PEC 82

Autonomia e independência são inerentes à Advocacia Pública

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15 de junho de 2014, 10h02

Tramita no Congresso Nacional uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 82) que reconhece a autonomia funcional, administrativa e financeira às Advocacia-Geral da União, Procuradoria-Geral Federal, Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, Procuradoria Geral do Banco Central do Brasil, procuradorias estaduais, do Distrito Federal e dos municípios, além das procuradorias junto às respectivas autarquias. Após aprovação na Comissão Especial, a PEC 82 teve requerimento de inclusão na ordem do dia pelo deputado Efraim Filho (DEM-PB).

Mas qual realmente é a importância, a necessidade e a pertinência jurídica do reconhecimento da autonomia para as instituições da Advocacia Pública no Estado brasileiro e seus agentes?

De prelúdio, impende evidenciar que a Advocacia Pública encontra assento especial nos arts. 131 e 132 da Constituição cidadã de 1988, a qual qualificou-a como uma dentre as funções essenciais à justiça, ao lado, diga-se, da advocacia, da Defensoria Pública e do Ministério Público. Essa constatação já exala um consectário topológico que a destaca fora de quaisquer dos Poderes da República[1], servindo-se propriamente como instituição constitucional à parte, cuja missão constitucional é representar o Estado brasileiro na esfera dos interesses públicos primários e secundários cometidos aos diversos entes estatais, políticos e administrativos.[2]

Nesta senda, o reconhecimento da autonomia decorre como consectário essencial. Ora, como pensar que uma instituição constitucional que tenha por missão zelar juridicamente pela adequada implementação das políticas públicas capitaneadas pelos entes estatais poderia estar sujeita a caprichos ou desmandos que a apartam da ordem jurídica e dos objetivos constitucionais?

Isto decorre do fato de que o advogado ou procurador público, na atuação de representação judicial ou extrajudicial do ente estatal, está jungido à Constituição e à juridicidade que deve dirigir e embasar os atos estatais, inclusive as políticas públicas definidas pelos gestores do Estado. Afinal, cabe ao advogado público, por função essencial, além da representação judicialmente do Estado (por ato de quaisquer de seus Poderes), afirmar o direito e orientar juridicamente o Estado na atuação de seu Poder Executivo.

Não é por outro motivo que Moreira Neto, já de longa data, ressalta como princípios constitucionais da procuratura pública, dentre outros, a independência funcional e as autonomias administrativa e de impulso.[3]

Sobre a independência funcional, o administrativista Moreira Neto acentua a insujeição das procuradorias constitucionais a qualquer outro Poder do Estado em tudo no que tange ao exercício de suas funções essenciais à justiça. Por sua vez, a autonomia consiste na outorga, às procuraturas, da gestão dos meios administrativos necessários a garantir-lhes a independência para atuar, mesmo contra interesse de quaisquer Poderes, inclusive o Executivo, de cuja estrutura se vale.[4]

Como se vê, não há perplexidades no reconhecimento da autonomia aos integrantes da Advocacia Pública, dado que se trata de algo que lhe é inerente e decorrente da sua condição de função essencial à Justiça. Sendo função estatal[5] traz ínsito o vínculo e compromisso com a realização do interesse coletivo.

Para elucidar ainda mais a pertinência e a adequação da autonomia para os advogados públicos basta enunciar que o elemento determinante da autonomia dos membros das procuraturas públicas é o propósito de representar os interesses públicos e políticas públicas a eles atreladas no sentido de viabilizar a missão dos entes estatais. Eis o discrímen e o diferencial que fortalece e limita a autonomia do advogado estatal. Ou seja, no exercício desse mister, o procurador estatal não pode ser corrompido por pressões ou desvios advindos de quem quer que seja, membros de outras funções essenciais ou gestor ímprobo.

Neste ponto, resta claro que a atuação autônoma do advogado público e da Advocacia Pública, enquanto instituição, representa verdadeira garantia para o cidadão.[6]

Da mesma forma, a autonomia administrativa e funcional do Ministério Público está focada na defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais indisponíveis, de tal forma que, fugindo desse mister, não há que se falar em autonomia para o membro do Ministério Público.

Não é por outro motivo que o art. 9º, §1º da Lei 7.347/85 determina que, convencido o representante do Ministério Público da inexistência de fundamento para ajuizar a Ação Civil Pública, deve arquivar o inquérito civil e remetê-lo ao Conselho Superior do Ministério Público para aferição da correspondência da sua decisão com os fatos apurados e com o propósito do Ministério Público. Ou seja, se o representante do parquet deliberou, por preferência pessoal, em não ajuizar a ação civil, o ato não está imunizado pela autonomia funcional.

