Senso Incomum

Como decidem os juízes? Os dramas das filhas influenciam as suas decisões?

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19 de junho de 2014, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Streck [Spacca]Situando a problemática
Dias atrás escrevi uma coluna (Juiz com fome ou que almoçou mal) criticando aqueles que sustentam (ou simplesmente acreditam) que até a refeição do juiz é fundamentação-motivação para decisões judiciais. O direito vem sendo invadido perigosamente com pesquisas comportamentalistas que querem provar como os juízes decidem. Pegam um conjunto de decisões e depois buscam saber quais seriam as razões que teriam levado os juízes a decidir deste ou daquele modo. Assim, por exemplo, alguém vem e “constata” que juízes israelenses com fome são mais rígidos que aqueles que acabaram de se alimentar. Genial, não? E, digo eu: E dai? Quem pode provar que eles são mais rígidos porque não comeram (ainda)? E, se fosse verdade? A pesquisa só provaria a irresponsabilidade do sistema que admite que a fome seja condição da liberdade de acusados. Que coisa, não?

Acho estranhas, para dizer o menos, essas pesquisas. Como estranha me parece a mais recente que apareceu nos Estados Unidos, publicada no dia 16 de junho último no New York Times. A matéria diz, basicamente, que “Juízes que possuem filhas decidem com mais frequência a favor dos direitos das mulheres” (tradução livre), escrita pelo jornalista Adam Liptak. O texto gira em torno fundamentalmente de dois principais pontos: do voto do Chief Justice William H. Rehnquist em 2003 no caso Nevada Department of Human Resources v. Hibbs e de uma pesquisa, liderada pela cientista política Maya Sen (University of Rochester) e por Adam Clynn (Harvard), que, basicamente, objetiva estudar a influência das experiências pessoais nas decisões tomadas pelos juízes. O jornal mostra que o debate acadêmico sobre como os juízes decidem, como regra, girava em torno de dois fatores: direito e ideologia. A pesquisa apresentada pela professora Sen, sob o acompanhamento do professor Clynn, passa a trazer um novo elemento (sic): as experiências pessoais. Em entrevista ao jornal, a cientista política afirma que “coisas do tipo ter filhas pode fundamentalmente mudar o modo como as pessoas enxergam o mundo e, isso, por sua vez, afeta como eles decidem os casos”.

A base da pesquisa é, claro, estatística. Por certo, a pesquisadora não entende nada de teoria do direito. E não deve ter formação jurídica. Por isso inventa a pólvora no direito. Não é a primeira, por óbvio. Mas, vamos lá. Segundo a notícia, foram analisados os votos dos juízes, relacionando o modo como decidiram (se em direção ou não a teses feministas) com a constituição de sua família (se possuem uma filha ou um único filho). Tudo isso com um objetivo final, anunciado pela professora Sem: a “sacada” dela é “o reconhecimento de que juízes não são máquinas”. E que “eles são humanos, como eu e você. E, assim como eu e você, eles possuem experiências pessoais que afetam como eles enxergam o mundo. Todas essas coisas poderiam afetar a visão de mundo dos juízes”. Que descoberta, não? Estou emocionado. “—Juízes não são máquinas”. Impressionante. Como ninguém tinha pensando nisso antes? Chaves — o personagem mexicano — diria para mim: Que buro (com um “r” só), que buro esse Lenio! “—Ele não sabia disso”.

E qual, segundo a pesquisa, seria a relação disso com o voto do Chief Justice Rehnquist no caso Nevada Department of Human Resources v. Hibbs?, que tratava da possibilidade dos trabalhadores processar o estado por violar uma lei federal que permitia folga para cuidar de emergências familiares? Justice Rehnquist era conhecido por seus votos a favor dos direitos dos estados. Contudo, nesse caso, ele proferiu posicionamento diferenciado, com a intenção de abordar o estereótipo criado em torno do papel da mulher, isto é, de que a ela cabe cuidar dos membros da família. A questão envolvendo a pesquisa acima mencionada e o voto do Justice Rehnquist é o fato de que há rumores (que, segundo o articulista, não passam de especulação) de que ele teria tomado essa decisão porque, antes da decisão, uma de suas filhas teria se tornado “mãe divorciada à procura de emprego”.

