Questão Carcerária

Restringir HC é contrassenso em relação a políticas públicas

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5 de maio de 2014, 17h16

Vivemos num país de encarcerados. Segundo estatísticas colhidas pelo Departamento Penitenciário Nacional [1], em junho de 2013 tínhamos 574 mil presos, ou cerca de 0,26% de toda a população brasileira [2].

Como, num Estado Democrático de Direito, ninguém poderá ser privado de sua liberdade senão por meio do devido processo legal (Constituição Federal, artigo 5º, inciso LIV), toda essa população carcerária é, numa definição fria, cliente do Poder Judiciário; e, assim — também por determinação constitucional — são-lhes assegurados todos os recursos e remédios cabíveis, em todas as instâncias.

Sendo assim, não é nenhuma surpresa que o poder público, especialmente o Conselho Nacional de Justiça, empreenda algumas campanhas ou mutirões com o objetivo de buscar uma solução para a questão carcerária. Mesmo assim, tanto no âmbito legislativo quanto no judiciário, há verdadeira aversão à busca de formas alternativas à pena de prisão, cuja falência como punição já é sobejamente comprovada, em virtude dos altos índices de reincidência.

Em claro contrassenso a essa necessidade de mudanças, no entanto, a partir de um histórico julgamento ocorrido no âmbito do Supremo Tribunal Federal em agosto de 2012, um dos remédios mais caros à democracia e às liberdades públicas viu-se na iminência de se tornar uma letra morta em nossa Constituição Federal. O Habeas Corpus está, nesse momento, na iminência de desaparecer, pelo menos no que diz respeito à sua apreciação pelos tribunais superiores.

A partir de seu voto proferido nos autos do Habeas Corpus 108.715 (ainda não publicado), o Supremo Tribunal Federal – e o Superior Tribunal de Justiça, imediatamente após a divulgação do texto[3] – passaram a não mais admitir a impetração de Habeas Corpus quando cabível o recurso ordinário, previsto no artigo 102, inciso II, alínea a, da Constituição Federal. Impediu-se, dessa forma, não apenas a impetração de novos Habeas Corpus, mas também que aqueles já denegados pelos tribunais inferiores e abarcados pelo trânsito em julgado fossem conhecidos e apreciados.

Isso, com toda a certeza, acarreta imenso prejuízo ao exercício das garantias constitucionais asseguradas a todo e qualquer acusado em uma ação penal e ao estado de direito como um todo, sendo necessária reflexão a respeito, por toda a sociedade.

Pois bem. Pode-se dizer, com absoluta segurança, que o Habeas Corpus é a mais alta conquista dos povos democráticos – cristaliza a terapêutica constitucional por excelência na tutela do direito de locomoção. Virtuoso instrumento que é, pode –e deve– ser utilizado todas as vezes em que, nos claríssimos termos do artigo 5º, inciso LXVIII da Constituição Federal, “(…) alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.

Apesar de ser erroneamente tratado pelo Código de Processo Penal como recurso, possui, na verdade, natureza jurídica de ação – ação de conhecimento, declaratória ou constitutiva, conforme a natureza da prestação jurisdicional pleiteada pelo impetrante [4]. Caracteriza-se não apenas pela possibilidade de propiciar o reexame de qualquer tipo de provimento, mas também pela celeridade e simplicidade em seu procedimento [5].

Pode-se dizer que a história do habeas corpus confunde-se com a história da liberdade, aqui compreendida num sentido de proteção do cidadão contra o abuso e o arbítrio do poder estatal [6]. Como assevera Jorge Figueiredo Dias [7]:

“Deste modo o direito processual penal torna-se em uma ordenação limitadora do poder do Estado em favor do indivíduo acusado, numa espécie de Magna Carta dos direitos e garantias individuais do cidadão. Pois o Estado, protegendo o indivíduo, protege-se a si próprio contra a hipertrofia do poder e os abusos no seu exercício.” (Figueiredo Dias, p.64-65)

E é justamente na Magna Carta que o instituto do Habeas Corpus nasce. Imposta pelos barões e lordes ingleses ao monarca João I como forma de limitação ao seu poder soberano, afirma, dentre outras garantias, que nenhum homem livre poderia ser preso nem perder seus bens senão em virtude de um julgamento por seus pares, de acordo com a Lei do Lugar (Law of the Land) [8]. Posteriormente, o Parlamento inglês aprovou, em 1679, o Habeas Corpus Act, considerado por muitos como tão relevante quanto a própria Magna Carta.

No direito brasileiro, teve sua gênese no artigo 179, inciso VIII, da Constituição do Império, sendo regulado por meio do Código de Processo Criminal de 1832 e, posteriormente, reconhecido pela Constituição Republicana, em seu artigo 72, parágrafo 22 [9]. Durante o período da ditadura militar, foi severamente restringido por meio dos Atos Institucionais 5 [10] e 6 [11].