Por igual, a referência à inviolabilidade dos atos e manifestações do advogado, prevista no art. 133 da Constituição, está jungida à função essencial de prover Justiça. Destarte, a autonomia das funções essenciais à Justiça é refém do interesse e da missão de cada uma das funções.[7]

Assim sendo, a ideia de que o advogado público tem por missão defender os atos estatais, ainda que mais írritos e ímprobos, é deturpar todo o plano constitucional estatuído pela Carta Magna para essa essencial função. Pressionar o advogado público a abandonar a representação dos entes estatais naquilo que é inerente ao interesse público perseguido por cada ente estatal é pretender corromper sua missão. Esse tipo de visão não é constitucional e ofende o interesse da coletividade, e, por corolário, a função constitucional essencial à Justiça.

Dessa forma, fundamental o reconhecimento, na emenda constitucional em trâmite, da efetiva autonomia da Advocacia Pública e de seus membros.

De outro lado, é bom ressaltar que a autonomia do advogado público, por igual, não se confunde, como visto, com a soberania institucional ou funcional, mas sim como garantia do livre exercício de sua função institucional, qual seja, representar o Estado brasileiro na esfera dos interesses públicos primários e secundários cometidos aos diversos entes estatais, políticos e administrativos.

É bem verdade que a definição da política pública a ser concretizada passa pela análise política e decisória do gestor estatal ou do governante eleito, de tal forma que, uma vez definida a política pública e crivada da conformidade legal e constitucional, não cabe ao advogado público criticar ou expor preferências, no uso da função, sobre a pertinência ou mais valia de um tipo de política em detrimento de outra. Essa não é a missão do advogado estatal.

Ao contrário, o Ministério Público, como crítico externo ao Estado, detém esse papel, com o qual a advocacia pública não se confunde por princípio e missão. Ou seja, naquilo que é inerente à função essencial à Justiça, a autonomia é correlato essencial e garantia constitucional.

Para exemplificar, válida a remissão a trecho do voto do ministro Celso de Mello na apreciação da medida cautelar concedida na ADI 4.843, que reconheceu a autonomia do advogado-geral da União para contrapor-se à constitucionalidade de normas submetidas ao seu exame.[8]

Assim, podemos sintetizar que a autonomia e independência do advogado público é:

a) imperativo constitucional decorrente da sua topologia constitucional apartada de quaisquer dos Poderes e de seu status como função essencial à justiça;

b) necessidade de atribuir paridade de armas ao advogado público quando em litígio em face de outras funções essenciais à Justiça, sejam integrantes de outras carreiras públicas que exercem funções essenciais (como Ministério Público[9] e Defensorias Públicas), seja perante advogados privados (mormente nos casos de grandes corporações econômicas dotadas de grande articulação e poder de influência) ou o próprio Judiciário;

c) garantia da supremacia da lei e da Constituição diante de iniciativas do gestor público que encampa postura desviadas da lei e que colocam o advogado público sob pressão e conflito para viabilizar posições jurídicas juridicamente insustentáveis ou lesivas ao Estado;

d) pressuposto de isonomia diante de outras funções essenciais à Justiça ou mesmo do Judiciário, evitando o nefasto processo de debilitação das instituições essenciais menos aparelhadas;

e) mecanismo de proteção da cidadania e instrumento de eficácia dos direitos fundamentais, dando condições aos membros da Advocacia Pública reconhecer direitos, firmar acordos e dispensar recursos judiciais em casos de inviabilidade ou acolhimento da pretensão do cidadão pela legislação;

Trata-se, como se pode perceber, de reconhecer autonomia e independência que, além de imprescindível, é inerente à Advocacia Pública, tanto que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI 4.261/RO, expressamente reconheceu que o art. 132 da Constituição, ao tratar dos procuradores do Estado, estatuiu preceito que se destina à configuração da necessária qualificação técnica e independência funcional desses especiais agentes públicos, consignando, assim, de forma expressa e clara, o reconhecimento da independência funcional dos advogados públicos.[10]

Daí ser fundamental o reconhecimento e a afirmação constitucional da autonomia administrativa, financeira e funcional da Advocacia Pública[11] como consectário de um Estado Democrático e de Direito pautado por um ideal de Justiça e igualdade, o que em nada conflita com o papel central do gestor público ou do governante na idealização e escolha da política pública mais adequada para alcançar os objetivos estatais[12], e por consequência, os interesses coletivos.

