Governo x Estado

A prescrição do direito de ação com rescisão de parcelamento

Autor

  • Eurico de Santi

    é professor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e coordenador do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getúlio Vargas

8 de maio de 2014, 13h33

Artigo produzido no âmbito das pesquisas desenvolvidas no NEF/Direito GV. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

A prescrição do direito de ação do Fisco no Direito Tributário não existe para fazer justiça. Trata-se de regra de caráter institucional, criada pelo Direito para construir segurança jurídica e estabilizar as relações tributárias pela extinção do direito de ação no processo executivo fiscal. Não existe para “perdoar” a dívida do contribuinte, mas para regular a conduta dos procuradores da Fazenda Nacional, mediante a extinção do direito de ação e do próprio crédito tributário, para garantir disciplina e eficiência na sua cobrança. Como diz Pontes de Miranda, o “fundamento da prescrição é proteger o que não é devedor e pode não ter mais prova da inexistência da dívida; e não proteger o que era devedor e confiou na inexistência da dívida, tal como juridicamente aparecia”[1].

No plano geral e abstrato, a norma de prescrição descreve, em sua hipótese, o decurso do tempo qualificado pela omissão do Fisco no exercício do direito de ação e, em seu consequente, a previsão abstrata da extinção do direito de ação (ex vi do artigo 174 do Código Tributário Nacional) e da extinção do crédito (ex vi do artigo 156, inciso V). Essas normas são precedidas, em nexo de causalidade jurídica, pelas normas que constituem o crédito e pelas normas que determinam o exercício do direito da ação executiva fiscal. No plano individual e concreto, a prescrição é introduzida por ato de aplicação que veicula em seu antecedente o fato concreto do dies a quo em conjunção ao decurso do tempo qualificado pela omissão do Fisco e, no seu consequente, a objetiva relação jurídica extintiva do direito de ação e do crédito. Observe-se que, na hipótese da regra de prescrição, a conduta não é o tempo, que, aliás, nunca pode ser conduta; quando muito, pode demarcar a não-conduta: a conduta é a omissão do agente administrativo no exercício do direito de ação.

Nesse sentido, seguindo a linha de Pontes de Miranda, a prescrição presta-se a proteger a pessoa de Direito Público interno titular da dívida (União, estados, municípios e DF). Especialmente no caso da cobrança do crédito tributário em que há a dualidade entre (i) o “titular do direito ao crédito” [União, estados, municípios e DF] e (ii) o “servidor público” responsável pelo dever-poder de exercer o direito de ação em nome do titular do direito ao crédito. Assim, a regra de prescrição, além de extinguir o direito de ação em nome da segurança jurídica, funciona, também, como regra de conduta dirigida aos procuradores da Fazenda.

No caso da prescrição, a existência do dever-poder do procurador da Fazenda exercer o direito de ação executiva fiscal implica duas relações jurídicas: (i) há o “poder” do procurador da Fazenda em face do contribuinte de exercer o direito de ação, instalando o processo executivo fiscal e (ii) há o “dever” do procurador da fazenda em face da pessoa jurídica de Direito Público interno de exercer o direito de ação dentro do prazo prescricional.

Ocorre que o servidor público “K” (procurador da fazenda) é agente de Estado protegido por estabilidade funcional. Tal prerrogativa tem por principal função proteger o agente “K” da pressão dos interesses “de governo” (por exemplo, arrecadar) sobre os interesses “de Estado” (manter a ordem e a legalidade, independentemente da arrecadação). Contudo, essa garantia do servidor público “K”, na qualidade de agente de Estado, enseja três externalidades negativas: (i) a eventual inércia na ação do servidor público “K” (procurador da Fazenda) no exercício de suas funções de Estado, que pode gerar a perda do direito de ação na cobrança do crédito tributário, (ii) a discricionariedade do agente público “K” em definir arbitrariamente, mediante ato administrativo próprio, o termo inicial da prescrição e (iii) a dificuldade da Administração Pública regular as condutas do agente público “K” protegido pela prerrogativa da estabilidade funcional.

