Penas desproporcionais

"Proibir autolavagem resolveria injustiças trazidas pela nova lei"

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15 de junho de 2014, 9h45

Spacca

A lista dos advogados criminalistas mais conhecidos em atividade no Brasil traz poucas representantes do sexo feminino. Num jogo dominado por homens, o nome de Heloisa Estellita tem chamado atenção. Atualmente, ela atua no consultivo, dá aulas na Fundação Getulio Vargas e se prepara para um pós-doutorado sobre Direito Penal — que será cursado em parte na Alemanha e em parte no Brasil.

Antes disso, Heloisa ficou por sete anos Toron, Torihara & Szafir Advogados, onde atuava no contencioso, tendo advogado para clientes como o empresário russo Boris Berezovsky — acusado de lavagem de dinheiro — e o então diretor do banco Credit Suisse Carlos Miguel de Sousa Martins — acusado de evasão de divisas e formação de quadrilha. Ela foi para o escritório depois de ter passado mais de dois anos como assessora do então ministro do Supremo Tribunal Federal Cezar Peluso.

Ainda quando estava no front do contencioso, a profissional dividia seu tempo com a academia. Tempo, aliás, que é sempre controlado por ela, com aplicativos de celular do qual ela não tira o olho. Seu afastamento da banca se deu justamente para ter mais controle da agenda e poder se dedicar mais ao seu pós-doutorado.

Hoje, como consultora em dois escritórios — no Alonso Leite Groch Associados + Heloisa Estellita Advogados e no FeldensMadruga —, professora da Direito GV e coordenadora da Revista Brasileira de Ciências Criminais, Heloisa segue a meta de identificar os problemas jurídicos por trás de cada caso concreto e resolvê-los. Seu foco tem sido a área de penal empresarial, com programas de compliance e adequações à Lei de Lavagem e à Lei Anticorrupção.

Crítica à interpretação que o Supremo fez do crime de lavagem de dinheiro na Ação Penal 470, a advogada acredita que uma interpretação que afastasse a punição da autolavagem — punir a pessoa que cometeu o crime antecedente também pela ulterior lavagem do produto do crime — já resolveria alguns  problemas de desproporcionalidade gerados pela abertura do rol de crimes antecedentes à lavagem.

Estellita é contra a criminalização das drogas. Segundo ela, a superlotação das cadeias do país com condenados por tráfico ou porte de drogas não compensa, nem economicamente, para a sociedade. O sistema carcerário, completa, precisa ser completamente revisto, uma vez que é um investimento praticamente sem retorno: a taxa de reincidência dos presos gira em torno de 74%.

Em visita à redação da Consultor Jurídico, Heloisa Estellita falou sobre as teses criminais que os tribunais brasileiros estão enfrentado, sobre a criminalização de advogados por receberem honorários de suspeitos e sobre a desigualdade do tratamento que o país dá à acusação e à defesa — o que se reflete nas diferenças entre o Ministério Público e a Defensoria Pública.

Leia a entrevista:

ConJur — Que grandes teses criminais estamos enfrentando no Brasil?
Heloisa Estellita — Há várias. No mensalão, por exemplo, foram colocadas questões interessantes, mas que não puderam ser discutidas com serenidade, o que prejudicou a qualidade da discussão. Um exemplo é a responsabilidade dos dirigentes de empresa por omissão dos crimes praticados por seu subordinados e seus pares. Discute-se a omissão de quem está na posição de dirigente e não celebrou nenhum contrato, não atuou, mas se omitiu no dever de impedir um resultado, porque os crimes estavam sendo praticados pelos subordinados. Isso tem implicações com os programas de integridade, tão em voga atualmente. Com a lei anticorrupção, o dirigente passa a ter o dever de saber se há corrupção dentro da sua empresa, algo que não existia antes.

