Observatório Constitucional

O controle judicial de constitucionalidade na obra do americano John Hart Ely

Autor

  • Sérgio Antônio Ferreira Victor

    é advogado doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP) professor de Direito da Uninove e do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

7 de junho de 2014, 8h00

Democracia e Desconfiança é o título do livro escrito por John Hart Ely que suscitou inúmeros debates a partir da década de 1980. A abordagem de Ely é extremamente clara e objetiva. Ele afirma, na primeira página deDemocracy and Distrust, que durante muito tempo a teoria constitucional vem sendo dominada por uma falsa dicotomia, que coloca, de um lado, o “interpretacionismo” (interpretivism) e de outro o “não interpretacionismo”[1] (noninterpretivism)[2].

A intenção do autor é, então, a de escapar dessa armadilha imposta pela dicotomia mencionada acima, uma vez que, em sua avaliação, ambas as correntes são igualmente insuficientes para fundamentar uma prática adequada do controle judicial de constitucionalidade das leis. Assim, Ely começa tentando demonstrar as falhas das correntes mencionadas.

Inicia por atacar o interpretacionismo, que teria um poder de sedução relevante, na medida em que cria uma falsa ilusão de atrelamento estrito ao texto constitucional. Essa corrente positivista acredita poder extrair do texto e da história legislativa significados claros aos quais se deve ser fiel na aplicação do Direito. A partir disso é que Ely refere-se à ilusão de que o interpretacionismo estaria a dizer o que é o direito e como ele deve funcionar[3].

A vantagem do interpretacionismo, segundo o autor, estaria ligada apenas ao fato de que juízes firmemente convictos de que essa postura interpretativa é a correta devem utilizá-la para não intervir nos casos em que o texto da Constituição não trata expressamente da matéria. Ely conclui, por exemplo, que o Justice Hugo Black[4], cuja postura era extremamente rigorosa quanto à necessidade de atrelamento do julgador ao texto da norma, jamais aderiria à maioria no caso Roe v. Wade (no qual a Suprema Corte autorizou o aborto sob algumas condições, depois de travar um debate entre o direito à vida do feto e os direitos à intimidade e à privacidade da mulher), sob o fundamento de que o texto da Constituição não aborda diretamente o tema e, portanto, não se teria uma questão constitucional em debate.

A vantagem do interpretacionismo estaria em evitar o debate sobre temas não previstos expressamente no texto da Constituição. Nesse sentido, ele poderia gerar uma maior previsibilidade acerca do que a Suprema Corte estaria apta ou disposta a discutir. Admitido, no entanto, o caso como veiculador de uma questão constitucional, Ely posiciona-se no sentido de que o interpretacionismo não mais apresentaria quaisquer vantagens sobre outras posturas, visto que a linguagem utilizada nos textos constitucionais tende a ser obscura, ambígua, assim como os resultados de estudos sobre a história legislativa, de modo que as interpretações nunca serão planas e sempre haverá a possibilidade de debates e de discordância[5].

Outra sedução do interpretacionismo estaria relacionada à sua comparação com a corrente contrária, a qual enfrentaria maiores dificuldades para se reconciliar com a aspiração democrática da maioria dos países ocidentais. Isso porque o não-interpretacionismo, ligado à ideia de direito natural, e que, portanto, pode ser descoberto pelo intérprete, seria menos deferente ao direito legislado, a partir do trabalho dos representantes eleitos.

O não interpretacionismo é ainda mais veemente rechaçado por Ely. Segundo ele, o problema do interpretacionismo está no fato de haver grande ambiguidade na linguagem da Constituição — o que se pode chamar de textura aberta de vários dispositivos constitucionais —, de maneira que o intérprete é convidado a preencher o texto com significados que deve buscar na história legislativa e no próprio sistema jurídico, o que acabaria por derrubar a pretensão de fidelidade ao texto constitucional almejada pelos interpretacionistas. Mas, no caso do não-interpretacionismo, o problema seria ainda mais grave.