Hum, hum. Digo de novo: e daí? Se a pesquisa é verdadeira, então os americanos precisam urgentemente estocar alimentos. Sim, porque se as decisões sobre os direitos em disputa em determinadas causas (feministas, de gênero etc ou outras) dependem da circunstancia de que o(a) juiz(a) seja influenciado por suas filhas (e seus dramas)…é demais. Devem ser punidos, se me entendem a ironia. É o mesmo tipo de pesquisa que fala dos juízes “esfomeados” de Israel. Devem receber ticket refeição ou serem sindicados, porque, em uma democracia, se você decide a vida dos outros de acordo com seu apetite, suas filhas ou sua ideologia, instaura-se o caos.

Note-se que, nesse caso, estamos a assistir um distanciamento, ou até mesmo um deslocamento, dos fatores públicos que incidem sobre o julgamento para afirmar aspectos privados, que dizem respeito ao campo da família ou das relações pessoais do juiz. É importante perceber, ainda, que uma pesquisa empírica desse naipe sofre com problemas de análise — subjetiva — dos resultados. Vale dizer: o investigador indica como resultado aquilo que quer provar. Algo que já era alvo de críticas por parte da sociologia compreensiva ou, mais contemporaneamente, daqueles que perfilam as teses da teoria dos sistemas.

Enfim, esse tipo de comportamentalismo ofende, na raiz, os fatores mais elementares daquilo que Otfried Höffe chamou de justiça política, algo que nos foi legado pelos gregos. E ofende às pesquisas em teoria do direito e teoria da decisão. Voltando às tragédias, vemos a produção mais evidente da ruptura entre a cultura mais antiga da vingança privada e do destino e a instauração do cultivo político da justiça. Vale dizer: não a justiça do ofendido, mas, sim, a justiça da polis; realizada por tribunais civis e que se distanciam temporalmente da ira provocada pelo “calor dos acontecimentos”. Como nos fala Sloterdijk, existe aí uma operação teológica e psicossemântica, na qual as deusas da vingança (as Eríneas relatadas por Ésquilo, que querem o fígado de Orestes por este ter matado a própria mãe e seu amante Egisto, ambos assassinos de seu pai Agamenon) — antigamente extremamente cruéis — são agora rebatizadas como Eumênides, aquelas que são bem-intencionadas e belamente sensatas. E arremata o filósofo alemão afirmando que “a tendência para a transformação dos nomes é inconfundível: onde havia a compulsão à vingança deve passar a existir de maneira compensatória uma justiça prudente”.[1]

Mutatis mutandis, troque-se vingança por fatores particulares e privados dos juízes (a circunstância das venturas ou desventuras dos filhos, etc) e vejamos no que dá… A perda da dimensão pública dos julgamentos e a sua substituição pela “dimensão sensibilizada” do juiz com relação as circunstâncias que o circundam em virtude de sua condição de vida. Quer dizer que, para termos uma justiça melhor, teríamos que ter juízes tranquilos, sem problemas com os filhos, bem alimentados, etc,? Mas, então, para que serve o direito, repergunto pela enésima vez? Para o que serve a teoria do direito? Somos reféns da ciência política (ou de pesquisas behavioristas), que quer nos contar, com estatísticas, como decidem os juízes?

De algum modo, estamos fazendo o caminho de volta com relação àquele percorrido pelos gregos. Eles inventaram a autonomia do direito (refiro-me às Eumênidas). E, passados mais de dois mil anos, colocamos a autonomia na cabeça dos juízes (e em seu comportamentalismo).

Os gregos eram imbecis! E, quem acredita em critérios para decidir, também!
Não preciso repetir os argumentos que aqui elenquei na coluna já referida sobre “a fome dos juízes”. Se as pesquisas forem verdadeiras, podemos dizer que fracassamos. Rotundamente. E os gregos, que inventaram a autonomia do direito fazendo com que parasse a vingança para que o direito fosse aplicado, são, também imbecis. Como devem ser imbecis todos os que, como este escriba, acreditam que as decisões não devem ser por ideologias ou subjetividades (aqui o estagiário levanta a placa dizendo: não esqueça, antes de falar sobre o que o professor acabou de dizer, ler a coluna anterior sobre a fome dos juízes e no mínimo o livro Verdade e Consenso, onde ele mostra que os juízes não são alfaces).

Pronto. Escrevi esta coluna antes que apareça alguém dizendo que inventou a pólvora, querendo aplicar aqui em Pindorama as pesquisas “comportamentalistas” desse tipo por aqui (refiro-me a pesquisa objeto desta coluna). Para quem acredita nesse behaviorismo: quem sabe façamos uma pesquisa sobre a preferência clubística dos juízes e com isso demonstrar as razões pelas quais os juízes decidem sem fundamentar… Sentenças proferidas nas segundas-feiras depois que seu time perde seriam contra os réus criminais… Claro que, neste caso, teríamos que investigar também os estagiários, se me entendem… Ou quem sabe fazer uma pesquisa sobre a praga dos embargos declaratórios…e chegar a brilhante conclusão de que os juízes que dão mais azo aos embargos assim agem porque quando pequenos, não tinham bicicletas ou os seus pais eram rígidos e não “fundamentavam” as suas “decisões” sobre as tarefas caseiras.

