Direito Comparado

Direito a ser deixado em paz, a ser esquecido e de apagar dados

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

4 de junho de 2014, 8h02

Spacca
Uma história que circula em rodas sociais dá conta de um homem que conheceu uma mulher em um site de relacionamentos e convidou-a para um jantar romântico. Em princípio, eles só conheciam os prenomes, os números de celulares e os emails de cada um. O encontro romântico correu muito bem e ambos saíram com a certeza de que a relação teria tudo para dar certo. Os dados pessoais de ambos foram revelados: ele era um importante advogado e ela uma executiva de uma multinacional. No dia seguinte, ela foi ao Google, digitou o nome completo de seu par romântico e tomou um susto ao saber que ele aparecera em várias reportagens, na condição de investigado em um inquérito civil público e réu em uma ação civil do Ministério Público Federal. O caso era de quatro anos antes e nada dizia sobre a posterior exclusão do advogado da relação processual.

Com receio de haver-se envolvido com um perigoso malfeitor, um representante da alta delinquência, um bandido do colarinho branco, ela não mais atendeu aos insistentes telefonemas dele e deixou de responder os vários emails do advogado, ex-futuro marido da romântica executiva. Ele passara os últimos dias em profunda depressão, sem compreender as razões de tanta hostilidade da mulher. Chegara a lhe escrever para implorar que dissesse o que ele havia feito de errado em tão pouco tempo. Depois de vários dias de insistência, ela respondeu com um lacônico email, no qual colara diversos enlaces de páginas do Google, com as notícias sobre o passado pouco recomendável do advogado. Ele compreendeu tudo. Não era a primeira vez que isso lhe acontecia. O advogado havia desistido de explicar a situação, de esclarecer que as investigações não tiveram consequência e que tudo não passara de mais um caso de “excesso de zelo” dos agentes do Ministério Público.

Duas semanas depois, a executiva participou de uma reunião da diretoria, na qual seria apresentado um relatório aos novos advogados da empresa sobre as acusações do Ministério Público em uma ação civil pública movida contra a empresa por desrespeito à legislação ambiental em várias fazendas no Pará. Qual não foi a surpresa daquela mulher tão romântica, mas desiludida com as relações amorosas, ao ser apresentada na reunião ao advogado com quem tivera aquele incrível jantar. Era ele o novo advogado da empresa naquele rumoroso caso de crime ambiental. Com a sinceridade dos loucos, dos bêbados, das crianças e dos apaixonados, ela imediatamente perguntou: “Mas, como o contrataram? O Google diz que ele é réu em ação civil pública e é investigado pelo Ministério Público”. O diretor jurídico, com enorme frieza e algum sarcasmo, respondeu ao tenso questionamento de sua colega: “Ele foi selecionado porque é um grande profissional na área. Mas, só bati o martelo após pesquisar seu nome no Google. Ele não é um inexperiente advogado ou ingênuo teórico. Ele conhece a vida como ela é. Até viveu na pele o que é ser acusado pelo Ministério Público. É desse tipo de gente de que precisamos”.

Profundamente constrangido, o advogado olhou para a mulher e para o diretor jurídico e disse, à moda shakespeareana: “Assim é, se assim lhe parece”.

O namoro não foi adiante e a contratação ocorreu. Ambos os fatos tiveram causas absolutamente equívocas.

Direito a ser esquecido
Sobre essa história, pode-se dizer que não é verdadeira, é bem contada. Real ou fruto de engenhosa criatividade, isso não importa. É relevante apenas o que a história (ou estória) põe em evidência: a questão dos direitos (1) a ser deixado em paz (right to be alone), (2) a ser esquecido (right to be forgotten) e a (3) apagar dados pessoais (right to erasure).

Esses três direitos são, muita vez, tratados como sinônimos e não se dá a necessária saliência a suas distinções, algumas delas muito sutis.

(1) Right to be alone. O “direito a ser deixado em paz” tem sua “certidão de nascimento” em um artigo publicado na Harvard Law Review 4-193, de dezembro de 1890, de autoria de Samuel Warren e Louis Brandeis, com o título “The Right to Privacy”.[1]

A ideia central do texto é que existe um direito de proteção às pessoas e seus bens, embora tenha havido muitas variações no âmbito e na extensão desse direito, ao longo dos anos, em decorrência de acontecimentos históricos e de câmbios políticos e sociais.

O artigo defende a existência de um right to privacy, o qual não é suficientemente protegido pelas legislações clássicas, mais voltadas para a calúnia e a difamação. Ocorre que essa proteção demanda um nível superior de intervenção, embora haja um conflito inevitável com os direitos autorais e de publicação de obras. Não haveria, ao tempo do artigo de Warren e Brandeis, um mecanismo legal de proteção preventiva contra publicações que atingissem o direito a ser deixado em paz.

Esse right to be alone compreenderia a imunidade das pessoas em face da ação de repórteres, fotógrafos ou de pessoas que usem quaisquer aparelhos modernos de gravação ou reprodução de sons e imagens.

