Contas à Vista

Súmula Vinculante não é solução para a Guerra Fiscal

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

17 de junho de 2014, 8h00

Spacca
Os sinais que vêm do Supremo Tribunal Federal estão causando grande ansiedade no meio empresarial por conta das ameaças da edição da Súmula Vinculante 69, que pretende acabar com a guerra fiscal do ICMS em nosso país.

No dia 31 de maio foi noticiado que o STF aguardaria pelo menos mais dois meses para sua edição, que correspondem ao recesso forense alargado pela Copa, e que o Congresso Nacional aproveitaria este intervalo para legislar a respeito — o que, convenhamos, não é muito crível, em face do mesmo tipo de recesso e das eleições que estão na porta. A legislação que se aguarda proveniente do Congresso (parece uma afirmação redundante, mas o Poder Judiciário tem legislado tanto que agora é necessário afirmar de onde deve provir a legislação…) é o Projeto de Lei Complementar 130/14, de autoria da Senadora Lucia Vania (PSDB/GO), cujo relator é o senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES) que elimina a necessidade de unanimidade do Confaz para decidir sobre benefícios fiscais.

No dia 3 de junho circulou a informação de que o Presidente da Corte, ministro Joaquim Barbosa, havia enviado para a Secretaria de Documentação do STF pedido de redação da proposta de Súmula Vinculante 69 para submeter ao Plenário — o que pode até ocorrer no prazo de 60 dias acima mencionado. Já existe Parecer do Ministério Público federal a favor da edição da Súmula. Ou seja, as engrenagens do STF estão se movendo e o Congresso encontra-se com outros focos de atenção, em especial a reeleição de grande parte de seus membros. A expectativa é que a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprecie a matéria na sessão do dia 8 de julho. Aguardemos.

Quais os pontos centrais que devem ser analisados nesse imbróglio que envolve todos os Estados da Federação e os Poderes da República?

Um deles se encontra na estrutura do ICMS devido nas operações interestaduais. Uma parte desse imposto fica para o estado de origem e outra para o estado de destino da mercadoria. Isso possibilita que os estados de onde se origina a mercadoria concedam incentivos fiscais à margem da deliberação unânime do Confaz, requisito necessário em razão da vetusta Lei Complementar 24/75.

Aí surge a primeira questão: Como o estado de origem renuncia ao recebimento do ICMS que lhe é devido, isto é, o faz com referência a suas próprias receitas, e não a de outros, onde estaria o problema? Ele reside na disputa geográfica pela atração de mais investimentos. Não se trata de um problema eminentemente tributário, mas financeiro e político. O contribuinte continuará a pagar o tributo embutido no preço das mercadorias, mas os estados se digladiam pela atração dos investimentos privados, o que gera distúrbios no “status quo” federativo. Na “efetiva operação em si” não há nem mesmo perda de receita tributária, pois, repete-se, o que o estado de origem renuncia faz parte de sua receita própria. É uma questão de Federalismo Fiscal Cooperativo, que, aliás, já está capenga há muito tempo.

Seria melhor que o ICMS interestadual fosse integralmente cobrado no estado de destino da mercadoria? Certamente que sim, obedecido certo prazo de transição, pois economicamente pretende-se que o ICMS seja um tributo que incida sobre o consumo da mercadoria, o que ocorre no estado de destino, e não naquele de origem do bem. Porém isso já vem sendo debatido no Congresso e no Planalto há quase duas décadas, em várias propostas de reforma tributária, mas não consegue aprovação política. Ao invés de tentarmos aproximar economicamente os Estados, como a União Europeia fez com os países, trilhamos rumo contrário.

Por outro lado, a exigência de unanimidade pelo Confaz é constitucional? A Lei Complementar 24 é de 1975, e há dúvidas se esta exigência foi recepcionada pela atual Constituição. Observe-se que a exigência de unanimidade não existe nem mesmo para alterar a Constituição! As propostas de emenda constitucional devem ser aprovadas por 3/5 dos votos dos membros do Congresso Nacional. Todo o processo legislativo possui regras de aprovação inferiores a esta proporção de 3/5. Logo, será constitucional esta exigência?

Um grupo de especialistas do qual faziam parte Paulo de Barros Carvalho, Ives Gandra da Silva Martins, Everardo Maciel e Marco Marrafon (articulista da ConJur) recomendou a manutenção da regra da unanimidade nas deliberações do Confaz, arguindo inclusive que sua alteração feriria a Constituição. Não concordo com esse entendimento, conforme disse em outra oportunidade. Encontro-me mais próximo da opinião de Regis Fernandes de Oliveira para quem a regra da unanimidade não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Diz ele que “o órgão representativo da federação é o Senado (…). Para as deliberações do Senado objetivando a manutenção da unidade da federação em relação ao poder tributário, há necessidade de decisão por dois terços de seus membros. Daí a incongruência não admitida pela Constituição Federal de que as decisões do Confaz se façam por unanimidade. Ora, se o órgão de representação política dos estados pode e deve decidir por maioria absoluta ou de dois terços, (…) nenhuma lógica estrutural ou sentido jurídico tem a exigência de unanimidade prevista para as deliberações do Confaz, em relação à outorga de benefícios. Não se deduz, com todo respeito a vozes divergentes, da arquitetura constitucional que possa lei ou mesmo lei complementar (cuja diferença é apenas de conteúdo e não de hierarquia) estabelecer a exigência de unanimidade para deliberação de órgão administrativo, o que pode resultar em prejuízo a qualquer unidade federativa que é ente federativo e político. A regra da unanimidade é incompatível com o Estado federativo que pressupõe, até mesmo por decorrência histórica, a desigualdade de seus integrantes. Daí se conclui a absoluta inconstitucionalidade do parágrafo 2º do artigo 2º da Lei Complementar 24/75.”

