Violência galopante

Legado da Copa para a segurança pública é discutível

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24 de junho de 2014, 13h39

Nunca se viu tantos policiais e militares em ruas, hotéis, aeroportos e portos de algumas cidades brasileiras. Em Belo Horizonte, por exemplo, só o efetivo da PM aumentou 75% em relação aos dias normais. O número de 14 mil policiais à disposição, em dias de jogos, foi reforçado com o deslocamento temporário de profissionais que trabalham em setores administrativos e cidades do interior.

Além da PM, guardas municipais, Polícia Civil, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Forças Armadas também remanejaram grande parte de seus efetivos para garantir o chamado “padrão Fifa” de segurança, não apenas na capital mineira, como nas demais 11 cidades-sedes da Copa do Mundo. Cerca de 200 policiais estrangeiros, de 30 países, foram convidados para auxiliar no monitoramento de torcedores. Estima-se que 170 mil servidores estão atuando na segurança do evento.

O dito legado para população, após o apito final do último jogo da competição, é uma incógnita também para a segurança pública. Resta saber se os investimentos milionários em instalações, equipamentos, veículos, treinamento e diárias aos policiais empenhados na segurança da competição terão algum efeito na redução dos índices de violência e criminalidade.

Nos últimos sete anos, desde que o Brasil foi anunciado como sede da Copa do Mundo, cerca de 380 mil pessoas foram assassinadas no país. A prévia do “Mapa da Violência 2014: os jovens do Brasil”, divulgado há poucos dias, elaborado com base em dados de 2012, do Ministério da Saúde, mostrou que o número total de homicídios, em termos absolutos, aumentou 18%, passando de 47.707, em 2007, para 56.337, em 2012.

A taxa de homicídios por 100 mil habitantes, que leva em conta o crescimento da população, subiu de 25,2 (2007) para 29,0 (2012), um acréscimo de 13,1%. As estatísticas apontam o recorde de assassinatos em 2012, quando 154 pessoas, em média, foram mortas por dia. Em termos relativos e absolutos, foi o índice mais alto de homicídios desde 1980.

Em relação a 2011, a taxa nacional de homicídios cresceu 7%. Só em cinco estados (ES, SP, PE, PB e AL) foram registradas quedas nas taxas, em relação ao ano anterior. Apesar da redução, Alagoas continua líder absoluta no ranking da violência, com a assustadora taxa de 64,6 assassinatos por 100 mil habitantes, mais que o dobro do índice nacional.

Nossas taxas chegam a 100 vezes maiores que a de diversos países, como Japão (0,3 assassinatos, a cada 100 mil habitantes), Suíça e Alemanha (0,6), como mostra o “Estudo Global sobre Homicídios 2013”, elaborado pela ONU.

O saldo total de vítimas na última década é ainda mais alarmante: quase 556 mil homicídios, de 2002 a 2012, numa média anual superior a 55 mil assassinatos.

Dentre as 12 unidades da Federação cujas capitais estão sediando os jogos do Mundial, oito registraram taxas de homicídios bem acima da média nacional. No MT, RN, PE, DF, AM, BA e CE oscilaram entre 34,3 e 44,6, por 100 mil habitantes.

Os números de vítimas da violência letal, comparáveis aos mortos de guerras e conflitos de longa duração, retratam o quadro trágico de insegurança e impunidade. A incidência de outros crimes graves, como tráfico de drogas, também aumenta

A ineficiência de nosso modelo de investigação criminal, burocrático e cartorial, é agravada pela escassez de policiais e condições precárias de trabalho de investigadores e peritos criminais das polícias civis, na maioria dos estados.

De acordo com o estudo “Ministério Público: um retrato 2013”, baseado em dados de 2012, dos 468 mil inquéritos para apurar crimes contra a vida, 25 mil foram arquivados e 35 mil resultaram em denúncias apresentada à Justiça. No Brasil, 5% a 10% dos casos de homicídios são solucionados, enquanto nos Estados Unidos, França e Inglaterra a elucidação desses crimes varia de 65 a 90%.

O ministro da Justiça e outras autoridades responsáveis pela segurança do evento têm dito que o principal legado da Copa será a integração e atuação conjunta das forças policiais e militares. Contudo, a experiência mostra que a efetiva integração tem ocorrido apenas durante os chamados grandes eventos.

Foi assim durante os Jogos Pan Americanos, em 2007, a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável (Rio+20), em 2012, e durante a visita do Papa, no ano passado, quando o Exército reforçou o patrulhamento das ruas, contribuindo com as forças policiais para garantir a segurança.

Os índices de criminalidade violenta continuaram elevados, após o encerramento daqueles eventos. Na Copa do Mundo e, certamente, nas Olimpíadas não será muito diferente.

Um estudo recente divulgado pelo sindicato de analistas da Receita Federal do Brasil revelou a falta de controle nas aduanas, nas fronteiras secas, também durante a Copa do Mundo.

Com o deslocamento temporário de grande parte do efetivo da PF e PRF para as cidades-sedes dos jogos, por mais de um mês, outras rotas do crime, no interior do país, ficaram em situação similar às regiões de fronteiras, abertas ao contrabando de armas e tráfico de drogas, que abastecem o mercado criminoso de todo o País.

Nesta altura do campeonato, não se questiona a obrigação assumida pelo governo brasileiro com a Fifa, de garantir a segurança de atletas, comissões técnicas e dirigentes das 32 seleções, bem como de chefes de estado, convidados especiais e de milhares de torcedores brasileiros e estrangeiros, durante o maior evento esportivo do mundo.