Afinal, a quem interessa negar a autonomia ao Advogado Público?

 


[1] Nesse sentido, válida a remissão feita pelo Ministro do STF, Celso de Mello, sobre a doutrina de Tomás Pará Filho ao aludir que o “procurador do Estado é, e deve ser, órgão de colaboração e representação, fora do ordenamento estritamente burocrático. Sua atividade corresponde, tão só, à advocacia preventiva e ativa em prol do Estado”. (Invoto do ministro Celso de Mello no informativo 743, Brasília, 21 a 25 de abril de 2014. In http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo743.htm) destaque nosso. Acesso em 16.05.2014

[2] Extraída do artigo de autoria do professor Diogo de Figueiredo Moreira Neto. (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. A responsabilidade do advogado de estado. In http://download.rj.gov.br/documentos/10112/168750/DLFE29276.pdf/rev630305ResponsabilidadeAdvogadoEstado.pdf) Acesso em 16.05.2014

[3] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. As funções essenciais à justiça e as Procuraturas constitucionais. In: Revista de informação legislativa, v.29, nº 116, p. 79-102, out./dez. de 1992, P.92.

[4] Ibidem. p.93-94

[5] Função estatal, na acepção de Renato Alessi, constitui o poder estatal considerado enquanto destinado à finalidade de interesse coletivo e enquanto objeto de um dever jurídico relativamente à sua aplicação. (Tradução livre). In MODESTO, Paulo. Função administrativa. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Institutod de Direito Público da Bahia, nº 5, janeiro/fevereiro/março, 2006. Disponível: http://www.direitodoestado.com/revista/REDE-5-JANEIRO-2006-PAULO%20MODESTO.pdf, acesso em 29.05.2014.

[6] NUNES, Allan Titonelli. Independência técnica do advogado é garantia ao cidadão. In http://www.advocaciapublica.com.br/forum/artigos/independencia-tecnica-do-advogado-e-garantia-ao-cidadao. Acesso em 16.05.2014

[7] Ao fazer uma abordagem sobre o papel do advogado público, Alexandre Aguiar bem ressalta o caráter instrumental da independência funcional do advogado público. In AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. Para que serve o advogado público?. In GUEDES, J.C. e SOUZA, L.M (Coord.). Advocacia de Estado: questões institucionais para a construção de um estado de justiça: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli, Belo Horizonte: Fórum, 2009, p.57-58.

[8] Transcrição do voto do ministro Celso de Mello no informativo 743, Brasília, 21 a 25 de abril de 2014. In http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo743.htm. Acesso em 16.05.2014

[9] Cite-se o contencioso e o acirramento ocorridos nas discussões que envolvem a instalação da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, em que a AGU apontou ameaça de integrantes do MPF a servidores públicos, em especial do IBAMA, fato que ocasionou embates de procuradores da República com procuradores federais/AGU. In http://www.ihu.unisinos.br/noticias/43665-agu-reage-e-critica-acoes-do-mpf-em-belo-monte

[10] ADI 4261, Relator(a):  Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 02/08/2010, DJe-154 DIVULG 19-08-2010 PUBLIC 20-08-2010 EMENT VOL-02411-02 PP-00321 RT v. 99, n. 901, 2010, p. 132-135 LEXSTF v. 32, n. 381, 2010, p. 88-93. Acesso em 16.05.2014

[11] Sobre abordagem da autonomia da procuradoria estatal como garantidora da transparência, da democracia, da ética, da moralidade, da legalidade e da redução do número de demandas judiciais, cabe mencionar: NEVES, Sérgio Luiz Barbosa. A procuradoria geral do estado como órgão fiscalizador interno e soberano da administração pública. Disponível: http://www.aperj.org.br/arquivos/pdf/orgaofiscal.pdf. Acesso em 16.05.2014.

[12] Sobre a missão da Advocacia Pública, importante a alusão à posição de Marcelo Siqueira ao afirmar que compete ao procurador federal defender as políticas e interesses públicos a cargo da administração indireta federal, em colaboração com o gestor, mas sem subordinação. FREITAS, Marcelo Siqueira. A procuradoria-geral federal e a defesa das políticas e dos interesses públicos a cargo da administração indireta, In GUEDES, J.C. e SOUZA, L.M (Coord.). Advocacia de Estado: questões institucionais para a construção de um estado de justiça: estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto e José Antonio Dias Toffoli, Belo Horizonte: Fórum, 2009, p.538-539.

 

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