Não obstante toda a evolução histórica do instituto e a transição de regimes autoritários para republicanos, em apenas três páginas, o ministro Marco Aurélio, relator do Habeas Corpus 108.715, buscou alterar toda a jurisprudência predominante perante os tribunais superiores, deixando de admitir a impetração de Habeas Corpus quando cabível o recurso ordinário previsto no artigo 102, inciso II, alínea a, da Constituição Federal, e nos artigos 30 a 32 da Lei 8.038/90.

O voto funda-se, basicamente, em dois argumentos: primeiro, alega-se o crescente número de impetrações que, ano a ano, batem às portas tanto do Supremo Tribunal Federal quanto do Superior Tribunal de Justiça – ou seja, “sobrecarga de processos”; segundo, na garantia do Habeas Corpus (artigo 5º, inciso LXVIII da Constituição Federal) não estaria abarcada a hipótese de Habeas Corpus substitutivo de recurso ordinário – que não possui, portanto, previsão legal -, o que implicaria sobreposição avessa ao direito, mitigando a envergadura maior do Habeas Corpus.

A decisão em comento trata o Habeas Corpus como mero empecilho à prestação jurisdicional. Relega o instituto à condição jurídica de mero recurso, e não de ação autônoma de impugnação – eficaz e célere procedimento de assecuração da liberdade. Ora, o Habeas Corpus não se sujeita ao tradicional regime jurídico da preclusão ou do trânsito em julgado, uma vez que não produz coisa julgada material. Conforme assinala Pontes de Miranda [12]:

“A concessão e a denegação do habeas corpus produzem coisa julgada formal. O que a denegação não produz é a vedação da repetição. O ne bis in idem nada tem a ver com a força normal da coisa julgada.”

A tentativa de restrição às hipóteses de cabimento do Habeas Corpus, principalmente decorrente de interpretações jurisprudenciais, não é nova em nosso ordenamento jurídico.

Com efeito, embora a restrição mais conhecida tenha ocorrido durante o período da ditadura militar, a partir da implementação dos Atos Institucionais 5 e 6, já mencionados, Andrei Koener salienta que, durante a transição do período imperial para o republicano, limitações foram criadas como forma de proteção da sociedade contra elementos indesejados:

“Adotando limitações ao Habeas Corpus criadas pela prática judicial da ordem imperial-escravista, esse discurso propugna a suspensão permanente dos direitos civis de uma parcela da população, cujo comportamento é considerado perigoso à ordem social pelas autoridades políticas, administrativas e judiciais. Os indivíduos da chamada classe perigosa são considerados infra-cidadãos, defendendo-se abertamente sua exclusão dos direitos constitucionais, particularmente, para o nosso caso, o Habeas Corpus”. (Andrei Koener, p. 235)

Agora, busca-se limitar a impetração de Habeas Corpus não por questões meramente formais ou processuais, absolutamente despidas de argumentos jurídicos válidos e relevantes, mas como uma forma utilitária de se sobrestar o aumento crescente do número de impetrações, em nítida afronta aos princípios mais caros de um Estado Democrático de Direito.

Como expressamente afirmou o ministro Marco Aurélio, um dos fatos que influenciou na decisão do Supremo Tribunal Federal é, sem sobra de dúvidas, o aumento crescente no número de impetrações de Habeas Corpus não apenas perante aquela corte, mas, também, perante o Superior Tribunal de Justiça.

A título de complementação, tem-se que, no ano de 2002, foram distribuídos 6.066 pedidos de Habeas Corpus perante o Superior Tribunal de Justiça; em 2011, o número foi de 36.125, ou seja, um aumento de quase 600%. Dentro destas mais de 30 mil impetrações em 2011, 7.854 são originárias da atuação de defensores públicos atuantes no estado de São Paulo.

Pode-se dizer, assim, que grande parte da razão para este aumento significativo deu-se pela implementação e fortalecimento das Defensorias Públicas, o que ocorreu de forma gradativa, em obediência ao comando do legislador constitucional de 1988 (artigo 134). Sem qualquer sombra de dúvida, isso demonstra que grande parte dos acusados em ações penais –oriundos das classes de baixa renda, muitos deles encarcerados– agora possui verdadeiro canal para que a garantia constitucional do acesso à justiça se dê em sua plenitude.

Não se pode, contudo, impedir ou restringir a impetração de Habeas Corpus, ainda que substitutivos a recursos ordinários, sem que, com isso, importante parcela da população seja tolhida em seu direito de defesa, compreendido não apenas na busca à liberdade física, mas, também, na condução de um processo penal justo e que obedeça aos ditames legais. Não é crível que a mais alta Corte de Justiça do país, guardião da Constituição Federal, possa, por meio de criação jurisprudencial, repristinar a vigência do Ato Institucional 6 tão somente com o objetivo de desafogar os tribunais pátrios de casos.

