Direito à privacidade

Real fundamento do sigilo bancário é tema pendente no STF

Autor

  • Tânia Nigri

    é bacharel em Direito pela UERJ. Especialista em Direito e Economia pela PUC/RJ. Mestre em Direito Econômico pela UGF.

3 de maio de 2014, 8h39

O instituto do sigilo bancário é um daqueles temas jurídicos que suscitam acalorados debates entre os doutrinadores que vêm se empenhando em precisar o real fundamento da obrigação de guardar segredo nas operações realizadas com os bancos, não havendo, entretanto, nenhuma unanimidade em relação a ele.

Sigilo, numa primeira acepção, significa “aquilo que permanece escondido da vista ou do conhecimento”. Pontes de Miranda se referia ao vocábulo para designar a liberdade de negação, a possibilidade de não emitir o pensamento ou a oposição à sua divulgação, de onde nasceria o direito ao sigilo de correspondência, à inviolabilidade de domicílio e à privacidade.

Parece ser inerente aos homens, a pretensão de manter alguns aspectos da vida, incluindo a econômica, à salvaguarda dos olhos de terceiros, o que, segundo alguns, se fundamentaria no Princípio da Exclusividade, cuja principal característica seria o "direito de estar só", evitando-se, em alguns momentos, a presença dos demais.

É inerente à própria condição humana a necessidade de reservar determinadas informações somente para si, não as compartilhando com ninguém, e isso não se constitui em sentimento exclusivo dos introvertidos ou dos tímidos — é a privacidade, sem dúvida, uma necessidade comum a todos os seres humanos.

O sigilo bancário, para muitos, seria a expressão desse direito, que na Constituição Brasileira foi erigido à condição de garantia fundamental. Há, entretanto, intenso debate acerca do verdadeiro fundamento desse dever de guardar segredo, o que decorreria, em grande parte, do fato de a Constituição Federal não se referir textualmente, em nenhum dos seus artigos, ao “sigilo bancário”[1], sendo a sua inserção no texto constitucional, fruto de atividade meramente interpretativa.

Da leitura de inúmeros acórdãos sobre o tema, proferidos pelo Supremo Tribunal Federal, constata-se uma clara inclinação pelo acolhimento da tese segundo a qual o sigilo bancário seria espécie do gênero “direito à privacidade”, sendo certo que nem todos os ministros que a adotaram, o fizeram claramente, demonstrando, entretanto, em suas razões de decidir[2], serem adeptos desse posicionamento.

O postulado constitucional da reserva de jurisdição é, também, um tema pendente de definição pelo STF, não havendo, ainda, entendimento consolidado acerca da imprescindibilidade de submeterem-se todas as medidas de quebra de sigilo bancário ao âmbito exclusivo do Poder Judiciário. Para muitos doutrinadores as informações fiscais e bancárias dos cidadãos seriam temas inseridos nessa reserva, mas a Corte Constitucional que, em última análise, decidirá definitivamente a matéria, ainda não julgou as cinco ações diretas de inconstitucionalidade[3] que tratam da questão, nem tampouco analisou o Recurso Extraordinário 601.314/SP, cuja repercussão geral foi reconhecida em processo cujo thema iudicandum refere-se ao fornecimento de informações bancárias dos contribuintes ao Fisco, através de mero procedimento administrativo, sem a prévia autorização judicial.[4]

Essa matéria foi analisada pelo plenário do STF, com efeitos exclusivamente inter partes, quando do julgamento da Ação Cautelar 33. A empresa GVA Indústria e Comércio, requerente da cautela, após ter sido comunicada pela instituição financeira acerca de procedimento administrativo fiscal, visando obter extratos e documentos relativos à sua movimentação bancária, impetrou Mandado de Segurança com o intuito de suspender o fornecimento dessas informações ou a utilização dos dados para efeitos de tributação, tendo sido denegada a ordem pelo juízo singular e pelo TRF da 4ª Região, o que ensejou a interposição de Recurso Extraordinário e, concomitantemente, a apresentação de medida cautelar, para atribuir-lhe efeito suspensivo.

