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O caso da citação de trabalhadores a serviço de agentes diplomáticos

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

26 de junho de 2014, 8h00

Spacca
Em 1913 o Ministro da Justiça provou o Consultor-Geral da República a respeito da possibilidade de citação, por parte das autoridades judiciárias brasileiras, em relação a trabalhadores que prestassem serviços para embaixadores e demais agentes diplomáticos. A imunidade de jurisdição, então soberana, repelia as citações, pela justiça local, de embaixadores e agentes diplomáticos.

No entanto, como bem ponderou o Consultor-Geral da República, a aludida imunidade não alcançava os servidores das embaixadas, aplicando-se, tão somente, e do ponto de vista absolutamente subjetivo, à pessoa do embaixador e de seus agentes na embaixada. A imunidade não se estendia a quem prestasse serviços, para o embaixador, ou para a legação que chefiava. Segue o parecer.

Gabinete do Consultor-Geral da República – Rio de Janeiro, 20 de junho de 1913.
Exmo. Sr. Ministro de Estado da Justiça e Negócios Interiores – Tenho a honra de submeter à consideração de V.Exa. o parecer requisitado por Aviso n. 383, de 3 de março do corrente ano, sobre as leis brasileiras que regem o caso de citação das pessoas que se acham a serviço de embaixadores, ministros e demais agentes diplomáticos.

Como V.Exa. sabe, desde alguns anos, se distinguem duas correntes de opiniões: uma mantendo as imunidades de que gozaram sempre os agentes diplomáticos, e outra procurando restringi-las, limitando-as aos casos em que elas são rigorosamente necessárias, visto como tem cessado, em grande parte, as razões que as justificavam.

Das imunidades diplomáticas resulta uma restrição do exercício da soberania interna, pela exclusão, da ação das leis e dos tribunais, de determinadas pessoas e, visto como isto só se explica por graves razões, não tem parecido aos tratadistas que deva perdurar uma exceção que perdeu sua razão de ser.

Efetivamente, as imunidades de que gozavam os agentes diplomáticos cobriam, não só o pessoal oficial, como o séquito desses altos funcionários, porque eles tinham sobre a sua comitiva o exercício de uma jurisdição graciosa, disciplinar e penal. Mas, isso que foi justificado até certo ponto por escritores notáveis do século XVII (…) não pode deixar de ser considerado uma monstruosidade, à luz do direito publico moderno, sem o menor apoio nas próprias práticas internacionais. Hoje isso desapareceu completamente, e, se é certo que um agente diplomático necessita, para exercer suas funções, a dignidade, a liberdade e a segurança que elas exigem, tornando-as independentes do poder público do Estado em que residem, não se compreende, como diz Laurent, que essa independência encontre embaraço no fato de um serviçal do agente diplomático, que delinque, ser entregue aos tribunais do país cujas leis foram violadas, ou, como diz Bonfils, que, por maiores que sejam as aptidões de um cozinheiro e a perícia de um cocheiro, sua prisão possa diminuir a liberdade de um embaixador.

Alguns escritores da primeira metade do século passado, como Klüber (…) e Heffter (…), ainda reconhecem ao pessoal em serviço do agente diplomático o direito de extraterritorialidade, conseguintemente a odiosa exceção de retirá-lo à jurisdição dos tribunais do país em que reside.

A aplicação do princípio da extraterritorialidade a tais pessoas já não merece apoio e sanção, quer nas práticas internacionais, que já o oferecem exemplos em contrário, quer na opinião dos escritores. Embora o Instituto de Direito Internacional, em sua sessão de Cambridge, tenha votado em 1895 que aquele princípio se estende a todas as pessoas pertencentes ao séquito não oficial, salvo se pertencem ao país em que reside o agente, a reação se opera sob a autoridade de Merignac (…) e Olivart (…), limitando-o consideravelmente, ou repelindo-o em absoluto, na opinião de Clovis Bevilaqua (Direito Publico Internacional, I, § 105); Guesalaga (…); Rodrigues Sarachaga (…); Nys (…) ; Bonfils (…); Fiore (…), e Gestoso (…), que só o consideram admissível como ato de mera cortesia.

Na legislação pátria se refletiu naturalmente esse movimento na opinião dos tratadistas. Assim o assento mais antigo da matéria é a Ordenação do Reino, Livro III, tit. IV, que, no § 1º, exclui da jurisdição local e considera sob a imunidade do embaixador todos os que em sua companhia vierem para servir, não sendo naturais de Portugal.

Paula Baptista (…); Ramalho (…); Pereira e Souza (…); Teixeira de Freitas (…); Ribas (…); Paula Pessoa (…), e Moraes Carvalho (…), todos fundados naquela Ordenação, excluem apenas o ministro público, mas nenhum se refere às pessoas ao serviço do agente diplomático, o que bem exprime que o velho texto do direito português caiu em desuso.

Isso se confirma, se atendermos que a Consolidação das Leis referentes à Justiça Federal, aprovada pelo Decreto n. 3.081, de 5 de novembro de 1898, no art. 53, estatui que “não podem ser citados os ministros diplomáticos durante o tempo de sua missão, guardando-se o que se achar estabelecido a esse respeito nos tratados”, e é para notar que o fundamento desse dispositivo, como se vê em nota, é ainda a mesma Ordenação.

Convém lembrar que no projeto de Código do Processo Civil e Comercial para o Distrito Federal, mandado elaborar pelo ilustre Sr. Dr. Esmeraldino Bandeira, quando Ministro da Justiça, aprovado pelo Governo por Decreto n. 8.332, de 3 de novembro de 1910, e pendente, em parte, de aprovação do Congresso Nacional, a matéria foi cuidadosamente tratada, ficando estabelecida, no art. 38, §§ 5º e 6º, a verdadeira doutrina – “que não podiam ser citados os ministros e agentes diplomáticos estrangeiros, durante o tempo da sua missão, observando-se o que estivesse estabelecido nos tratados, e guardada a reciprocidade”. Como se vê, as pessoas do séquito não oficial deixaram de ser consideradas à sombra da imunidade diplomática, o que em boa razão nada justifica, além de uma tradição que cada vez mais vai desaparecendo, bastando citar o que vemos em uma obra especial para o caso que se estuda – Le Guide Diplomatique, de Charles de Martens, que no § 32, firma de modo bem claro, que a imunidade, por sua natureza, protege todos aqueles que fazem parte da legação, como os secretários e os adidos, mas que o mesmo não sucede com as pessoas do palácio do ministro, como os empregados e domésticos.

Por esta breve exposição, V.Exa. verá que o art. 59 da parte III do citado Decreto n. 3.084, de 5 de novembro de 1898, é o texto de lei em vigor, repetindo da Ordenação o que ela tem de justo, razoável e compatível com a compreensão moderna do direito, e silenciando o que caiu em desuso e não resistiu à critica dos jurisconsultos.

Em tais condições, o que rege o caso das citações das pessoas que se acham a serviço das embaixadas, dos ministros de outras categorias e mais agentes diplomáticos é o direito comum, aplicado indistintamente a nacionais e estrangeiros, sem limites, exceções e privilégios de qualquer espécie, salvo disposição especial consignada em tratado.

Este é o meu parecer, cujas lacunas V.Exa. suprirá em sua alta sabedoria.

Apresento a V.Exa. os protestos da mais alta estima e consideração. – Dr. M. A. de S. Sá Vianna. 

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    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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