ConJur — E o caso do domínio do fato?
Heloisa Estellita — Há aí uma grande confusão. Os crimes omissivos não atendem à estrutura do domínio do fato. Nem os omissivos, nem os crimes próprios, de funcionário público, por exemplo. O sentido de domínio do fato para Claus Roxin é um domínio muito real. Não basta ser o dono da empresa, é necessário dominar a execução do crime. Um tratamento mais rigoroso das formas de imputação da responsabilidade em empresas é um grande tema. Nessa linha, temos a questão da responsabilidade do compliance officer, que terá de ser muito bem tratada. Atualmente há vários obrigados a medidas de compliance. Por exemplo, um joalheiro está obrigado, pela Lei de Lavagem, a fazer um programa de prevenção à lavagem. Se ele for um pequeno joalheiro, deverá ter um programa de integridade básico. Se lidar com o poder público, faz sentido que também tenha um programa de integridade anticorrupção. A pessoa responsável por isso tudo vai estar sobrecarregada de deveres. E a relação dela com a cúpula da empresa é um problema que não pode ser descuidado.

ConJur — Como organizar isso em uma empresa?
Heloisa Estellita — Implicará muito gasto. As pessoas não perceberam o custo econômico dessa legislação. Boa assessoria jurídica nessa área não é barata. No ano passado, a FGV fez, com o COAF e o IBGM, um guia de prevenção à lavagem para joalheiros. É um manual que explica para leigos, joalheiros de pequeno porte, o que a lei determina. A segunda edição deve sair até o final desse semestre e foi preparada pela minha equipe da Clínica. Incluímos uma lista de operações com bandeiras amarelas e operações com bandeiras vermelhas, para ajudar a pessoa obrigada a entender quando ela está diante de uma operação de risco. Mas isso é o mínimo. Para coisas mais complicadas, será preciso assessoria jurídica. Não tem jeito.

ConJur — E o foco é só joalheiro?
Heloisa Estellita — Nesse guia, sim. Mas estamos elaborando algo para o mercado imobiliário, em uma louvável iniciativa do CRECI-SP. O número de agentes imobiliários é muito grande. É um setor sensível no Brasil.

ConJur — Os problemas são semelhantes?
Heloisa Estellita — Na verdade, é mais fácil fazer lavagem de dinheiro com produtos vendidos em joalherias. Especialmente diamantes, que não são detectados, por exemplo, em detectores de metais. Coloca-se R$ 1 milhão na palma da mão e leva-se para onde quiser.

ConJur — Uma vez extinta a punibilidade do crime contra a ordem tributária, pelo pagamento de tributo, em relação ao crime de lavagem de dinheiro, que tinha como crime antecedente o de sonegação fiscal, também estaria extinta a punibilidade?
Heloisa Estellita — Não. Essa é uma disposição claríssima da Lei 9.613. É uma contradição na política criminal no campo penal tributário, mas está aí. Mais uma das incongruências que a Lei de Lavagem gera.

ConJur — Esse tipo de incongruência não pode vir a mudar, sendo uma contradição tão clara?
Heloisa Estellita — Teria uma saída interpretativa que seria bem razoável: interpretar a autolavagem como bis in idem e, portanto, inválida. O Supremo disse, no Mensalão, que não é. Mas o Supremo não parece ter considerado, naquele caso, todas as consequências disso. Não temos uma decisão de Plenário, em controle abstrato, dizendo isso. Na medida em que não se puder punir o autor do crime tributário pelo crime de lavagem, esse problema já estará resolvido, porque a extinção da punibilidade tem efeitos para ele. Mas o terceiro que lavar dinheiro vai responder pela lavagem, ainda que extinta a punibilidade do crime tributário.

ConJur — No caso do mensalão discutiu-se isso, na parte do João Paulo Cunha…
Heloisa Estellita — O argumento que ganhou foi o de que o recebimento do dinheiro era modalidade de prática da corrupção, não autolavagem. Estava absolutamente correto. A tese é linear e clara. A proibição de autolavagem resolveria várias situações de injustiça que a Lei de Lavagem cria. E daria muito mais sentido para o tipo de lavagem. Por exemplo, se a pessoa que vende a rifa não puder ser punida pela lavagem do valor da rifa, resolve-se de uma forma razoável a grande acusação contra a reforma de 2012, que passou a punir uma contravenção penal com uma pena de reclusão de 3 a 10 anos. É um absurdo, mas também está aí.

