Passado a Limpo

Caso de 1913 fixou competência para legislar sobre desapropriações

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

19 de junho de 2014, 11h26

Spacca
Em 1913, a Consultoria-Geral da República fixou entendimento relativo à competência para legislar sobre desapropriação. O parecer então confeccionado assinala uma das linhas conceituais mais importantes na fixação do federalismo brasileiro. O ministro da Fazenda questionava quem detinha competência para legislar sobre desapropriação: se a União ou os estados. Perguntava também se os estados poderiam desapropriar bens da União.

O Consultor-Geral da República opinou que desapropriação era matéria de competência federal. Isso porque desapropriação era matéria de direito civil; e a Constituição de 1891 dispunha ser de competência legislativa federal a feitura de leis em matéria de direito civil. Porém, ressaltou o Consultor-Geral, os Estados detinham capacidade para legislar sobre desapropriação em seus aspectos adjetivos, isto é, processuais. Até 1939, os códigos de processo civil eram matéria de competência estadual.

Além do que, aos Estados se garantia competência para legislarem sobre desapropriação nas fechadas hipóteses de utilidade pública, estadual ou municipal. Aos Estados era proibido, porém, a desapropriação de imóveis da União que se indicasse indispensáveis, a exemplo de áreas de fronteira ou de segurança nacional. Segue o parecer.

Gabinete do Consultor-Geral da República – Rio de Janeiro, 5 de maio de 1913.

Exmo. Sr. Ministro de Estado dos Negócios da Fazenda – Satisfazendo a requisição de V.Exa., constante do Aviso n. 161, sobre o caso de desapropriação decretadas pelo Governo do Estado do Espírito Santo, tenho a honra de apresentar o seguinte parecer.

Dois pontos foram agitados nas informações prestadas a V.Exa. pela Secretaria de Estado: 1º Saber se os Estados podem legislar sobre desapropriações. 2º Saber se os bens pertencentes à União podem ser desapropriados pelos Estados.

Quanto ao 1º:

Ex-vi do art. 34, n. 23, da Constituição da República, compete ao Congresso Federal legislar sobre Direito Civil, Comercial e Criminal da República e Processual da Justiça Federal. A matéria de desapropriação é essencialmente de Direito Civil, e assim os Estados não podem legislar a respeito. Mas, considerando que tal matéria tem, além de uma parte de Direito substantivo, outra parte que é de Direito adjetivo, e como ex-vi do art. 65, n. 2, da Constituição, compete aos Estados todo e qualquer poder ou direito que lhes não for negado por cláusula expressa ou implicitamente contida nas cláusulas expressas da mesma Constituição, segue-se que a parte adjetiva da lei de desapropriação é da alçada dos Estados, visto como escapa à da União. Nestas ideias está Carlos de Carvalho, Nova Consolid. das Leis Civis, art. 841, § 2º, quando diz que “aos Estados só compete legislar sobre os casos e regular o processo de desapropriação por utilidade pública estadual ou municipal”. Esses casos, porém, não podem exceder as forças do texto constitucional, art. 72, § 17, e devem ser determinados sempre por necessidade ou por utilidade pública.

O mesmo ocorria no antigo regime, sob a Constituição do Império. Esta, no art. 179, § 22, “garantiu o direito de propriedade em toda a sua plenitude”; declarou que, “se o bem público, legalmente verificado, exigisse o uso e emprego da propriedade do cidadão, seria ele previamente indenizado do valor dela”, e estabeleceu que “a lei marcaria os casos em que teria lugar esta única exceção e daria as regras para determinar a indenização”. Essa lei foi a de 9 de setembro de 1826, que, nos arts. 1º, 2º, e 8º, fixou taxativamente os casos de desapropriação, sempre dentro do dispositivo constitucional.

Ainda em relação à competência para legislar sobre o assunto, o pensamento do legislador da República não variou do legislador do Império. É assim que, pelo art. 10, n. III, do Ato Adicional, “competia às Assembleias nas Províncias legislar sobre os casos e a forma por que podia ter lugar a desapropriação por utilidade municipal ou provincial”.

Quanto ao 2º:

A generalidade do preceito constitucional parece não excluir a possibilidade do Estado desapropriar bens da União. Ele firma a regra garantidora do direito de propriedade e dá em seguida a única exceção a essa garantia que se justifica por si mesma. Compreende-se que a necessidade ou a utilidade da comunhão reclamando bens do domínio privado, sejam eles adquiridos mediante prévia indenização, embora o proprietário careça dos mesmos, pois ao seu interesse, por maior que seja, se antepõe o da sociedade.

A situação da União, entretanto, não é a mesma do indivíduo, bastando lembrar que só ela é a competente para determinar, nos termos do art. 64, da Constituição, qual a porção de território que é indispensável para “a defesa das fronteiras, fortificações, construções militares e estradas de ferro federais”, sem falar em qualquer outra obra que o serviço reclame e para qual se faça mister utilizar terrenos que por qualquer título possua nos Estados. Enquanto a União não fixasse a extensão da zona de que necessitava, impossível seria praticar a desapropriação, e como esta podia recair em imóveis indispensáveis à União, não se compreende que o Estado proceda como procedeu o do Espírito Santo.

Para evitar todas as questões que podem surgir em casos tais, entre o poder público federal e o poder público estadual, o verdadeiro modo de proceder seria o do Governo Estadual diretamente obter do Governo da União os bens de que necessita, adquirindo-os na forma que a lei prescreve. Não é permitido admitir que a União deixasse de atender ao que o Estado reclama como medida de ordem administrativa.

Penso que o Governo da União deverá colocar-se sob este ponto de vista, convidando o do Estado do Espírito Santo a que com ela se entenda em relação aos bens de que necessita e preço respectivo.

V.Exa. em sua alta sabedoria resolverá, parecendo que, no estado atual da nossa legislação, a solução do caso que faz objeto da consulta não pode ser outra.

Apresento a V.Exa. os protestos da mais alta estima e consideração. – Dr. M. A. De. S. Sá Vianna.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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