A liminar foi deferida pelo ministro Marco Aurélio, relator do feito[5], tendo havido, contudo, a sua cassação, por ocasião do julgamento do mérito da cautelar, concluindo o Plenário, naquela ocasião, pela possibilidade de acesso direto do Fisco aos dados bancários da requerente.

Essa posição, entretanto, não foi mantida no julgamento do Recurso Extraordinário (RE 389.808) entre as mesmas partes, realizado 21 dias depois, oportunidade em que se acolheu tese diametralmente oposta, consagrando-se entendimento de que não seria lícito o acesso aos dados financeiros da recorrente, sem intervenção judicial prévia.

A retromencionada decisão, como dito anteriormente, por ter sido proferida em caso concreto, sem declaração de repercussão geral, não vincula, nem o próprio STF, nem as instâncias inferiores e, mesmo constituindo-se em precedente importante[6], ainda é fonte de grande insegurança, em razão do resultado do julgamento ter se dado por apertada maioria (5 x 4), menos de um mês após o mesmo STF ter adotado outro entendimento e, sobretudo, em razão da nova composição da Corte Constitucional[7] que, com a aposentadoria dos ministros Cezar Peluso, Ellen Grace, Sepúlveda Pertence e Carlos Ayres Britto e o ingresso dos ministros Luiz Fux, Teori Zavascki, Rosa Weber e Luiz Roberto Barroso, pode, novamente, mudar seu entendimento acerca do tema. 