ConJur — Isso também se aplica ao bicheiro?
Heloisa Estellita — Ao bicheiro também. Esse parece ter sido o motivo da reforma no que diz respeito à inclusão das contravenções como infrações antecedentes. Se a questão era colocar o jogo do bicho como antecedente da lavagem, que se transformasse o jogo do bicho em crime, o que não parece recomendável é incluir  todas as contravenções como antecedentes da lavagem, nem a Convenção de Palermo o sugeriu. É o remédio que mata o paciente. Mas a proibição de punir a autolavagem resolveria o problema. Primeiro porque o autor do crime tributário já não poderia responder pela lavagem. E aí, obviamente, a extinção da punibilidade teria efeito para o crime tributário. Mas se puniria pela lavagem o terceiro que praticou atos de lavagem do produto do crime tributário. E o pagamento do tributo não teria efeito sobre ele, o que faz todo sentido.

ConJur — Você isolaria um do outro.
Heloisa Estellita — Isolaria um do outro e o efeito da benesse, da política fiscal com relação ao crime tributário, não contaminaria a pessoa que colaborou para que o dinheiro fosse escondido. Porque merece a sanção. Seria o exemplo do sonegador que contrata uma pessoa para esconder o dinheiro. O ordenamento proíbe a dissimulação ou ocultação de produto de crime.

ConJur — No julgamento do mensalão surgiu a discussão sobre a incriminação do advogado por receber dinheiro do seu cliente, um dinheiro que, em tese, seria sujo. Como enfrentar essa discussão?
Heloisa Estellita — A lei penal brasileira não pune o recebimento de valor de crime como lavagem. Tem que forçar muito a barra para enquadrar isso no parágrafo 2º, inciso 1º do artigo 1º da Lei de Lavagem de Dinheiro [Lei 9.613]. Receber dinheiro produto de crime não é crime de lavagem no Brasil. Na Espanha e na Alemanha é, por exemplo. E isso afeta não só o advogado, mas também o dentista, o padeiro, o dono da escola onde estuda o filho do suposto criminoso… Por que o advogado reluz nesse meio? Porque, se ele atua na área criminal, sabe que o cliente é suspeito. Essa é a única diferença entre o advogado e o dono da escola. Mas saber de uma coisa torna essa conduta criminosa? Não me parece. As pessoas veem uma possibilidade de tipificar o recebimento de honorários no parágrafo 2, inciso 1, do artigo 1, que fala sobre usar na atividade econômica dinheiro proveniente da prática de crime. Seria uma situação esdrúxula se aplicado ao advogado que recebesse valor a título de honorários legítimos em sua pessoa jurídica e o utilizasse nas atividades econômicas dessa mesma pessoa jurídica. Ainda assim não faz sentido. Outra coisa: essa é uma decisão de Estado. Se vamos debater se deveríamos criminalizar o recebimento de pagamento de honorários por advogados privados, temos de sentar e conversar mesmo, pois isso interfere diretamente no direito de defesa. Nenhum Estado que eu conheça decidiu que criminosos não podem escolher seus advogados. Porque é isso que vai acontecer se criminalizarmos o recebimento honorários por cidadãos suspeitos.

ConJur — O suspeito será obrigado a ir para a Defensoria Pública.
Heloisa Estellita — Exatamente. Essa é uma decisão de Estado. Se nós, como Estado, quisermos que os criminosos não possam escolher seus advogados, via proibição de receber os honorários, há que se aparelhar a defensoria. E sabemos muito bem como o Estado trata a defensoria no Brasil, infelizmente.

ConJur — Como o Estado trata a defensoria no Brasil?
Heloisa Estellita — Mal. Basta ver que o salário de defensor não é equiparado ao de promotor. Há a discussão da concepção cênica das salas de audiência que está no Supremo. O promotor senta do lado do juiz, o defensor não. Isso é algo inconcebível no processo penal, no qual o promotor é tão  parte quanto o defensor.

