Raiz do problema

Rumamos para o ocaso da Justiça brasileira

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22 de junho de 2014, 10h53

Assiste-se nos dias que correm a intensificação do reclamo de juízes de todas as instâncias para a criação de instrumentos que, em última análise, não passam de expedientes de contenção da litigiosidade que assola o país. Ninguém se atreve a atacar as causas que subliminarmente insinuam o esgotamento tanto do modelo adotado quanto da capacidade daqueles que encarnam esse modelo em dar cabo do encargo assumido. Muitos trabalham incessantemente para se tornarem juízes e ministros, mesmo sabendo de antemão o volume ingente e cada vez maior de processos que afluem para cada instância ou tribunal. Guindados ao cargo, rapidamente começam a verbalizar a crítica, invariavelmente fundada em argumentos do tipo ignoratio elenchi e ad terrorem, slippery slope, na tentativa de persuadir a sociedade e seus representantes legais, os parlamentares, da necessidade de se construírem freios para conter a demanda pelos serviços jurisdicionais, por não terem condições de receber, apreciar e julgar tantos processos.

Não posso concordar com essa crítica. Pelo menos não do modo como tem sido feita.

O processo é o modo civilizado de resolver conflitos de interesses. A justiça de mão própria é vedada — ainda bem, senão seria um caos, uma verdadeira guerra de todos contra todos. Se a litigiosidade observada no país aumentou e segue aumentando, então, o que se precisa é identificar as causas desse incremento e não impor restrições à forma de resolver tais litígios, as quais não passam de puro expediente de sonegação da justiça, como soem ser as propostas dos membros das instâncias superiores.

A procura do Judiciário pelo cidadão brasileiro é um sinal de civilidade daquele que acha que algum direito seu foi violado e busca sua realização pela forma prevista entre os povos civilizados: o processo. Então, de duas, uma: ou a percepção do brasileiro que procura o Judiciário está equivocada na base, e o que ele compreende como sendo um direito violado não passa de uma ilusão; ou de fato há um crescente desrespeito pelas leis e pelo direito alheio. Pessoalmente, penso que ambas essas causas são verdadeiras e o que experimentamos nos dias atuais é a concorrência delas.

O problema é que o modo como o direito tem sido realizado pelo Poder Judiciário deixa muito a desejar. A comunidade jurídica tem mostrado sua insatisfação em diversas oportunidades. Entre elas, a mais notável dos últimos tempos são alguns dispositivos que constam do projeto de novo Código de Processo Civil, cujo substitutivo foi recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados.

Se é verdade que ninguém se escusa de cumprir a lei alegando não conhecê-la, então, pode afirmar-se sem risco de erro que a toda lei (= norma de conduta) possui um comando vinculante. Vale lembrar que o direito é um instrumento de conservação e, embora não regule todas as situações da vida, regula aquelas que são consideradas relevantes para o controle da paz e da coesão social.

Exatamente porque a lei encerra um comando vinculante e tem por destinatário aquelas pessoas cuja conduta é por ela regulada, por isso que é geral e abstrata, exprime-se em vernáculo. O texto legal é o modo como o direito é anunciado para todos. E ninguém se escusa de cumprir a lei alegando desconhecê-la porque ela não está expressa em uma língua estranha ao seu destinatário.

No entanto, os juízes, os tribunais e principalmente o STJ e o STF têm contribuído para transformar o Direito numa ciência esotérica das mais ocultas, como se os juízes fossem os únicos iniciados capazes de funcionar como oráculos dos conteúdos legais, porquanto não raro proferem decisões contraditórias para casos semelhantes deixando a sociedade perplexa e abrindo a possibilidade para escolher, conforme conveniências nunca compreendidas nem reveladas, qual precedente aplicar em algum outro caso.

Especificamente sobre o STF, já que recentemente o ministro Luís Roberto Barroso protestou contra a possibilidade de inviabilização da mais alta corte do país dado o volume de processos que para lá afluem anualmente, muito além da capacidade humana de seus membros, tomemos alguns exemplos.