No Brasil, a Execução Fiscal realiza apenas 2% do estoque de créditos tributários executados.[2] Ocorre que, em um país em que 57,27% dos empreendimentos desaparecem antes de completar cinco anos de vida[3], o próprio prazo de prescrição (também de cinco anos a contar da constituição da dívida) acaba por inviabilizar a cobrança do crédito: já não existe mais a pessoa jurídica do devedor. Nesse sentido, as reiteradas anistias são formas de incentivar o pagamento desses créditos. Também, nesse sentido, as regras de prescrição estão voltadas para incrementar o dever de vigilância dos procuradores da Fazenda Nacional na cobrança do crédito tributário. Ou seja, é através da prescrição do direito de ação que a instituição PGFN regula a conduta de seus procuradores no sentido de garantir contínua vigilância dos programas de parcelamento, exigindo que os atos de exclusão não ocorram cinco anos após os fatos que lhes servem de fundamento. Dessa forma, a Administração Pública, regulando o prazo de prescrição, ao mesmo tempo: (i) rege a conduta dos procuradores da Fazenda, qualificando a omissão desses agentes públicos e (ii) dá ensejo à aplicação de penalidades funcionais pelo não exercício do direito de ação.

É perversa a combinação entre o sigilo fiscal e as destacadas externalidades negativas da prerrogativa da estabilidade funcional. Não obstante (i) a Constituição de 1988 estabeleça a transparência dos atos da Administração Pública como regra e o sigilo como exceção, permitido o “uso do sigilo de informações da Administração Pública” apenas para casos de calamidade pública e de interesse da soberania nacional ex vi do artigo 5º, inciso XXXIII; (ii) a Lei de Transparência (Lei Complementar 131/2009) confirmar a necessidade de disponibilizar na Internet os atos administrativos relativos à arrecadação; e (iii) a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) determinar os procedimentos de abertura e disponibilização de “informações públicas”; a PGFN vem, sistematicamente, negando-se a aderir à transparência e sujeitar-se ao controle social de seus atos. No plano normativo, a despeito de resistir à CF/88, à Lei de Transparência e à Lei de Acesso a Informação, orientações normativas internas e “secretas” que regulamentaram a Lei de Acesso a Informação parecem insistir em manter os atos administrativos da PGFN ocultos e secretos sob a alegação do “sigilo fiscal”. No plano fáctico, basta acessar o site da PGFN para verificar que os pareceres da PGFN relativos à matéria tributária NÃO são disponibilizados em sua integralidade[4].

É nesse contexto que se insere o Parecer Normativo/PGFN 496/2009, determinando que, nos casos de parcelamento, o início da contagem do prazo prescricional é a data do descumprimento do acordo “em que ocorre uma das hipóteses legais de rescisão”[5]. Segundo a Lei 9.964/2000, instituidora do Refis, entre outras, são hipóteses legais de exclusão do REFIS ex vi dos incisos do artigo 5º dessa lei: (i) o não pagamento em meses consecutivos ou alternados e (ii) falta de formalização das garantias exigidas para aderir ao Refis. Esse Parecer Normativo/PGFN assenta seu fundamento de validade no Código Tributário Nacional que dispõe ex vi do artigo 100 que “são normas complementares das leis, dos tratados e das convenções internacionais e dos decretos: I – os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas”. Assim, segundo regra prevista nesse Parecer Normativo/PGFN 496/2009 “a necessidade de intimação do contribuinte acerca de sua exclusão não impede que a Administração empreenda, desde a ocorrência do descumprimento do acordo, atos de cobrança visando a rescisão formal do parcelamento. Em suma, nesses casos o débito volta “a ser exigível desde o descumprimento do acordo, inobstante a lei exigir futura intimação do contribuinte da rescisão”[6].

Destaque-se que a motivação desse parecer está no entendimento formalizado pela própria jusrisprudência citada no corpo do Parecer Normativo 496/2009 que destaca a “impossibilidade do prazo prescricional ser manipulado por uma das partes interessadas”[7]: “significaria reconhecer ao Fisco a ingerência sobre os prazos prescricionais sem respaldo legal, alterando ao seu alvedrio o interregno, que flutuará de acordo com a conveniência do credor do débito”[8].