ConJur — A posição do MP no tribunal é resquício da ditadura?
Heloisa Estellita — É resquício de um povo que aprendeu a ser cuidado por um “ente” que é o Estado, algo bem paternalista. O brasileiro parece achar que ele serve ao Estado, e não o contrário. Por isso, quando se fala de quebra de sigilo bancário, as pessoas respondem: “Quem não deve, não teme”. Não entendem que não é questão de dever ou temer. Eu tenho direito à intimidade e só abro mão quando houver extrema necessidade pública. O Estado serve aos cidadãos, que não lhe devem ceder nenhum direito desnecessariamente. O Estado não precisa saber quanto eu tenho na minha conta, eu posso não ter nada e mesmo assim tenho o direito a não compartilhar essa informação. Para mim, é com base nessa raiz, digamos, paternalista, que o MP acabou sendo visto e tratado como um terceiro desinteressado no processo penal, o que é uma falácia. Em outros setores,  ele é, de fato, fiscal da lei, mas, no processo penal, é parte, embora não seja tratado assim.

ConJur — Hoje em dia quase não existe vaga no semiaberto, e a pessoa vai para prisão domiciliar. Como se resolve isso?
Heloisa Estellita — Se queremos cumprimento de pena em semiaberto, há que investir.

ConJur — Ou está na hora de rever o semiaberto?
Heloisa Estellita — Eu acho que está na hora de rever o semiaberto, o aberto e as prisões preventivas. Todas. Prisão mesmo, reclusão total, tinha que ser para quem realmente precisa, que não pode ficar em contato com a sociedade. Não para resolver problema de pobreza, porque não resolve. Ninguém investiria no setor, nem sob o ponto de vista de filantropia. Produz-se algo em torno de 74% de reincidência no Brasil, e pouco se faz para melhorar isso. Ou seja, estamos gastando dinheiro à toa, sem praticamente nenhum retorno. Claro, não dá para fazer uma revolução de uma hora para a outra. Nenhum outro país achou solução para prisão que não fosse combater a causa de entrada das pessoas no sistema carcerário. Mas os países que conseguiram combater a causa estão fechando os presídios, porque não têm presos. Nosso sistema carcerário está inchado também em função de crimes relacionados às drogas e sou a favor de uma política que não envolva a criminalização nesse setor, mas um rigoroso controle. Trata-se de criminalização que não compensa: entre ônus e bônus, os ônus são desproporcionais aos bônus. A consciência sobre isso aumenta a cada dia e em todo o mundo.

ConJur — Parecerista na área cível é muito bem remunerado. Na área penal também?
Heloisa Estellita — Também. É bem remunerado. Mas a remuneração no litigioso penal é muito alta. Com o crescimento do consultivo penal, o parecer e a opinião legal vão ser um grande mercado. E é uma vida, pelo menos sob meu ponto de vista, com mais qualidade.

ConJur — Você acha que inquérito policial deveria ser extinto?
Heloisa Estellita — Não. Você não corta o braço do paciente porque ele está com um problema em um dedo. Você aplica algum tratamento . O recebimento de uma denúncia no processo penal é uma coisa muito séria na vida civil de uma pessoa. O inquérito, ainda com todos os defeitos que tem, é um jeito de apurar se ali há mesmo indícios de crime e quem é seu autor. Como o juiz poderá avaliar a justa causa de uma acusação se não tiver alguns elementos probatórios já produzidos para averiguar a plausibilidade da ação penal?

ConJur — O espaço para defesa no inquérito deveria ser mudado?Heloisa Estellita — Talvez. Talvez a defesa pudesse requisitar produção de provas pela polícia, tal qual o MP. O medo é que isso transforme o inquérito em outro processo. Porque se há partes, aí é processo, e teremos um, e depois outro.

ConJur — Qual sua opinião sobre os mutirões carcerários?
Heloisa Estellita — São fundamentais. Tenho certeza que os livros de história falarão, sobre estes dias que vivemos: “Gente bárbara. Como deixaram um sistema carcerário desse jeito?” Essa talvez seja uma das poucas coisas boas advindas do Mensalão. As pessoas que são formadoras de opinião começaram a olhar um pouco para o sistema carcerário. Ninguém sai igual de um presídio brasileiro. É um sistema quase que feito para não funcionar. Não tem como funcionar. Porque é ilógico que eu “treine” alguém para a liberdade sem dar liberdade. É como pretender treinar um aluno sem que ele faça qualquer exercício.

