FDUC, sobre o tema Teoria da Decisão, em 2009. A frase, ao atravessar o mar na carona de um nativo, acabou por provocar mal entendidos, do tipo: Lenio Streck disse em Coimbra que a doutrina brasileira acabou. Depois disso a frase voltou ao seu leito original, sendo hoje utilizada largamente em terrae brasilis, claro que, agora, corretamente e no seu contexto.
[2] Conferir, para tanto, Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. São Paulo: Max Limonad, 1998.
[3] Cf. BERMAN, Harold. Direito e Revolução. A formação da Tradição Jurídica Ocidental. São Leopoldo: Unisinos, 2006, p. 166.
[4] Sobre o assunto: O que é Isto – Decido Conforme a minha Consciência. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.

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