Desde 2007, em acordo assinado com a entidade, o governo brasileiro garantiu a segurança do evento. O artigo 23 da Lei Geral da Copa, de 2012, prevê que “a União assumirá os efeitos da responsabilidade civil perante a Fifa por todo e qualquer dano resultante de incidente ou acidente de segurança relacionado ao evento, exceto se a organizadora da Copa houver concorrido para a ocorrência do fato.

O acordo assinado com a Fifa previu que o “perímetro de segurança” — que inclui o interior e entorno dos estádios e demais “instalações oficiais”, como hotéis onde se hospedaram as delegações, centros de treinamento e de mídia — ficaria a cargo de 20 mil agentes privados de segurança, a serem contratados pela federação.

Poucos dias antes da abertura da Copa, a PF assumiu a falta de informação sobre à contratação dos agentes privados de segurança. A invasão de torcedores chilenos no Maracanã, no jogo entre Espanha e Chile, além de constrangedora para os organizadores da Copa, expôs as falhas de segurança.

O jogo de empurra-empurra, entre Fifa e governo brasileiro, quanta à responsabilidade pelo incidente, que por sorte não teve consequências mais sérias, reforçou a ideia de desorganização.

Na prática, policiais militares, rodoviários e federais assumiram a responsabilidade pela segurança e escolta das 32 seleções, em deslocamentos, hotéis e centros de treinamento. A patética cena de policiais federais escalados para “caçarem” supostos espiões de treinos da seleção do México, em Santos, conforme noticiado pela imprensa, foi um capítulo à parte.

O tal legado da Copa para a segurança pública, na maioria dos estados, não conseguiu equipar os órgãos com um recurso básico para a atividade policial, em qualquer lugar do mundo: a comunicação. Em Curitiba, o efetivo da PM foi reforçado com policiais do interior e quase dobrou durante o período da Copa, mas metade dos policiais que estão trabalhando nas ruas não recebeu radiocomunicadores portáteis.

A PM do Paraná, como de resto a maioria dos outros órgãos policiais no Brasil, ainda usa o sistema analógico de comunicação, facilmente interceptável por outros equipamentos. Os governos estaduais atribuem as dificuldades na implantação de redes de radiocomunicação à falta de repasses federais.

O atraso tecnológico do sistema de comunicação policial, em caso de emergência, como um atentado terrorista, nas imediações de um estádio, poderia comprometer a capacidade de reação das forças de segurança.

Nestas circunstâncias, o acionamento de policiais de folga, sem rádios, ficaria à mercê dos serviços de telefonia móvel, certamente congestionados em todas as cidades-sede da Copa, principalmente em eventuais situações emergenciais, nos locais com grande concentração de usuários.

Na PF, a rede nacional de radiocomunicação digital, que era para estar em plena operação, há dois anos, nunca funcionou como prevista, apesar de gastos superiores a R$ 300 milhões. Com alcance restrito de rádios, a comunicação de policiais federais durante a Copa (e provavelmente também nas Olimpíadas) continua dependendo do uso de telefones pessoais.

De acordo com dados oficiais, desde 2011, foram investidos na PF mais de R$ 400 milhões, dos quais R$ 90 milhões estritamente em equipamentos e capacitação para os grandes eventos. Foram compradas viaturas blindadas, embarcações, armamento menos letal, coletes balísticos e equipamentos para os grupos de operações especiais, para os grupos de bombas e explosivos, dentre outros.

Toda essa parafernália terá pouca serventia no trabalho cotidiano dos policiais federais, após a Copa. Como nas demais polícias, o déficit do quadro de pessoal, de policiais e servidores administrativos, praticamente não foi alterado pelo legado da Copa.

Enquanto o total de gastos com diárias durante a Copa, ultrapassará o equivalente a mais seis meses do que foi previsto para investigações em andamento, nas unidades da PF de Minas funcionárias contratadas como telefonistas foram dispensadas, em virtude de falta de verbas orçamentárias.

Informações disponíveis no Portal da Transparência indicam que menos de 25% do total de R$ 1,9 bilhões, anunciados pelo governo federal, como investimentos no plano de segurança da Copa, foram efetivamente contratados.

Ainda que os dados estejam desatualizados, sabe-se que grande parte dos recursos contabilizados para ações de segurança foi destinada às Forças Armadas, cuja papel é de defesa nacional. Após a Copa, os militares voltarão aos quartéis e os efeitos imediatos dos investimentos na redução da criminalidade urbana serão desprezíveis.

Os chamados “Centros Integrados de Comando e Controle”, incluídos nas ações do plano do governo federal, foram inaugurados com alarde, como se fossem a panaceia para segurança de grandes eventos.

Com equipamentos de informação, vídeo monitoramento de última geração e meios de comunicação que permitem a interação em tempo real com coordenadores e agentes de segurança em campo, os tais centros tendem a se tornar um legado de sucata, após a Copa, caso sua operação não seja adaptada à realidade e sanada a crônica falta de efetivo policial, na maioria das capitais onde foram instalados.

Se os prognósticos sobre a escalada da violência se confirmarem, entre o encerramento da Copa do Mundo e abertura dos Jogos Olímpicos Rio 2016, o próximo grande evento previsto para ocorrer no Brasil, mais de 100 mil pessoas serão assassinadas no país.

Caso a tendência das estatísticas não seja revertida, será mais uma evidência que o legado dos grandes eventos para a população, em termos de segurança pública, não terá passado de mera retórica e marketing político.

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