ConJur — Esse paralelo é ótimo.
Heloisa Estellita — “Vou te ensinar só a teoria, você não vai aprender nada na prática. Vou te ensinar um ano a como cozinhar, só que você não vai ver o alimento, não vai pegar o alimento”, isso não pode funcionar. No presídio, o sujeito será agredido e privado de quase todos os direitos básicos que  tem, como ser humano que é. Depois, querem que saiam como bons cidadãos, desfrutem de sua liberdade e valorizem os direitos alheios que não lhe foram garantidos. Não é paradoxal? Por enquanto, aparentemente, não há outra solução.

ConJur — Esses dias foi considerada válida a prova produzida por um grampo, um gravador, na privada do presídio. O presídio não é tido como domicílio do preso? Ele não seria inviolável?
Heloisa Estellita — Boa pergunta. O preso está sob custódia do Estado. A rigor, o direito à liberdade é restringido quando recebe uma sentença condenatória. Se alguém não pode se locomover, não pode  arrumar emprego em qualquer lugar, não tendo o exercício livre da profissão. Mas continua tendo direito à intimidade, à honra e à educação, por exemplo.

ConJur — Ele tem direito à intimidade?
Heloisa Estellita — Tem. Claro que tem. Dentro dos limites do que uma prisão permite. A Lei de Execução Penal não determina que o preso perca o direito à intimidade.

ConJur — Você é a favor de ampliar acordos entre o Ministério Público, advogado e réu na área penal, para evitar prisão, como no sistema americano?
Heloisa Estellita — Sou contra. Absolutamente contra. Se se pode fazer acordo, não há necessidade de Direito Penal. Subverte-se a lógica. Os Estados Unidos são um bom exemplo de como isso não dá certo, na minha opinião, claro. E quando há condenação, a pena costuma ser desproporcional. Porque é uma barganha, como a que ocorre quando da compra de um imóvel: o dono aumenta o preço, o comprador o joga lá embaixo. Acontece a mesma coisa no processo. Só que estamos falando de interesse público e lógica de justiça. O MP vai jogar lá em cima, vai elencar, por exemplo, 10 acusações, quando, na verdade, tem provas de uma. O réu vai jogar lá embaixo, vai fechar em duas, digamos. Só que o MP só tinha prova de uma. Se se pensar que o interesse final do processo penal é fazer justiça, e não condenar, então esse exemplo demonstra como a lógica do acordo não pode atender a esse fim.

ConJur — A maioria dos presos está na cadeia por crimes pequenos, furto, roubo e tráfico. Como é que a gente tira essas pessoas da prisão?
Heloisa Estellita — Muito simples e muito trabalhoso: educação e emprego. E as condições mínimas de vida. Temos duas frentes para trabalhar com isso: a preventiva, que é fazer o cidadão não ser encarcerado, e também cuidar de quem sai de lá. Com educação, o sujeito terá chances de um bom emprego, não precisará cometer crimes. Crime patrimonial é crime de quem está precisando de dinheiro, na grande maioria dos casos. E, na outra ponta, o mesmo: dar condições materiais para que o egresso não volte para o sistema, ou seja, educação e trabalho.

ConJur — Há quanto tempo a senhora está atuando no consultivo? Como está a carreira?
Heloisa Estellita — Saí do Toron, Torihara e Szafir Advogados há um ano para me dedicar mais à Fundação Getulio Vargas e a um projeto pós-doutorado, que envolve alguns períodos de pesquisa na Alemanha. Associei-me ao Alonso Leite Groch Advogados e ao FeldensMadruga. Mantenho uma relação muito próxima e de profunda admiração com o Alberto Zacharias Toron, Edson Torihara, Alexandra Szafir e toda sua equipe. Trabalho hoje com diversos escritórios de advocacia da área penal, primordialmente.

ConJur — Quanto tempo a senhora dedica por semana para advocacia e para vida acadêmica?
Heloisa Estellita — Depende da época. Se estou trabalhando em algum parecer, com alguma consultoria em andamento, tenho de sacrificar bastante os finais de semana, porque grande parte da minha carga de trabalho durante a semana é dedicada à FGV, onde tive a chance de desenvolver projetos na área penal econômica que não imaginava poder desenvolver em um ambiente acadêmico e profissional de tão alto nível.