O artigo 5º da Constituição estatui o rol dos direitos e garantias individuais. A primeira constatação sobre esses direitos e garantias, e que está na própria Constituição, advém da leitura do parágrafo 1º do artigo 5º, segundo o qual “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

Qual o significado dessa expressão? Reposta: todos os direitos e garantias fundamentais do indivíduo devem ser aplicados independentemente de qualquer regulamentação. E mais, não pode haver regulamentação que lhes diminua o alcance, salvo quando expressamente prevista tal possiblidade no próprio comando constitucional instituidor do direito e garantia fundamental. Essa história de núcleo normativo não passa de uma doutrina que visa falsear a abrangência do direito, para restringir-lhe a extensão cometida pelo texto constitucional. Numa palavra, permitir a extirpação, a espoliação do conteúdo normativo em sua plenitude para deixar ao indivíduo apenas um resquício que resolveu-se designar como parte nuclear do direito ou garantia fundamental. Pura bobagem. Num sistema de normas outorgadas em leis escritas, o direito é o que consta do texto da lei. Se a sociedade desejasse que fosse apenas um resquício, na composição política que deu origem à norma, teria esta sido expressa de modo a que o direito se identificasse apenas como esse resquício.

Dentro do nosso sistema, o tribunal incumbido do enforcement das normas constitucionais é o STF. Logo, é razoável concluir que seja ele quem deva dar a última palavra a respeito da aplicação e do respeito aos direitos e garantias fundamentais. Aqueles que estão expressamente outorgados em normas positivas devem ter aplicação imediata.

No entanto, não raro o STF se esquiva de dar à sociedade uma resposta viva sobre essas garantias. Haja vista, por exemplo, a aplicação imediata dos incisos II e LV do artigo 5º, principalmente em matéria de Direito Civil. A jurisprudência do STF é no sentido de que, para apreciar se houve violação a esses direitos e garantias fundamentais, teria de imiscuir-se no exame infraconstitucional, o que escapa de sua competência.

Penso que esse entendimento é equivocado e fundado em argumentos falaciosos. Se os direitos e garantias fundamentais foram preceituados como cláusula pétrea na Constituição Federal e se o STF foi concebido como corte de guarda da Constituição, então, a conclusão a que se chega é que a vontade inerente à Constituição, ou do legislador constituinte originário, é que o STF seja o tribunal a dar a última palavra a respeito de como certas leis devem ser aplicadas, portanto, interpretadas, para que sua aplicação esteja conforme os direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição.

Nessa alheta, a cláusula do devido processo legal só será respeitada se o processo não violar a regras legais que o disciplinam. A interpretação final de como essas regras devem ser aplicadas para que a promessa dos direitos e garantias fundamentais feita na Constituição não seja em vão, mas seja cumprida, só pode ser aquela que o STF entender mais conforme ao que se deve entender como um devido processo legal. Ou seja, certas normas infraconstitucionais exigem que o STF sobre elas se pronuncie para orientar as demais cortes do país sobre como devem ser aplicadas para que a garantia constitucional prometida a todos os cidadãos na Constituição Federal como imediatamente aplicável seja atendida.

O mesmo se pode dizer a respeito do inciso II do artigo 5º da Constituição. Invariavelmente o STF se nega a apreciar a arguição de sua vulneração sob o argumento de que, para decidi-la, teria de proceder a exame de normas infraconstitucionais. Indaga-se: como, então, dar a essa norma constitucional a eficácia garantidora de um direito fundamental do indivíduo pretendida pela Constituição? Resposta: impossível. Se a Constituição diz que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei, somente a lei, e lei aqui deve ser entendida como lei infraconstitucional, do contrário o preceito constitucional fica sem qualquer sentido, pode obrigar alguém a fazer ou deixar de fazer alguma coisa. E se alguém é obrigado, seja pela Administração Pública, seja por um órgão jurisdicional, a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa sem que exista lei amparado tal comando, então, é forçoso reconhecer haver violação frontal ao direito e garantia constitucional inscrito no inciso II do artigo 5º da CF. Em outras palavras, perscrutar o ordenamento infraconstitucional para saber se há lei que obrigue alguém a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa é condição necessária (sine qua non) para decidir se houve ou não violação ao inciso II do artigo 5º da Constituição e, conseguintemente, assegurar sua eficácia e aplicabilidade imediata.

