Conflito com a jurisprudência

A necessária revisão da Súmula 39 do Carf

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27 de junho de 2014, 14h46

O presente artigo foi elaborado a partir de ‘provocação’ lançada pelo amigo e colega de profissão Marcelino Carvalho, advogado de primeira linha, sempre atento ao mundo jurídico, a quem agradeço a oportunidade de lançar as “reflexões” que seguem.

Aos sete dias do mês de dezembro de 1972, em sessão plenária do Supremo Tribunal Federal, o saudoso ministro Aliomar Baleeiro, então presidente da corte e a propósito de Questão de Ordem suscitada sobre a necessidade de revisão de súmula, assim se pronunciou:

O Regimento diz que se pode rever uma súmula no curso de um feito e, se necessário, haverá sobrestamento da decisão. Não digo que o processo seja perfeito, nem discuto se a Súmula é inepta, como parece. Basta que o eminente Ministro Relator o diga para que acredito até prova em contrário. Apenas o precedente não é bom. A Súmula veio a uso do Supremo Tribunal Federal, por iniciativa do eminente Ministro Victor Nunes, porque, no passado, a versatilidade dos nossos julgamentos era tão grande que eu tenho em minhas coleções de julgados alguns acórdãos divergentes da mesma Turma sobre o mesmo dispositivo no mesmo dia.

O eminente Ministro Luiz Gallotti, que é aqui o veterano, sabe que, em matéria de máquina de costura e de imposto de consumo, era uma tristeza a variedade de julgados, e em matéria de isenção do Banco do Brasil, outra tristeza. E outros e outros casos.

Depois que aqui estou, já vi, em diversos temas, dezenas de acórdãos divergentes sobre o mesmo assunto, verdadeiras variações de agulha magnética em raios de cento e oitenta graus.

A súmula, portanto, veio ao Supremo Tribunal para atender à necessidade de desempenhar a sua missão, pacificando a própria jurisprudência e a interpretação dos demais Tribunais.

Creio que é temerário, data vênia, um processo pelo qual, de plano, sem discussão nem meditação, modifiquemos a súmula. (RE 72.509-PR)

A transcrição acima serve para ilustrar a importância que deve ser dada a edição de uma Súmula e, mais ainda, à sua revogação, seja pelos órgãos do Poder Judiciário, seja pelos órgãos julgadores da Administração.

Na esfera do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), a matéria concernente à proposição, votação e aprovação de súmulas que correspondam a "decisões reiteradas e uniformes do CARF" e de "observância obrigatória pelos membros" daquele tribunal administrativo está disciplinada nos artigos 72 a 75 do seu Regimento Interno.

Servimo-nos do quanto vai acima para então introduzir o objeto de nosso estudo: a incompatibilidade da Súmula 39/Carf e sua necessária revisão e revogação em face da jurisprudência firmada pelo Superior Tribunal de Justiça em sede de repetitivo, combinada esta com a NOTA/PGFN/CRJ/Nº 1549/2012, de 03/12/2012, conforme a seguir restará demonstrado.

É o enunciado da Súmula Carf 39:

Os valores recebidos pelos técnicos residentes no Brasil a serviço da ONU e suas Agências Especializadas, com vínculo contratual, não são isentos do imposto sobre a Renda da Pessoa Física. SÚMULAS VINCULANTES. Portaria MF 383 de 14/7/2010

Ocorre que o entendimento acima consolidado pela Súmula 39/Carf também foi objeto de exame pelo STJ, que, em sede de repetitivo e por sua Primeira Seção expressamente declarou e concluiu "que são isentos do Imposto de Renda os rendimentos do trabalho recebidos por técnicos a serviço das Nações Unidas, contratados no Brasil para atuar como consultores no âmbito do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD." (REsp 1.306.393 – DJe 7/11/2012).

Ato contínuo e em três de dezembro de 2012, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, por meio da NOTA/PGFN/CRJ/Nº 1549/2012, sugeriu o "Acréscimo de item na lista de julgados submetidos à sistemática dos artigos 543-B e 543-C do CPC contrários à Fazenda Nacional", requerendo a atuação e aplicação efetiva pela Receita Federal do Brasil (RFB)[1] da decisão a que chegou aquele STJ em repetitivo e para a seguinte matéria:

3. Estabeleceu o Superior Tribunal de Justiça que estão isentos do Imposto de Renda os rendimentos recebidos por técnicos a serviço da Organização das Nações Unidas contratados no Brasil para atuarem no Programa Nacional das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Estão abarcados por esta isenção tanto os funcionários do PNUD quanto os que a ela prestam serviço na condição de peritos de assistência técnica, categorias equiparadas em razão da aprovação, via decreto legislativo, do Acordo Básico de Assistência Técnica firmado entre o Brasil, a ONU e suas agências. Por fim, a condição de perito, segundo se extrai da decisão no referido recurso especial, deriva de um contrato temporário com período pré-fixado ou por meio de empreitada a ser realizada (apresentação ou execução de projeto e/ou consultoria).