ConJur — Mas antes a senhora estava no litígio direto. Como foi essa mudança?
Heloisa Estellita — O Toron, Torihara e Szafir sempre abriu espaço para que as pessoas pudessem estudar, fazer pós-graduação, dar aulas. Eu tinha uma equipe excelente, havia uma interação perfeita, isso permitia um trabalho em conjunto muito eficiente. Tinha casos grandes, mas não cuidava de muitos casos.

ConJur — Sente saudade de entrar no meio da “pancadaria”?
Heloisa Estellita — Eu gosto da pancadaria. Mas o que eu mais gosto nela é o problema jurídico que está no centro do caso. Acho que é por isso que também gosto de viver essa vida dupla, academia e advocacia. Sei que ela é custosa, é sacrificante, mas me dá uma satisfação singular.

ConJur — Como consultora, a senhora notou uma influência da nova Lei de Lavagem no aumento da busca pelo preventivo?
Heloisa Estellita — Aumentou. Vai aumentar mais com a Lei Anticorrupção.

ConJur — Toda semana vemos escritórios fazendo eventos sobre Lei Anticorrupção para clientes. Há tanto assim o que se alertar? Ou isso serve para chamar novos clientes?
Heloisa Estellita — Há muito que se alertar, há muito a fazer, mas também é um produto. Eu estava lendo um artigo sobre isso, de uma professora espanhola dizendo: “Um pouco também desse bochicho [sobre a nova lei anticorrupção] é a advocacia querendo vender serviço”, ela tem lá sua razão.

ConJur — Um escritório só para compliance faz sentido?
Heloisa Estellita — Sob o ponto de vista penal e sob o ponto de vista econômico, acho complicado. Terá de dar algum suporte, pelo menos, de prevenção ao litígio. Por exemplo, a Lei Anticorrupção prescreve que a empresa que tiver um bom sistema de compliance vai entregar à autoridade pública a pessoa individual que praticou o ato de corrupção o que gerará uma investigação e possivelmente um processo penal. Então, se for entregar o dirigente, há de ter cuidado. Ademais, os procedimentos internos de investigação, que eventualmente serão instalados, principalmente nas empresas de grande porte, podem gerar problemas de invasão de privacidade. São pessoas privadas produzindo provas, com uma penetração em níveis de proteção do trabalhador e da intimidade que só cabe à autoridade judicial determinar.

ConJur — E como funciona isso? Com uma lei assim, fica liberada a produção de provas dentro da empresa?
Heloisa Estellita — Exige-se que a empresa o faça para que tenha a sanção reduzida. Acho lamentável que a lei tenha estabelecido a responsabilidade objetiva. Se houver denúncia do ato de corrupção dentro da empresa, haverá mitigação de pena. Para denúncias internas, deve ser implementado um canal interno na empresa. Quando se detectar um problema, haverá monitoramento e investigação. Com isso, serão obtidas provas do local de trabalho desse funcionário, provavelmente suas comunicações. Há de se tomar muito cuidado, pois vai resvalar na área trabalhista.

ConJur — A empresa não pode interceptar ligações internas de seus funcionários?
Heloisa Estellita — Essa é uma grande discussão no âmbito trabalhista e que vai “ferver” com a nova lei. Os tribunais serão obrigados a decidir sobre o tema.

ConJur — No caso da interceptação de e-mail corporativo, ainda não há jurisprudência firme. As decisões variam muito.
Heloisa Estellita — Pois é, a situação é insegura. A empresa é obrigada a investigar. Se descobrir algo e não denunciar, a sanção é maior. Mas, por outro lado, a jurisprudência é completamente insegura quanto a como ela pode fazer isso. É aí que haverá bastante trabalho para os advogados. Os tribunais terão de decidir isso, porque se a lei impõe o dever, precisa dar os meios para seu atendimento. Mas, a princípio, não se pode interceptar telefone sem ordem judicial. Interceptação é crime no Brasil. Pode-se, sim, gravar uma ligação sendo um dos interlocutores.

ConJur — E no caso de denúncia falsa, como a empresa deve fazer?
Heloisa Estellita — Tem de apurar. Talvez possa haver demissão por justa causa. O programa de integridade terá de prever todas essas situações, bem como garantir estabilidade àquele que denunciou . A partir do momento em que há uma comunicação, a pessoa que denunciou tem que estar com estabilidade garantida. Mas a improcedência dolosa pode gerar a perda da estabilidade, dentre outras consequências.