E nesse sentido o STF não ajuda em muitas decisões. Antes, constitui causa de insegurança jurídica. Haja vista, v.g., o ARE 758.565/SP, processo digital que pode ser consultado por qualquer interessado. O caso é bem simples. No TJ-SP, da forma mais impudente que pode haver, uma apelação foi julgada por uma Câmara adicional, que ampliava a capacidade do tribunal, sem lei que a instituísse. A turma julgadora era formada exclusivamente por juízes de primeiro grau que cumulavam suas atuações em segundo grau com suas atividades em primeiro grau, no que já se pode vislumbrar a primeira violação da Constituição (art. 37, XVI). Para piorar a situação, os juízes que compuseram a turma julgadora foram designados, e não convocados, pelo presidente do TJ-SP, para atuar no período de 15 de junho de 2005 a 14 de junho de 2006, posteriormente prorrogado até 30 de abril de 2007. Tudo isso consta de uma certidão expedida pelo próprio TJ-SP. A apelação, no entanto, foi julgada pela primeira vez em 8 de agosto de 2008, sob condições suspeitíssimas, pois o relator havia deferido adiamento para sustentação oral. Em seguida, na data de 7 de outubro de 2008, a mesma turma julgadora anulou o julgamento de 8 de agosto de 2008. Em 14 de agosto de 2009, a mesma turma julgadora proferiu novo julgamento da apelação, cujo resultado já era conhecido: idêntico, sem tirar uma vírgula do acórdão anteriormente anulado. Ou seja, uma farsa. A parte interpôs recurso extraordinário pedindo a anulação do acórdão porque foi proferido com violação do juiz natural, já que: 1) os juízes que participaram do julgamento não haviam sido convocados para atuar em segundo grau conforme a lei estadual que disciplina a convocação de juízes substitutos; 2) os juízes que compuseram a turma julgadora não substituíam nenhum magistrado de segundo grau, mas apenas ampliavam a capacidade do tribunal de origem sem previsão legal, por mero provimento do presidente daquele tribunal; 3) ainda que se considerasse válido o provimento do presidente do tribunal de origem e a designação dos juízes que participaram do julgamento da apelação, então, o ato seria válido em sua inteireza, de modo que a investidura (ou o mandato) para aqueles juízes atuarem em segundo grau expirou em 30 de abril de 2007, como atesta a certidão do próprio TJ-SP, o que faz com que o julgamento devesse ser considerado inexistente ou nulo, por ter sido feito após a expiração da investidura daqueles magistrados para atuarem em segundo grau. No bojo da petição de interposição do recurso extraordinário, a parte requereu a assistência judiciária gratuita, por ser massa falida e não ter condições de arcar com as custas. O tribunal de origem inadmitiu o recurso extraordinário sob o fundamento de deserção. Foi interposto o ARE 758.565/SP. No STF, o relator, ministro Gilmar Mendes, contrariando toda a jurisprudência daquela mesma corte — muitos julgados por ele mesmo proferidos em hipóteses semelhantes —, negou provimento ao agravo, ao qual aplicou uma jurisprudência do STF que se firmou para hipótese completamente diferente. Foi interposto agravo interno e a segunda turma do STF manteve a decisão.

E o que há de perplexo nesse caso? Resposta: o fato de o STF, de modo fugidio, ter-se desviado do rumo que sói preconizar de pleno acesso à Justiça. No agravo interno, a parte arguiu que em ambas as turmas daquela corte firmou-se o entendimento de que o pedido de gratuidade da Justiça pode ser feito na petição de interposição. E mais, havendo tal pedido, não é o caso de deserção. Ilustrou o recurso com uma fartura de julgados de ambas as turmas do STF. No entanto, ignorando todos os argumentos e a jurisprudência em que se fundou o recurso, ignorando até mesmo tudo que consta do processo, o STF, para fundamentar o desprovimento do recurso, utilizou uma jurisprudência que refere à hipótese em que não há pedido de gratuidade da Justiça na petição de interposição, mas, isto sim, a parte recorrente, mesmo tendo efetuado o recolhimento das custas recursais tempestivamente, deixa de comprová-lo com a petição de interposição e isso acarreta o decreto de deserção. Como se vê, são hipóteses totalmente distintas, mas que o STF fingiu serem semelhantes para não prover o agravo e, conseguintemente, não conhecer do recurso extraordinário. E por quê? Resposta: só a imaginação de cada um pode responder. Porém, deixar livre a imaginação quando faltam elementos razoáveis e racionais para uma explicação adequada pode ser muito perigoso, de modo que prefiro não expressar o que acossa minha imaginação a esse respeito. Mas sei que centenas de famílias cujos arrimos habilitaram seus créditos trabalhistas na falência da recorrente deixarão de receber o que lhes é devido por direito, e uma grande operadora de telefonia, grupo multinacional que em primeiro grau foi vencido e também condenado por litigância de má-fé por ter falsificado um documento empregado na sua defesa, saiu vitoriosa, sem pagar um tostão.