Parece que o problema não é só dos terrabrasiliensis. Os Estados Unidos também estão contaminados. Claro, alguém dirá, lá o sistema do common law e tem a lenda do judge made in law. É. Pode ser. Mas é de lá que surgiu a teoria mais consistente e radical acerca da necessidade de que as decisões judiciais tenham coerência e integridade. Sim, foi Dworkin quem se insurgiu contra o discricionarismos dos juízes. E foi ele quem disse que “não me importa o que os juízes pensam…”; importa é que é eles tem responsabilidade política. Por que será?

Numa palavra, ainda.
Tudo isso é muito velho. Descobrir que os juízes não são neutros e que eles não são máquinas é estroinar com a inteligência dos juristas mais atilados. E colocar mais de um século de filosofia no lixo. Ora, Ihering já sabia de tudo isso. Philipe Heck também. E o que dizer dos juízes da “Escola do Direito Livre”? Eles sabiam que o juiz não é máquina, que “é humano como nós” e outros blá blá blás.[2] A questão é que o caldo engrossa nos séculos XX e XXI. Se “a vontade” supera “a razão”, a questão é: como controlar essa vontade? Portanto, o ponto não é explicar a vontade incontrolada e, sim, como evitar que a vontade (e suas decorrências, como ideologias, gostos, desejos, etc) se sobressaia sobre a lei. E que o problema com as filhas ou com o apetite não substitua o legislador e nem distorça os fatos.

É um arrematado equívoco ficar pensando que basta-justificar-bem-que-uma-decisão-será-democrática. É como acreditar em ingenuidades como “livre convencimento motivado” ou “primeiro decido e, depois, fundamento”. Ora, isso é tão-somente deslocar o problema para um discurso de segundo nível. Sempre posso demonstrar, depois que a decisão está feita, as razões pelas quais ela foi dada. E posso chegar também a várias conclusões, como dizer que foi o vento sul que, naquele ano, fez com que 89,4,3% das denúncias fossem recebidas na Comarca de Canoinhas do Sul… Embora possa demonstrar isso em face de que, primeiro, foram apenas 12 processos e a maioria era de roubos com confissão; e, segundo, porque o juiz havia se separado da esposa… Ou ainda… bem, paro por aqui.

Tudo isso é behaviorismo. Discursos apofânticos. Dúcteis. Não enfrentam o problema de frente, que é o da responsabilidade política dos juízes. O papel de uma teoria da direito (filosoficamente sustentada) é justamente o de demonstrar as condições de possibilidade (da interpretação) do direito, de forma a separar decisões autênticas e inautênticas, pouco importando a justificação posterior. O busílis é como se chega lá e não como se justifica isso depois.

Na verdade, nem sequer devemos incentivar pesquisas desse tipo, com conclusões “geniais” como “juiz não é máquina”, “não é Deus”, etc. Vá que, psicanaliticamente, a leitura seja feita ao contrário e o juiz diga: “—Ah, se dizem isso é porque de fato sou um Deus… ou uma máquina…ou ainda um Deus-ex-machina”. E teremos que começar tudo de novo… Sair do século XIX e… Bom, o resto já sabemos. Ou não. E lá virão pesquisas tipo check list, pensando que decisão é o mesmo que escolha…


[1] Sloterdijk, Peter. Ira e Tempo. São Paulo: Estação Liberdade, 2013, p. 71.

[2] Registro – com orgulho – que há um conjunto de juristas em terrae brasilis que conhecem muito bem essas coisas… E registro também – com o mesmo orgulho – o que tenho referido em congressos e mesas-redondas no Brasil e no exterior: nossa pós-graduação avançou sobremodo nos últimos anos e faz pesquisas de ponta. As pesquisas sobre teoria do direito e teoria da Constituição – para falar apenas de duas áreas – não ficam devendo nada aos grandes centros. Isso se deve ao avanço no sistema Capes. Homenageio, aqui, os coordenadores de área do direito quem vem desde Luis Edson Facchin, Fernando Scaff, Jacinto Coutinho, Gilberto Bercovici, chegando ao atual, Martonio Barreto Lima.

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