[1] Tércio Sampaio Ferraz, em publicação científica publicada em 03/11/2011, nominada Sigilo Bancário dispõe: O sigilo bancário não é tema expresso na Constituição Federal. Sua discussão, na doutrina e na jurisprudência, vem por meio do entendimento, sobretudo do inc. XII, correlacionado com os incs. X e XIV do art. 5°, que tratam, respectivamente, da inviolabilidade do sigilo da correspondência, telegráfica, de dados e telefônica, do direito à privacidade e do segredo profissional. Particularmente importante é a discussão em torno da inviolabilidade do sigilo de dados, expressão que não existia nas Constituições anteriores. Não sendo expressa a menção a sigilo bancário na Constituição, seu estatuto constitucional depende de interpretação. (Disponível em http://www.terciosampaioferrazjr.com.br/?q=/publicacoes-cientificas/98)
[2]RE 389808 / PR – PARANÁ 
SIGILO DE DADOS – AFASTAMENTO. Conforme disposto no inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, a regra é a privacidade quanto à correspondência, às comunicações telegráficas, aos dados e às comunicações, ficando a exceção – a quebra do sigilo – submetida ao crivo de órgão equidistante – o Judiciário – e, mesmo assim, para efeito de investigação criminal ou instrução processual penal. SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – RECEITA FEDERAL. Conflita com a Carta da República norma legal atribuindo à Receita Federal – parte na relação jurídico-tributária – o afastamento do sigilo de dados relativos ao contribuinte.
MS 23851 / DF – DISTRITO FEDERAL
COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO – QUEBRA DE SIGILO – AUSÊNCIA DE INDICAÇÃO CONCRETA DE CAUSA PROVÁVEL – NULIDADE DA DELIBERAÇÃO PARLAMENTAR – MANDADO DE SEGURANÇA CONCEDIDO. A QUEBRA DE SIGILO NÃO PODE SER UTILIZADA COMO INSTRUMENTO DE DEVASSA INDISCRIMINADA, SOB PENA DE OFENSA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA INTIMIDADE.
[3] Segundo informa o sítio do STF (www.stf.jus.br) foi feita a apensação, para processo e julgamento conjuntos, das cinco ADIns relacionadas, em dois grupos distintos: a) ADI 2859, ADI 2386 e ADI 2397 apensadas à ADI 2390, e ADI 2406 apensada à ADI 2389 – Malgrado todo o conjunto de cinco ADIns diga respeito à oponibilidade do sigilo bancário ao fisco – que se sustenta, em todas elas, com base no art. 5, X, da Constituição Federal, afora outros, os dois grupos se distinguem pela diversidade dos respectivos objetos, pois adstrito o segundo grupo à legislação específica sobre os dados colhidos na arrecadação da CPMF.
[4] O Recurso Extraordinário 601.314 trata de apelo extraordinário interposto contra acórdão que entendeu pela constitucionalidade do art. 6º da Lei Complementar 105/2001, no que se refere ao fornecimento de informações sobre a movimentação bancária de contribuintes, pelas instituições financeiras, diretamente ao Fisco por meio de procedimento administrativo, sem a prévia autorização judicial.
[5] "AC 33-5/PR
RECURSO EXTRAORDINÁRIO – EFICÁCIA SUSPENSIVA – LIMINAR – SIGILO DE DADOS BANCÁRIOS – AFASTAMENTO – RISCO – ARTIGO 6º DA LEI COMPLEMENTAR Nº 105/2001 – ARTIGOS 4º E 5º DO DECRETO Nº 3.724/2001 – CONSTITUCIONALIDADE DECLARADA – AÇÃO CAUTELAR – LIMINAR DEFERIDA.
1. Esta ação cautelar visa a imprimir efeito suspensivo a recurso extraordinário interposto e distribuído – Recurso Extraordinário nº 389.808. Chega a esta Corte o tema relativo à quebra do sigilo bancário pelo Fisco, a merecer reflexão maior ante o inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, no que revela como regra a inviolabilidade do sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, contemplando exceção condicionada a ordem judicial.
Há de se preservar campo propício a possível decisão favorável à requerente e, portanto, ao pronunciamento do Supremo Tribunal Federal como guarda da Carta da República. Quebrado o sigilo por iniciativa do Fisco, parte na relação obrigacional tributária, e conhecido e provido o extraordinário, ter-se-á a ineficácia do provimento jurisdicional.
Por isso, surge quadro de excepcionalidade maior a direcionar ao empréstimo de terceiro efeito recursal. Aos efeitos de empecer a coisa julgada (José Carlos Barbosa Moreira) e devolutivo, tudo recomenda que se adite o da suspensão de eficácia do acórdão proferido, procedendo-se de forma ativa, ou seja, para afastar a quebra do sigilo, no que desprovida de ordem judicial.
2. Defiro a liminar pleiteada, obstaculizando, até a decisão final do extraordinário, o fornecimento de informações bancárias da requerente à Receita.
3. Dê-se ciência desta decisão à União, citando-a para o conhecimento da ação proposta. Caso já tenha havido o fornecimento das informações bancárias, observe-se o sigilo, congelando-se a obtenção dos dados, que não poderão ser acionados para os efeitos pretendidos.
4. Encaminhe-se, por fac-símile, o inteiro teor desta decisão à União e à Receita Federal, sem prejuízo da pessoalidade imposta por lei. Imprima-se urgência na degravação e revisão desta decisão.
5. Junte-se cópia deste ato ao processo em que interposto o Recurso Extraordinário nº 389.808/PR.
6. Publique-se.
Brasília, 5 de julho de 2003.
Ministro MARCO AURÉLIO
Relator"
[6] Em decisão monocrática proferida pela Ministra Cármen Lúcia no Recurso Extraordinário 387.604 foi desprovido o recurso fazendário, albergando-se a tese de que o sigilo bancário, como dimensão dos direitos à privacidade (artigo 5º inciso X da Constituição) e ao sigilo de dados (art. 5º, inciso XII, da Constituição) seria um direito fundamental, sob reserva legal, podendo ser quebrado no caso previsto no artigo 5º, inciso XII, ‘in fine’, ou quando colidir com outro constante da Constituição Federal. A ministra aludiu ao julgamento realizado três meses antes no STF que proclamava ser sempre imprescindível que o órgão que realiza o juízo de concordância entre os princípios, revista-se de imparcialidade, examinando o conflito como mediador neutro, estando alheio aos interesses em jogo. Acrescentou, ainda, que acaso se aceitasse a possibilidade de requisição extrajudicial de informações e documentos sigilosos, o direito à privacidade deveria prevalecer enquanto não houvesse outro interesse público, de índole constitucional, que não a mera arrecadação tributária.
[7] Essa insegurança jurídica pode ser observada pelas decisões divergentes entre a 3º e a 4º Turma do Tribunal Regional Federal da 3º Região, onde ambas as turmas, alegando se basearem em precedentes do STF, julgaram em sentido oposto – uma autorizando o acesso direto do Fisco aos dados bancários e outra afirmando ser esse procedimento é inconstitucional.

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