Relações internacionais

Imunidade de jurisdição decorre de norma costumeira

Autor

  • Gustavo Filipe Barbosa Garcia

    é doutor e livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo especialista e pós-doutor em Direito pela Universidad de Sevilla. Atua como professor universitário advogado e consultor jurídico. Foi juiz do Trabalho das 2ª 8ª e 24ª Regiões procurador do Trabalho do Ministério Público da União e auditor fiscal do Trabalho. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho.

14 de junho de 2014, 9h38

A imunidade de jurisdição é entendida como “o privilégio reconhecido a certas pessoas estrangeiras, em virtude dos cargos ou funções que exercem, de escaparem à jurisdição, tanto civil quanto criminal, do Estado em que se encontram”[1]. Tem como fundamento a necessidade de ser assegurado o respeito à independência do Estado a que essas pessoas pertencem.

As Convenções de Viena sobre relações diplomáticas (1961) e consulares (1963), promulgadas no Brasil pelos Decretos 56.435/1965 e 61.078/1967, estabelecem prerrogativas e imunidades às pessoas e bens ali indicados.

Quanto aos Estados, como pessoas jurídicas de Direito Público externo, a imunidade de jurisdição decorre de norma costumeira, sabendo-se que o costume é importante fonte do Direito nas relações internacionais.

O artigo 114 da Constituição, seja em sua redação originária, seja após a Emenda Constitucional 45/2004, estabelece que a competência da Justiça do Trabalho também abrange os entes de Direito Público externo, isto é, os entes de Direito Internacional Público.

Logo, se a demanda é oriunda da relação de trabalho, mesmo figurando ente de Direito Público externo na relação processual, compete à Justiça do Trabalho a solução do conflito[2].

Frise-se que o mencionado dispositivo constitucional é regra de competência, não disciplinando a imunidade de jurisdição propriamente.

Aliás, é necessário saber o ramo do Poder Judiciário competente até mesmo para decidir a respeito de sua aplicação, ou não, em favor do ente de direito público externo.

Em outras palavras, no caso, a imunidade de jurisdição surge como questão posterior à definição da competência.

Portanto, se o conflito decorre da relação de trabalho mantida com o ente de Direito Internacional Público, a ação deve ser ajuizada perante a Justiça do Trabalho, competindo, na solução da controvérsia, decidir, entre outras matérias, a respeito da imunidade de jurisdição.

Essa conclusão não é alterada pelos artigos 109, incisos II e III, e 105, inciso II, alínea c, da Constituição Federal de 1988, pois esses dispositivos estabelecem regras genéricas, enquanto o atual artigo 114, inciso I, é norma especial, que afasta a aplicação daqueles para as situações específicas das ações oriundas da relação de trabalho.

A jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal Federal, tem entendido que a imunidade de jurisdição não se aplica em questões trabalhistas, ao menos no processo (ou fase) de conhecimento, acompanhando a evolução da legislação estrangeira e da doutrina[3].

Nesse sentido, destaca-se o seguinte julgado:

“Imunidade de jurisdição. Reclamação trabalhista. Litígio entre Estado estrangeiro e empregado brasileiro. Evolução do tema na doutrina, na legislação comparada e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal: da imunidade jurisdicional absoluta à imunidade jurisdicional meramente relativa. Recurso extraordinário não conhecido. Os Estados estrangeiros não dispõem de imunidade de jurisdição, perante o poder judiciário brasileiro, nas causas de natureza trabalhista, pois essa prerrogativa de direito internacional público tem caráter meramente relativo. O Estado estrangeiro não dispõe de imunidade de jurisdição, perante órgãos do Poder Judiciário brasileiro, quando se tratar de causa de natureza trabalhista. Doutrina. Precedentes do STF (RTJ 133/159 e RTJ 161/643-644). Privilégios diplomáticos não podem ser invocados, em processos trabalhistas, para coonestar o enriquecimento sem causa de Estados estrangeiros, em inaceitável detrimento de trabalhadores residentes em território brasileiro, sob pena de essa prática consagrar censurável desvio ético-jurídico, incompatível com o princípio da boa-fé e inconciliável com os grandes postulados do direito internacional. O privilégio resultante da imunidade de execução não inibe a justiça brasileira de exercer jurisdição nos processos de conhecimento instaurados contra estados estrangeiros. A imunidade de jurisdição, de um lado, e a imunidade de execução, de outro, constituem categorias autônomas, juridicamente inconfundíveis, pois – ainda que guardem estreitas relações entre si – traduzem realidades independentes e distintas, assim reconhecidas quer no plano conceitual, quer, ainda, no âmbito de desenvolvimento das próprias relações internacionais. A eventual impossibilidade jurídica de ulterior realização prática do título judicial condenatório, em decorrência da prerrogativa da imunidade de execução, não se revela suficiente para obstar, por si só, a instauração, perante Tribunais brasileiros, de processos de conhecimento contra Estados estrangeiros, notadamente quando se tratar de litígio de natureza trabalhista. Doutrina. Precedentes.” (STF, 2ª T., AgReg RE 222.368-4/PE, Rel. Min. Celso Mello, j. 30.4.2002).

A imunidade de execução do Estado estrangeiro ou de organismo internacional, por seu turno, alcança apenas os bens afetos à representação diplomática ou consular.

Dessa forma, segundo ressalta Sergio Pinto Martins, a “imunidade de execução pode deixar de ser aplicada caso existam bens em território brasileiro que não tenham vinculação com as atividades essenciais do ente de direito público externo”[4].

É relevante salientar, no entanto, a existência de posicionamento diferenciado, especificamente quanto às organizações internacionais, constituídas por meio de tratados, quando ratificados pelo Brasil e, com isso, inseridos no ordenamento jurídico nacional.

Nesses casos, como os tratados normalmente preveem a imunidade de jurisdição, em sentido amplo, da organização internacional, inclusive quanto à esfera trabalhista, há entendimento de que assim deve ser observado, por se tratar de previsão normativa expressa.

A respeito do tema, a Orientação Jurisprudencial 416 da SBDI-1 do Tribunal Superior do Trabalho dispõe da seguinte forma:

“Imunidade de jurisdição. Organização ou organismo internacional. As organizações ou organismos internacionais gozam de imunidade absoluta de jurisdição quando amparados por norma internacional incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro, não se lhes aplicando a regra do Direito Consuetudinário relativa à natureza dos atos praticados. Excepcionalmente, prevalecerá a jurisdição brasileira na hipótese de renúncia expressa à cláusula de imunidade jurisdicional”.

Como se pode notar, apesar dessa importante diferenciação, a presença do ente de Direito Público externo, como parte na relação de trabalho, não altera a competência da Justiça Laboral, ainda que seja para decidir, preliminarmente, sobre a existência de imunidade de jurisdição[5].


[1] Cf. ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, Geraldo Eulálio do Nascimento e. Manual de direito internacional público. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 117.

[2] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito processual do trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 170-172.

[3] Cf. REZEK, José Francisco. Direito internacional público: curso elementar. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1995. p. 178-180.

[4] MARTINS, Sergio Pinto. Direito processual do trabalho. 30. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 102.

[5] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Competência da Justiça do Trabalho. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 185-189.

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    é doutor e livre-docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, especialista e pós-doutor em Direito pela Universidad de Sevilla. Atua como professor universitário, advogado e consultor jurídico. Foi juiz do Trabalho das 2ª, 8ª e 24ª Regiões, procurador do Trabalho do Ministério Público da União e auditor fiscal do Trabalho.

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