Pela lógica da unanimidade, o Confaz se torna o dono do ICMS e não cada Estado individualmente considerado. O Confaz tem um papel de harmonização fiscal em um Estado Democrático de Direito, e não de Coação Fiscal, própria do período em que foi criado.

Apenas para prosseguir na análise, imagine-se que a Súmula Vinculante venha a ser editada reforçando a unanimidade do Confaz por entender que a Lei Complementar 24/75 foi recepcionada pela Constituição. Quem acredita que acabará a guerra fiscal? Entendo que entraremos apenas em outra fase da disputa. Se hoje ela existe às escâncaras, através de atos normativos publicados nos jornais, esta nova fase, pós-Súmula, será do reinado dos regimes especiais. Explico para quem não acompanha o dia a dia da área tributária estadual, regime especial é uma daquelas palavras-bonde, nas quais cabe tudo que se pretende que seja alterado do regime normal. Assim, hoje, se uma empresa deseja obter uma redução da carga fiscal, uma norma é publicada com um mínimo de generalidade, a fim de evitar favorecimentos indevidos entre contribuintes que se encontram no mesmo Estado. Com os regimes especiais o benefício fiscal poderá não ser concedido de forma isonômica ou com publicidade, pois esta espécie de regime fiscal especial nem sempre sai publicada no Diário Oficial e muitas vezes é individualizada para cada empresa. Assim, o que está ruim corre o risco de piorar, como foi advertido por Renato Silveira em texto que escrevemos a quatro mãos. Ao invés de termos o primado da transparência fiscal teremos o da opacidade fiscal.

Suponhamos que, mesmo assim, com todos os problemas acima expostos, o STF decida editar a Súmula Vinculante 69. Quais os demais inconvenientes? Entende-se que deva haver modulação de seus efeitos por vários motivos que já tratei em coluna neste ConJur. Resumindo o que lá escrevi, entendo que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade devem respeitar a segurança jurídica das relações havidas com terceiros de boa-fé. A retroação, fruto da declaração de inconstitucionalidade de uma norma, não pode desfazer os efeitos jurídicos concretizados ao longo do tempo com terceiros que tenham obedecido ao que manda a lei, apenas posteriormente declarada inconstitucional. Afinal, as empresas (terceiros) apenas cumpriram o que a lei ordenava — e não podem ser penalizadas por terem cumprido exatamente o que a lei ordenava —, uma vez que ela estava em pleno vigor e projetando seus efeitos sobre a sociedade.

Mauro Cappelletti analisa hipótese que cabe perfeitamente ao caso sob análise, quando diz que: "Em matéria civil, ao invés, e, às vezes, também em matéria administrativa, se tem preferido respeitar certos efeitos consolidados, produzidos por atos fundados em leis depois declaradas contrárias à Constituição; e isto em consideração ao fato de que, de outra maneira, se teriam mais graves repercussões sobre a paz social, ou seja, sobre a exigência de um mínimo de certeza e de estabilidade das relações e situações jurídicas.”

Observa-se que a situação acima descrita por Cappelletti é a mesma que nos defrontamos no Brasil. Os benefícios fiscais foram concedidos pelos estados há muitos anos e muitas relações socioeconômicas foram criadas e consolidadas ao longo desse período. É adequado, em nome da Segurança Jurídica — ou, como usa Cappelletti, da paz social —, que certos efeitos consolidados não sejam afetados por esta retroação. Registra-se que o STF já adotou este tipo de solução em caso relatado pelo ministro Leitão de Abreu, que à época compunha a 2ª Turma juntamente com os ministros Xavier de Albuquerque, Cordeiro Guerra e Moreira Alves (RE 79.343-BA, 31/5/77). Neste julgado foi asseverado: “A lei inconstitucional é um fato eficaz, ao menos antes da determinação de inconstitucionalidade, podendo ter consequências que não é lícito ignorar. A tutela da boa fé exige que, em determinadas circunstâncias, notadamente quando, sob a lei ainda não declarada inconstitucional, se estabeleceram relações entre o particular e o poder público, se apure, prudencialmente, até que ponto a retroatividade da decisão, que decreta a inconstitucionalidade, pode atingir, prejudicando-o, o agente que teve por legítimo o ato e, fundado nele, operou na presunção de que estava procedendo sob o amparo do direito objetivo.”

Protege-se aquele que agiu acreditando na legitimidade da legislação que se encontrava vigente à época da fruição de seus efeitos. Quanto mais tiver demorado a retirada da norma do sistema jurídico, maior sua possibilidade de gerar efeitos concretos permanentes, de difícil reversibilidade. O risco é da ampliação da litigiosidade sob este forte argumento.

Desta forma, na hipótese de o Supremo Tribunal Federal decidir pela edição da Súmula Vinculante 69, sugere-se que module largamente seus efeitos para o futuro, tendo em vista razões de segurança jurídica.

Uma possibilidade seria adotar a seguinte regra de vigência: a partir do 1º dia posterior a 12 meses de sua edição. Isto permitirá às empresas afetadas organizar sua atividade empresarial, rever sua estrutura de custos e a estratégia das decisões de investir.
Fica a sugestão.

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    é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e livre docente em Direito pela mesma Universidade.

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