O autor afirma que essas cláusulas constitucionais vagas convidam o intérprete a ir além do sentido literal do texto, uma vez que sem esse acréscimo de sentido inserido pelo intérprete elas pouco informam. O problema residiria no fato de o intérprete não interpretacionista recorrer a valores outros que não aqueles extraíveis do texto[6]. Tais seriam os valores do próprio juiz, da razão comum, do direito natural, da tradição, entre outros. A violação ao princípio do autogoverno ficaria evidente diante de posturas assim, visto que elas acarretariam a substituição do governo por meio de decisões adotadas no Parlamento — órgão de representação popular — por um governo levado a cabo por meio de concepções adotadas pelos juízes — politicamente irresponsáveis (unaccountable) — em suas decisões[7].

Insatisfeito com ambas as correntes, Ely propõe uma alternativa intermediária. Ele quer escapar da armadilha criada pela dicotomia explicada acima, segundo a qual o Judiciário deve preencher o texto constitucional, que é vago e ambíguo, com valores, sejam eles retirados da Constituição ou da história legislativa, sejam eles do próprio juiz, da razão ou do direito natural. A proposta de Ely é no sentido de que a Suprema Corte não deve impor seus valores (seja lá quais forem) às cláusulas constitucionais de textura aberta, mas apenas atuar em uma margem mínima de ação corretiva. Assim, a Corte não deveria, segundo afirma, agir como um impedimento elitista aos supostos excessos substantivos cometidos pelos órgãos representativos politicamente responsáveis, senão apenas atuar com a finalidade de aperfeiçoar o processo de tomada de decisões democráticas pelos órgãos competentes para tanto[8].

A legitimidade da atuação do Judiciário estaria vinculada à identificação de falhas no mercado político, o que ele aproxima de uma função antitruste, no sentido regulatório-econômico. Significa dizer que os tribunais, em especial a Suprema Corte, não devem atuar para ditar resultados substantivos, mas somente agir quando o mercado — nesse caso o mercado político — estiver funcionando mal[9].

A inspiração para propor essa alternativa teria vindo da nota de rodapé 3, constante da decisão da Suprema Corte no caso United States v. Carolene Products Co., de 1938. O caso debatia a constitucionalidade de uma lei que proibia o transporte de leite com óleo vegetal[10] e, no mais famoso rodapé da história das decisões da Suprema Corte, restou consignado que é dever do Poder Judiciário aplicar as regras expressas e específicas do texto constitucional (i); intervir no processo político quando se fizer necessário, para a proteção do funcionamento regular do sistema democrático (ii); e para averiguar o adequado tratamento dispensado pelas maiorias às minoriasinsulares e discretas (insular and discrete minorities) (iii).A preocupação do autor, que coincide com a preocupação manifestada pela Corte presidida por Earl Warren — cujo debatido ativismo é caracterizado como sui generis, pois visava ampliar a participação e o acesso geral aos benefícios gerados pelo processo representativo — era concernente à inclusão dessas minorias insulares, sistematicamente excluídas dos processos decisórios nas vias de expressão e canalização das discussões dos projetos coletivos. A proposta de Ely, sintetizada por Conrado Hübner Mendes, seria no seguinte sentido:

A corte deve fiscalizar a participação e combater eventuais discriminações. O fato de não ser eleita facilitaria essa atividade. Deve ser proterora de direitos civis e políticos inerentes à competição, ao funcionamento e à manutençao dos processos decisórios: liberdade de expressão, de reunião, de associação partidária, o direito de voto. Monitora a equidade procedimental. Preocupa-se em dar voz a setores marginalizados da sociedade.
 