Exemplos assim mostram, pelo menos para mim, que antes de protestarem contra o volume de processos que afluem para o STF, os ministros deveriam preocupar-se com a qualidade dos julgados e julgar espécies semelhantes de modo semelhante; não se negarem a dar às leis infraconstitucionais a interpretação conforme a Constituição para que os direitos e garantias fundamentais tenham realmente a eficácia e a aplicabilidade imediata prometida pela própria Constituição. Malgrado eu seja contrário às súmulas vinculantes, não posso deixar de reconhecer que são um instrumento hoje em funcionamento e que pode ser de utilidade para esse fim, de modo que a última palavra sobre como interpretar e aplicar regras de processo civil, tais como a assistência judiciária gratuita entre outras, seja do STF, vinculando os demais órgãos jurisdicionais. Se a Constituição ou o legislador constitucional originário não quisessem que o STF desse a última palavra a respeito da eficácia e da aplicabilidade imediata de todos os direitos e garantias fundamentais, não os teria incluído na Constituição, muito menos como cláusula pétrea. E se o STF é o guardião da Constituição, não pode abdicar ou renunciar guardar também, e principalmente, a eficácia plena das cláusulas pétreas representadas nos direitos e garantias fundamentais.

Já disse antes e torno a repetir aqui. O dia em que os órgãos jurisdicionais passarem a fundamentar suas decisões adequadamente, sem ignorar os argumentos deduzidos pela parte, mas enfrentá-los com honestidade intelectual; sem fingir que não existe algo que a parte expressamente arguiu ou que existe algo que ela nunca arguiu; e indicar as razões por que não aplica os dispositivos de lei invocados pela parte, bem como explicitar quais os dispositivos de lei aplica na solução da lide e os motivos por que são estes os dispositivos aplicados, então sobrará muito pouco espaço para recurso especial ou extraordinário. As decisões assim proferidas serão em si mesmas limitadoras desses recursos. Mas também sobrará muito pouco espaço para decisões de conveniências não reveladas, arranjos, decisões políticas, e qualquer outra deturpação degenerativa que transforma o Direito de instrumento social de controle da sociedade em instrumento de dominação da sociedade por uma determinada casta ou classe de pessoas.

A conclusão é que o problema não está no volume de processos. Está na educação do povo, que acha ser possuidor apenas de direitos e não de obrigações correlatas, que não entende que todos têm os mesmos direitos em tese. E está também no modo como os casos levados ao Judiciário são decididos, quase sempre sem explicitar qual a lei está sendo aplicada, quais os motivos por que essa lei é aplicada, e quais as razões por que a lei invocada pela parte vencida não são aplicáveis ao caso julgado. O Judiciário brasileiro tornou-se exímio expert em dar respostas mutiladas, quando não contraditórias às reivindicações da sociedade quando provocado para resolver os conflitos que emergem entre as pessoas. Por isso, criar filtros de acesso ao STJ ou ao STF viola a garantia imutável de acesso à Justiça prevista no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição. Frustra o cumprimento da promessa de eficácia e aplicabilidade imediata dos direitos e garantias fundamentais e contribuirá para catalisar o processo de fermentação da insatisfação geral. Sob essa perspectiva, talvez tenha até a serventia de acelerar uma revolução ainda maior do que aquela preconizada pelo ministro Luís Roberto Barroso. Refiro-me a uma revolução de verdade, de deposição de todo o sistema, que já dá sinais de exaurimento total, para em seu lugar erigir outro, sob novos paradigmas. Quais, é um mistério.

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