A norma de conduta da prescrição, endossada pelo Parecer Normativo/PGFN 496/2009, determina que o procurador da Fazenda deve zelar e cuidar da execução fiscal dentro do prazo de cinco anos a contar do fato do descumprimento de qualquer das hipóteses legais de rescisão do acordo. A Portaria do Comitê Gestor do Refis 1.587/2007, determinou a exclusão do contribuinte do Refis em razão da não formalização das garantias para aderir ao programa. O ato interpretativo consolidado no Parecer Normativo/PGFN 496/2009 e com fundamento no julgado do STF, do qual originou a Súmula Vinculante 8, destacou que ato unilateral da PGFN não pode “conduzir à imprescritibilidade do crédito fiscal”.

Enfim, merece aplausos e elogios a iniciativa e a lógica do “Parecer Normativo” 496/2009 que autolimitando os atos da procuradoria da Fazenda Nacional determinou que o débito volta “a ser exigível desde o descumprimento do acordo, inobstante a lei exigir futura intimação do contribuinte da rescisão”[9], que em texto claro e muito bem fundamentado exorta os valores da segurança jurídica, da certeza do direito e da vinculação dos atos administrativos, defendendo a exemplar função da instituição Procuradoria da Fazenda Nacional como guardiã dos interesses “de Estado”.


[1] PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954. Vol. 6, p. 100.

[2] Dado extraído do site da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional. A análise do Balanço Geral da União nos anos de 2009 a 2011 permite a seguinte constatação: No ano de 2009, o total de créditos componentes do estoque era de R$ 827.824.998.507,62 ao passo que o total da arrecadação foi apenas de  R$ 17.536.062.718,60, o que nos informa uma taxa de êxito de apenas 2,11%. Repetindo o mesmo raciocínio para o ano de 2010, de um estoque de R$ 880.596.409.092,74, apenas  R$ 5.429.420.504,74  foi recuperado, resultando em uma taxa de êxito de 0,62%. Finalmente, para o ano de 2011, de um estoque de R$ 998.762.268.281,57, o total arrecadado foi apenas de  R$ 13.636.907.233,73, resultando em uma taxa de êxito de 1,37%. Disponível em http://www.pgfn.gov.br/divida-ativa-da-uniao/dados-estatisticos com último acesso em 25/02/2014.

[3] De acordo com estudo publicado pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT), o índice de mortalidade das empresas vem descrescendo nos últimos anos, contudo, ainda se mostra elevado, conforme demonstra a seguinte passagem do estudo empírico: “Atualmente, 15,41% dos empreendimentos morre no primeiro ano de vida. Entre um e cinco anos de vida, 41,86% dos empreendimentos desaparece e até 14 anos de vida mais de 75% das empresas encerram suas atividades.” Disponível em https://www.ibpt.org.br/noticia/372/Censo-das-Empresas-Brasileiras-2012, com último acesso em 23/02/2014.

[4] Em consulta ao sítio eletrônico da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, no tópico “Atos da PGFN” e subtópico “Pareceres”, para o ano de 2009, existem apenas 12 Pareceres listados, em números que não são sequenciais: o primeiro é 0 Parecer n. 55/2009 e o último é o Parecer n. 2.712/2009. Disponível em http://dados.pgfn.fazenda.gov.br/dataset/pareceres?page=120 com último acesso em 25/02/2014.

[5] Ementa oficial do Parecer Normativo PGFN/CDA/Nº 496/2009: “ Parcelamento. Reinício da contagem do prazo prescricional. Rescisão. Descumprimento do acordo. Data em que ocorre uma das hipóteses legais de rescisão. Purgação da mora. Possibilidade até a rescisão formal do parcelamento.”

[6] Parecer PGFN n° 496/2009. Item 31.

[7] Parecer PGFN n° 496/2009. Item 32. Referência ao Acórdão 2007.72.99.002250-0. Rel Des. Artur César de Souza. TRF 4ª Região.

[8] Idem, ibidem

[9] Parecer PGFN n° 496/2009. Item 31.

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    é professor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas e coordenador do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getúlio Vargas

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