A corte, nessa corrente, não pode imiscuir-se nas escolhas democráticas, nas grandes decisões do “povo”. Precisa somente garantir que o jogo de interesses seja disputado sob bases igualitárias. Extrapolar essa função e adentrar no domínio dos juízos morais substantivos da democracia equivaleria a um “regime de guardiões” [referência a noção difundida por Robert Dahl em Democracy and Its Critics, 1991], por meio do qual o “povo” é privado de governar a si mesmo e se infantiliza ao ter que se subordinar a uma elite que, supostamente, teria mais capacidade para fazer as escolhas por ele[11]. (destaquei)

Nota-se, portanto, que Ely procura evitar os equívocos que enxerga em Alexander Bickel e outros autores e propor uma teoria do controle judicial de constitucionalidade garantidora e otimizadora dos procedimentos democráticos. Propõe a intervenção da Suprema Corte somente quando direitos inerentes à participação política estiverem em risco, buscando impedir que a Corte adentre o campo dos juízos morais substantivos, conforme defendido por Dworkin.

A objeção de Dworkin à teoria apresentada por Ely centra-se na arbitrariedade que significaria pinçar no texto constitucional os direitos merecedores de proteção pela Suprema Corte (seriam aqueles relacionados à participação política), possivelmente em detrimento de tantos outros. A crítica de Dworkin é importante para estudiosos da obra de Ely no Brasil, uma vez que a Constituição Federal de 1988 é extremamente analítica. Assim, estudar a teoria do controle judicial de constitucionalidade apresentada em Democracy and distrust pode revelar-se experiência bastante proveitosa para os juristas brasileiros, sobretudo no momento em que o Supremo Tribunal Federal está examinando a proibição do financiamento de campanhas eleitorais por empresas, a alteração da proporcionalidade da representação na Câmara dos Deputados, além de temas relativos à possibilidade de criação de novos partidos no curso da legislatura com a consequente distribuição do tempo de rádio e televisão.


[1] Utilizarei os termos “interpretacionismo” e “não-interpretacionismo”, permitindo-me o neologismo, em homenagem à fidelidade às ideias exposta por Ely.
[2] ELY, John Hart. Democracy and distrust: A theory of judicial review. Cambridge and London: Harvard University Press, 1980, p. 1.
[3] ELY, John Hart. Democracy and distrust: A theory of judicial review. Cambridge and London: Harvard University Press, 1980, p. 1-9.
[4] ELY, John Hart. Democracy and distrust: a theory of judicial review. Cambridge and London: Harvard University Press, 1980, p. 2-3. Ely afirma que “(…)Black is recognized, correctly, as the quintessencial interpretivist (…) with its obviously oversatted faith that the language of the Constitution would show the way, there lay a fully elaborated (though surely debatable) theory of the limits of legitimate judicial discretion and the hortatory use of principle”.
[5] ELY, John Hart. Democracy and distrust: A theory of judicial review. Cambridge and London: Harvard University Press, 1980, p. 186, nota de rodapé 10.
[6] ZURN, Christopher. Deliberative Democracy and Constitutional Review. In: Law and Philosophy, 21, 2002, p. 467-542, p. 481. O autor revela que (…) all of the candidate for discovering extra-textual fundamental values that might guide adjudication result, in the end, in judges applying substantive criteria to the outcomes of legislative processes (…) supposed to be the well-spring of the substantive values embedded in legal norms”.
[7] ELY, John Hart. Democracy and distrust: a theory of judicial review. Cambridge and London: Harvard University Press, 1980, p. 43-72.
[8] ELY, John Hart. The Apparent Inevitability of Mixed Government. In:Constitutional Commentary. June, 1999, p. 290.
[9] ELY, John Hart. Toward a Representation-Reinforcing Mode of Judicial Review, Maryland Law Review, V. 37, 1977, p. 488.
[10] POLI, Vinicius José. Controle de constitucionalidade: das teorias da última palavra às teorias do diálogo. Dissertação de mestrado. São Paulo: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, p. 88.
[11] MENDES, Conrado H.. Direitos Fundamentais, Separação de Poderes e Deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 71-72.

 

Autores

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    é doutor em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, professor de Direito do Centro Universitário de Brasília e do Instituto Brasiliense de Direito Público, membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional e assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal.

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