Não é à toa que o próprio ministro Marco Aurélio, ao proferir seu voto no Habeas Corpus 110.328 (acórdão ainda não publicado), acenou com possível mudança em seu entendimento, frente às manifestações da comunidade jurídica:

“Sensibiliza a comunidade jurídica e acadêmica a circunstância de o recurso ordinário seguir parâmetros instrumentais que implicam a demora na submissão ao órgão competente para julgá-lo. Isso acontece especialmente nos Tribunais de Justiça e Federais, onde se aponta que, a rigor, um recurso ordinário em habeas corpus tramita durante cerca de três a quatro meses até chegar ao colegiado, enquanto o cidadão permanece preso, cabendo notar que, revertido o quadro, a liberdade, ante a ordem natural das coisas, cuja força é inafastável, não lhe será devolvida. O Habeas Corpus, ao contrário, tem tramitação célere, em razão de previsão nos regimentos em geral. Daí evoluir para, presente a premissa segundo a qual a virtude está no meio-termo, adotar a óptica de admitir a impetração toda vez que a liberdade de ir e vir, e não somente questões ligadas ao processo-crime, à instrução deste, esteja em jogo na via direta, quer porquanto expedido mandado de prisão, quer porque já foi cumprido, encontrando-se o paciente sob custódia.

Este aceno, conquanto oportuno, não considera que o próprio Código de Processo Penal vigente, mesmo oriundo de um período autoritário, define, de forma ampla, o conceito de constrangimento ilegal sanável por meio do Habeas Corpus, que não se limita a liberdade de locomoção, mas também abarca as hipóteses de nulidades e de ausência de justa causa, nos termos de seu artigo 648.

De qualquer forma, espera-se que nossos tribunais superiores revejam esse posicionamento restritivo e voltem a permitir a impetração de Habeas Corpus, ainda que da decisão originária caiba recurso. Espera-se que seus ministros ajam com a mesma dignidade com que se manifestou o próprio ministro Marco Aurélio, ao admitir a revisão de seu posicionamento.

Espera-se, mais do que tudo, que o direito de defesa não seja considerado empecilho à correta e justa prestação jurisdicional, mas sim seu pressuposto. Com isso, restaurar-se-á a dignidade e o relevo do maior instrumento de assecuração da liberdade que um país dito democrático pode cultivar.

Restringir o manejo do Habeas Corpus em um país que tem a quarta maior população carcerária do mundo, com quase 600 mil presos, e que nutre uma cultura judiciária refratária à aplicação de penas alternativas à prisão (o famoso fetiche da pena restritiva de liberdade), é absolutamente incompreensível. Trata-se de um dos mais graves ataques ao já combalido e (censitariamente) seletivo direito de acesso à justiça, agora sob a forma de tentativa de esvaziamento dos escaninhos cartorários (ainda que virtuais).

A prevalecer tal entendimento, ainda que ocorra uma diminuição no número de feitos em trâmite nas cortes superiores –o que é, em si, discutível, pois fatalmente aumentará o número de recursos em habeas corpus interpostos–, será calado o brado de defesa de todos aqueles que são acusados em processos criminais, principalmente daqueles pertencentes aos seguimentos normalmente excluídos do acesso à justiça. Enfim, o que restará será o silêncio, verdadeira “paz de cemitério”.

[1] www.funpen.gov.br

[2] O que equivale praticamente ao número de habitantes em terras indígenas em nosso território nacional (www.funai.gov.br)

[3] HC 239.550/RJ, julgado, por unanimidade de votos, pela 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça.

[4] TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro.2. ed. São Paulo: RT, 2004, p. 421.

[5] GRINOVER, Ada Pellegrini. FERNANDES, Antônio Scarance, GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Recursos no processo penal: teoria geral dos recursos, recursos em espécie, ações de impugnação. 2a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 339.

[6] MENDES DE ALMEIDA, Joaquim Canuto. A “liberdade jurídica” no direito e no processo. Separata do livro Estudos jurídicos em homenagem a Vicente Ráo. São Paulo: Resenha Universitária, 1976, p. 12.

[7] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Processual Penal. Coimbra: Coimbra, 1974, p. 64.

[8] ADA PELLEGRINI GRINNOVER e outros. Recursos no processo penal, cit., p. 340

[9] “Dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência, ou coação, por ilegalidade, ou abuso de poder.”

[10] AI-5, Art. 10 – Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.

[11] AI-6, Art. 1º – Os dispositivos da Constituição de 24 de janeiro de 1967 adiante indicados, passam a vigorar com a seguinte redação:

Art. 114 – Compete ao Supremo Tribunal Federal:

II – julgar, em recurso ordinário:

a) os habeas corpus decididos, em única ou última instância, pelos Tribunais locais ou federais, quando denegatória a decisão, não podendo o recurso ser substituído por pedido orginário;”

[12] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. História e Prática do Habeas Corpus. Campinas: Bookseller, 1999, § 109.

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