Direito Comparado

Liberdades comunicativas e privacidade no Marco Civil

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

7 de maio de 2014, 8h00

Spacca
Iniciou-se o exame do marco civil da internet, aprovado pela Lei 12.965, de 23 abril de 2014, ainda em período de vacatio legis de 60 dias, contados de sua publicação no dia 24 de abril de 2014, na coluna anterior. Volta-se agora ao estudo dessa importante legislação, cujo alcance não se restringe apenas ao Direito Público, mas também ao Direito Privado.

Os princípios da disciplina do uso da internet no Brasil estão indicados no artigo 3o da nova lei. O primeiro deles é a “garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal” (inciso I).

A referência ao texto constitucional seria desnecessária, porque óbvia a conformação desses princípios ao quanto disposto nos artigos 5o, inciso IX, e 220 da Constituição, continente do que a doutrina alemã denomina genericamente de liberdades comunicativas. Independentemente do caráter expletivo desse inciso, é compreensível que o legislador haja pretendido enfatizar seu compromisso com a proteção dos conteúdos jurídicos ali enunciados.

Os incisos II e III também formulam princípios constitucionais, ainda que em linguagem um tanto diversa, como o da “proteção da privacidade” e da “proteção dos dados pessoais, na forma da lei”. A conexão com o artigo 5o, incisos X (inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas) e XII (inviolabilidade do sigilo de dados) é também facilmente assimilável.

Ao prestigiar os princípios da proteção às liberdades comunicativas e à privacidade e à proteção dos dados pessoais, a lei transferiu para o plano infraconstitucional um debate sobre os limites das liberdades comunicativas, que já se encontra bastante avançado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça e de alguns tribunais estaduais. São paradigmáticos dessa questão na jurisprudência os casos Ellwanger[1], da Lei de Imprensa[2] e dos humoristas[3].

Interessa saber, no entanto, como esses princípios terminaram por se converter em regras no corpo da lei instituidora do marco civil da internet.

Essa questão pode-se dividir em dois itens. O primeiro sobre as liberdades comunicativas e o segundo sobre a proteção de dados pessoais. Para esta coluna, até por sua extensão, ficar-se-á apenas com a relação entre as liberdades comunicativas e a proteção da intimidade.

Liberdades comunicativas e intimidade: princípios que se convertem em regras e conflitos que não se resolvem
De princípio, a “proteção à privacidade” (inciso II do artigo 3o, Lei do Marco Civil) tornou-se direito do usuário e ganhou outro nomen iuris no inciso I do artigo 7o da lei sob estudo, que assegura àquele a “inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Admitindo-se que o legislador quis dizer privacidade no lugar de intimidade, a despeito da assimetria conceitual existente, houve aqui a criação de um direito, que se reconduz a um princípio. Com a estrutura de regra tem-se: (a) a intimidade e a vida privada do usuário são protegidas; (b) a violação desse direito implicará ressarcimento. E como se dá essa violação? E se o fato, a imagem ou a opinião, relativos à intimidade e à vida privada, forem divulgados como expressões de uma liberdade comunicativa?

Bem, antes de se responder a essas duas perguntas, é necessário perceber que o artigo 8o, caput, da Lei do Marco Civil, “a garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet”, sendo certo que “são nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que violem o disposto no caput” (parágrafo único do artigo 8o), além de outras que impliquem violação ao sigilo das comunicações privadas e sua inviolabilidade (inciso II do artigo 8o), bem com as que, em contrato de adesão, “não ofereçam como alternativa ao contratante a adoção do foro brasileiro para solução de controvérsias decorrentes de serviços prestados no Brasil” (inciso II do artigo 8o).

O legislador, no artigo 8o, tentou uma difícil compatibilização dos dois princípios enunciados no artigo 3o, ao colocar, desta vez como regra, que as liberdades comunicativas e a proteção à privacidade (não mais a intimidade ou a vida privada, como no artigo 7o) não só integram o suporte fático do direito de acesso à internet, como também condicionam seu exercício. Trata-se de um limite interno ao direito à liberdade comunicativa (princípio no artigo 3o e direito assegurado por uma regra no artigo 8o). Ter-se-ia, portanto, como impeditiva ao exercício do direito de acesso à internet a violação das liberdades comunicativas e da privacidade. Remanesce o problema: como resolver a situação decorrente de um exercício de direito que se invoque, simultaneamente, a violação e a observância desses deveres e direitos?

Nesse ponto, surge a seção III do capítulo III da Lei 12.965, de 23 abril 2014, em cujos artigos 18 a 21 se encontram soluções legislativas para um problema que a jurisprudência vem tratando de resolver há algum tempo, por meio de critérios que já foram resumidos em outras colunas. Na essência ter-se-ia que:

“As conclusões extraídas do ‘grupo de casos’ das Turmas da 2ª Seção do STJ coadunam-se com acórdãos (pretéritos ou mais atuais) de órgãos inferiores da jurisdição ordinária nacional. Encontram-se posições no sentido de que: a) ‘o Google é apenas uma provedora de hospedagem, ou seja, empresa que sedia páginas de usuários, se limitando a armazenar e disponibilizar arquivos e páginas eletrônicas para uma rede de inúmeros interessados’[8]; b) não se deve utilizar o conceito de atividade de risco (artigo 927, parágrafo único, CC/2002) para qualificar juridicamente os serviços dos provedores de conteúdo na internet, pois ‘se for aprovado esse entendimento, haverá uma retratação do mercado e os provedores certamente não mais atuarão no espaço, em virtude da completa e total impossibilidade de estabelecimento de filtros de contenção de conteúdo’, até porque ‘a responsabilidade pelo risco da atividade deve ser imaginada e admitida em casos em que a empresa aceita os ônus do perigo do trabalho lucrativo porque existe um aparato razoável para evitar e prevenir os danos potenciais e nunca quando inexistem meios para bloqueio de interferência de terceiros no exercício de uma função de cunho essencial para a civilidade (Internet)’[9]”.[4]

Na prática, os provedores seriam responsáveis subjetivamente pelos conteúdos que violassem direitos da personalidade (embora não apenas esses) das vítimas, desde o instante em que houvessem sido comunicados e se quedassem inertes pelo prazo de 24 horas.