ConJur — A empresa que se autodenunciar às autoridades não fará  prova contra si mesma.
Heloisa Estellita —Esse é um dos defeitos da lei. Se a empresa tem um sistema de integridade tão bom que detecta um ato de corrupção e consegue resolver internamente a questão, com mínima chance de que isso “vaze”, não terá incentivos para reportar o fato às autoridades, porque, de qualquer forma, será sancionada. Por que ir à autoridade pública? Esse é um dos equívocos estratégicos da nova legislação anticorrupção, a falta de previsão de isenção de pena para a empresa que tenha um ótimo sistema de integridade.

ConJur — A era das grandes operações policiais acabou?
Heloisa Estellita — Tem de perguntar para a Polícia Federal. Acho que a época da caça às bruxas acabou no julgamento do Habeas Corpus 95.009[impetrado preventivamente pelo banqueiro Daniel Dantas, diante de notícia publicada pelo jornal Folha de S. Paulo dando conta de que ele poderia vir a ser preso pela Polícia Federal, no curso da operação satiagraha, em junho de 2008]. Começou com aquela liminar e acabou com o dia do julgamento no Plenário, no qual o STF deu uma mensagem muito clara: uma coisa é fazer operação, outra é humilhar desnecessariamente cidadãos brasileiros, ainda que suspeitos da prática de crimes graves. Acho que isso acabou.

ConJur — A gente viu o Ministério Público se mexendo muito na época da votação da Proposta de Emenda à Constituição 37…
Heloisa Estellita — Eu acho que a investigação pelo MPF ainda vai ser  um tiro no pé. É muito fácil arguir violação de princípios básicos da Administração Pública por parte de um membro do MP que escolhe o que quer investigar. Vivemos em um país de legalidade, temos que poder controlar o poder público. Qual será o critério para escolher o que o MP investiga e o que não investiga? Isso é altamente questionável.

ConJur — A PEC deveria ter sido aprovada?
Heloisa Estellita — Não. A matéria deveria ser regulamentada. É a visão do ministro [aposentado] Cezar Peluso com a qual concordo: há esferas de competência para investigar crimes que não podem ficar na mão da própria polícia. Mas tem-se de encontrar uma forma de compor. Não pode ser 8 ou 80. Aí também a culpa não é do MP. Colocou-se o debate como se fosse tudo ou nada, e não é isso.

ConJur — O que a senhora acha da interceptação de telefone por parte do MP?
Heloisa Estellita — É inadmissível que seja feita sem autorização judicial. Mesmo com autorização, se não é regulamentado, não pode ser feito. É imprescindível zelar pela fidedignidade da prova. Outra questão pouco cuidada no Brasil.

ConJur — Em questões envolvendo grampo?
Heloisa Estellita — Grampo, material computacional… Raramente se tem a cadeia de custódia. Espelha-se um HD sem estabelecer a cadeia de custódia, quem vai garantir que ninguém alterou aquilo?

ConJur — Não existe isso aqui?
Heloisa Estellita — Raramente, só quando a policia tem recursos. A fila no instituto de criminalística, o que eles têm de trabalho, é inacreditável… Mas para a Justiça Penal ninguém dá muita bola, não é?

ConJur — Não é essa que todo mundo fica pleiteando que devia funcionar mais, que devia prender mais?
Heloisa Estellita — Houvesse melhores condições, com uma polícia estadual melhor remunerada e melhor equipada… Mas não é assim. Não por culpa deles. É uma pena.

ConJur — No Brasil, o Instituto de Defesa do Direito de Defesa é a única entidade voltada especificamente para o direito de defesa. Nos EUA acompanhamos uma movimentação maior sobre o tema. A senhora acha que o Brasil precisava de mais espaço para discutir o direito de defesa?
Heloisa Estellita — Em tese, não, porque as facetas do direito de defesa estão bem cuidadas em nossa legislação. É necessário que se lhe dê mais amplo cumprimento, nesse sentido, entidades como o IDDD, mas também o IBCCrim e a própria Defensoria, nos níveis estadual e federal, são interlocutores da maior importância.  

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