Não obstante a nota emitida pela PGFN, somada à decisão do STJ em sede de repetitivo e, mais ainda, ao quanto vai no artigo 62-A do Regimento Interno do Carf[2], temos observado resistência ao reconhecimento daquela isenção ao Imposto de Renda, conforme, aliás, comprova a decisão do tribunal administrativo consubstanciada no Acórdão 2202­002.619.

E tal recusa ao reconhecimento daquela isenção está fundamentada no argumento de que o enunciado da Súmula 39/Carf somente "poderá ser revisto ou cancelado por proposta do Presidente do CARF, do Procurador-Geral da Fazenda Nacional, do Secretário da Receita Federal do Brasil, de Presidente de Confederação representativa de categoria econômica de nível nacional (…) ou de Presidente das centrais sindicais".[3]

Prima facie, notamos um embate de forças entre dispositivos regimentais: aquela que determina a observação ao quando decidido em sede de repetitivo pelo STJ (artigo 62-A) contra a que obriga os conselheiros à aplicação de Súmulas do Carf (artigo 72), esta ainda combinada àquela que orienta a modalidade de revisão e/ou cancelamento de súmula (artigo 74).

No entanto, por uma questão de segurança jurídica e de lógica para com o entendimento do próprio Carf — lançada no sentido de que as decisões judiciais se sobrepõem às decisões administrativas[4] —, filiamo-nos à jurisprudência “rebelde” e divergente daquele órgão julgador, assim vazada:

Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Física – IRPF Exercício: 2006 PROCESSO ADMINISTRATIVO FISCAL. MATÉRIA DECIDIDA PELO STJ NA SISTEMÁTICA DO ART. 543C DO CPC. O art. 62A do RICARF obriga a utilização da regra do REsp nº 1.306.393/DF, julgado em 24/10/2012, decidido na sistemática do art. 543C do Código de Processo Civil. RENDIMENTOS AUFERIDOS POR TÉCNICOS A SERVIÇO DAS NAÇÕES UNIDAS, CONTRATADOS NO BRASIL PARA ATUAR COMO CONSULTORES NO ÂMBITO DO PNUD/ONU. ISENÇÃO. Consoante entendimento consignado no Recurso Especial n.º 1.306.393/DF, eleito como representativo da controvérsia e julgado sob o rito do art. 543C do CPC, o STJ ratificou o entendimento firmado pela 1º Seção, no REsp nº 1.159.379/DF (Relator Ministro Teori Zavascki), no sentido de que são isentos do imposto de renda os rendimentos do trabalho recebidos por técnicos a serviço das Nações Unidas, contratados no Brasil para atuar como consultores no âmbito do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PNUD. No referido julgamento, entendeu o relator que os "peritos" a que se refere o Acordo Básico de Assistência Técnica com a Organização das Nações Unidas, suas Agências Especializadas e a Agência Internacional de Energia Atômica, promulgado pelo Decreto 59.308/66, estão ao abrigo da norma isentiva do imposto de renda. Conforme decidido pela Primeira Seção, o Acordo Básico de Assistência Técnica atribuiu os benefícios fiscais decorrentes da Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações Unidas, promulgada pelo Decreto 27.784/50, não só aos funcionários da ONU em sentido estrito, mas também aos que a ela prestam serviços na condição de "peritos de assistência técnica", no que se refere a essas atividades específicas. Caso em que a hipótese dos autos (consultor independente) se subsume à situação tratada no recurso repetitivo. Recurso Voluntário Provido (Acórdão 202-002.799)

O conflito aqui tratado pode parecer de só menos importância para alguns, em razão de seu alcance, mas o precedente, a inércia e a não observação à segurança jurídica por aqueles que podem e devem reverter tal situação é o que nos causa espécie, pois estamos tratando de tributação, coisa que se por um viés é onerosa ao contribuinte, de outra banda é fruto de rendas e “caixa” ao governo. Assim, entendemos que se faz necessário a imediata proposição de revisão e cancelamento daquela Súmula 39/Carf (administrativa), pois que a mesma está em flagrante desarmonia com o quanto decidido pelo STJ em sede de repetitivo (judicial).

Concluímos com citação a Pascal[5], feita por BECKER (2004:85) em seu Carnaval Tributário[6], na linha de que "não é nas coisas extraordinárias e bizarras que se encontra o melhor, seja qual for sua natureza. (…) As maneiras tensas e contorcidas de escrever saturam o espírito de tola presunção, pela extravagante elevação de espírito e pela grandiloquência vã e ridícula".


[1] http://www.receita.fazenda.gov.br/Legislacao/DecisoesVinculantesSTFSTJ/NOTAN_1549_2012.htm

[2] Art. 62-A. As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, na sistemática prevista pelos artigos 543-B e 543-C da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, Código de Processo Civil, deverão ser reproduzidas pelos conselheiros no julgamento dos recursos no âmbito do CARF.

[3] art. 74 do RICarf

[4] Súmula CARF nº 1

[5] "L’Àrt de Persuader", ‘in’ Opuscules et Lettres de Pascal, coligidos por Louis Lafuma, Paris, Aubier, 1955, p. 151.

[6] 2ª edição. São Paulo : LEJUS.

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