A Lei do Marco Civil, em seu artigo 18, expressamente cria uma zona de não responsabilidade dos “provedores de conexão à internet” ao afirmar que estes não serão responsabilizados “civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros”. A conexão de acesso, ainda conforme o glossário contido no art. 5o da lei, é o mesmo que habilitar “um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela internet, mediante a atribuição ou autenticação de um endereço IP” (inciso V). Esta norma está de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Ao que a lei chama de “provedor de aplicações de internet”, no entanto, deu-se tratamento diverso à experiência jurisprudencial consolidada. O artigo 19 da Lei do Marco Civil, invocando a proteção da “liberdade de expressão” o impedimento da censura, afirma que “o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário”.

A norma tornou cogente a judicialização da pretensão da vítima, que alegue ter sofrido dano decorrente de conteúdo gerado por terceiros. O provedor de aplicações deverá ser compelido judicialmente a retirar esse conteúdo, o que se dará, ainda, em conjugação a outros requisitos: a) a ordem judicial, para não se considerada nula, deverá indicar de modo claro e específico qual o “conteúdo apontado como infringente”, de modo a que se torne possível “a localização inequívoca do material” (artigo 19, parágrafo 1o); b) é possível que o provedor de aplicações seja exonerado de responsabilidade se comprovar que a retirada do conteúdo ultrapassa o “âmbito” e os “limites técnicos do seu serviço” (artigo 19, caput, parte final).

As ações destinadas a suprimir conteúdos ofensivos poderão tramitar em juizados especiais. Em mais um problema terminológico da lei, que poderá gerar dúvidas absolutamente dispensáveis, essa abertura para os juizados especiais diz respeito a “causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet” (parágrafo 3o do artigo 19).

Evidentemente que haverá ações que não objetivem a reparação de danos, mas somente a cessão da exposição dos conteúdos, ou que venham a tutelar direitos outros que não os da personalidade ou os ligados à honra ou à reputação (supondo-se que estes também não se enquadrem no conceito de direitos da personalidade). Nessa hipótese, ainda assim será possível promover essas ações nos juizados especiais? A interpretação literal conduz a uma resposta negativa. Mas, para salvar a norma de uma resposta insuficiente do ponto de vista finalístico, não faltarão soluções contra legem, em ordem admitir que quaisquer ações que versem sobre direitos tutelados no marco civil sejam propostas também nos juizados especiais.

A tutela antecipatória nas ações relativas aos conteúdos ofensivos é permitida no parágrafo 4o do artigo 19. A lei criou um requisito próprio para as tutelas antecipadas, para além dos existentes no Código de Processo Civil, que vem a ser “o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet”. O alcance desse novo requisito é também digno de muita reflexão. Está a se dizer que, se for socialmente relevante a informação, o direito à intimidade cederá ante a liberdade comunicativa. Não seria melhor simplesmente manter o conflito entre os princípios anunciados no artigo 3o e deixar de lado um conceito jurídico indeterminado alheio a esses dois núcleos?

Bem, é perceptível que, tanto na judicialização do procedimento, quanto neste novo requisito específico para a tutela antecipatória nas ações do marco civil, o legislador agiu de maneira da atribuir mais peso ao princípio das liberdades comunicativas em detrimento da proteção à intimidade. Ultrapassam os limites desta coluna o debate sobre a legitimidade dessa escolha do legislador democrático. Essa opção, no entanto, veio em contradição com a supressão da via administrativa, mais simples, acessível e protetiva dos direitos das vítimas.

O artigo 20, por sua vez, assume um caráter mais expletivo do que prático: se há ordem judicial e foi possível identificar o autor do conteúdo danoso, esse sujeito será atingido pela determinação do Poder Judiciário. Logo, qual a utilidade da exigência de que o provedor de aplicações de internet comunique-lhe “os motivos e informações relativos à indisponibilização de conteúdo, com informações que permitam o contraditório e a ampla defesa em juízo, salvo expressa previsão legal ou expressa determinação judicial fundamentada em contrário”? O ideal seria ter sido criada uma regra procedimental para a retirada administrativa.

Na próxima coluna, enfrentar-se-ão outras questões relativas à seção III do capítulo III da Lei nº 12.965, de 23 abril 2014, com a contribuição do Direito estrangeiro.


[1] STF. HC 82424, Relator Min. Moreira Alves, Relator p/ acórdão: Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ 19-03-2004.

[2] STF. ADPF 130, Relator Min. Carlos Britto, Tribunal Pleno, julgado em 30/04/2009, RTJ 213/20.

[3] STFADI 4451 MC-REF, Relator Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno, julgado em 02/09/2010, DJe 24-8-2012).

[4] RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Quais os limites para rede social responder por danos? Consultor Jurídico, 6.3.2013. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2013-mar-06/direito-comparado-quais-limites-redes-sociais-responderem-danos. Acesso em 6-5-2014.

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  • Brave

    é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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