Em conclusão, os autores admitem que o right to privacy não prevaleça sobre a necessidade de informar as pessoas sobre assuntos de interesse público. No entanto, devem ser protegidos os fatos que dizem respeito à vida privada, à autodeterminação e às relações íntimas dos indivíduos, sem qualquer conexão com o exercício de uma função pública.

O right to privacy também é preterido quando o próprio indivíduo consente com a publicação da matéria ou fornece elementos para tal fim.

É possível delimitar o right to be alone e referir a existência de um “direito a ser deixado em paz” em sentido estrito, que compreenderia a incolumidade das pessoas em face da curiosidade pública ou privada, de órgãos de imprensa, dos paparazzi, de vizinhos, colegas de trabalho.

(2) Right to be forgotten. O direito a ser esquecido, ou, em sua expressão mais vulgar, o direito ao esquecimento, já foi analisado à exaustão em colunas anteriores e sobre ele não se dedicará maior espaço aqui. Os leitores são convidados a ler os textos anteriores e também dois julgados do Superior Tribunal de Justiça, relatados pelo ministro Luís Felipe Salomão, em 2013, que constituem a referência jurisprudencial sobre o tema no Brasil.

 (3) Right to erasure. A ideia de apagar símbolos, registros, imagens, monumentos e textos históricos não é algo novo. Muitos tiranos, ditadores e revolucionários, tão logo chegaram ao poder, trataram de destruir ou recontar a história. Na Revolução de 1789, estátuas dos reis franceses, placas e monumentos do Antigo Regime foram deitados abaixo. No período soviético, a técnica de eliminação da imagem e dos registros históricos de personagens políticas caídas em desgraça pode ser observada pela comparação de fotografias anteriores e posteriores à demissão ou à execução de comissários do povo, militares e assessores políticos. O fascismo de Mussolini tentou reescrever a História com a mudança do calendário e com a eliminação de referências a determinados indivíduos.

Em todos esses exemplos, é perceptível a ação do Estado contra indivíduos ou seus registros históricos. É notável a ação vertical de um poder superior contra seus próprios súditos.

No entanto, pode-se olhar o problema sob a perspectiva dos indivíduos em face de seus próprios dados e seu tratamento pelo Estado, por suas comunidades ou por seus iguais. Na Literatura e na História, colhem-se diversos exemplos da força simbólica dos dados pessoais como instrumentos de controle, aniquilamento ou sujeição dos indivíduos. A tatuagem de Milady de Winter, a misteriosa vilã do romance Os três mosqueteiros, de Alexandre Dumas, era o registro criminal, gravado em sua pele, de sua condenação por um crime abominável. A letra escarlate, que dá título ao romance do norte-americano Nathaniel Hawthorne, representava a condição de adúltera da jovem puritana Hester Prynne, na América do século XVII. Esse símbolo, costurado nas roupas daquela mulher, tornava impossível a ela e a seus contemporâneos o esquecimento de seu pecado.

Jean Valjean, a trágica figura criada por Victor Hugo para ser a personagem principal de Os miseráveis, assistiu à destruição de sua pacata vida de empresário bem-sucedido e de respeitável burgomestre após o levantamento de seus antecedentes criminais pela sinistra — e atormentada — personagem do inspetor Javert, um dos mais belos símbolos do positivismo exegético do século XIX.

O que todas essas personagens tentaram ou desejaram fazer? Apagar esses símbolos de seus erros pretéritos, reais ou amplificados. Quem de nós não olha para as montanhas cheias de névoas, que são nossos dias já vividos, com uma ponta de dor ou uma sensação de remorso?

Até o surgimento da internet, essa preocupação com os dados pessoais restringia-se a duas importantes áreas: (a) os antecedentes criminais e (b) os registros creditícios, financeiros e econômicos. Quanto aos registros criminais, a legislação, desde o século XX, já instituiu mecanismos de restrição de acesso pelo público e de sua não utilização para quaisquer fins. É o que dispõe o artigo 748 do Código de Processo Penal. Em relação aos cadastros de restrição de crédito, a jurisprudência tratou de coibir os abusos quanto a seu emprego para constranger consumidores, o que resultou no reconhecimento de dano moral in re ipsa pela inscrição indevida do nome das pessoas nesses cadastros.[2]

Quanto à divulgação jornalística de certos fatos sobre a vida de pessoas envolvidas em atividades ilícitas ou moralmente reprováveis, seu impedimento está, como já dito, na esfera do direito a ser esquecido.

Com o surgimento da internet e o desenvolvimento dos motores de busca, que se tornaram indispensáveis à sociedade contemporânea, o dilema de Jean Valjean, Milady de Winter e Hester Prynne foi compartilhado por todos.

A grande questão relativa ao right to erasure está no clássico problema da tensão entre as liberdades comunicativas e os direitos fundamentais do artigo 5o, inciso X, da Constituição Federal. É extremamente curioso o tratamento assimétrico desse direito de apagar dados quando se coloca o problema em termos comparativos com o debate sobre as biografias e a constitucionalidade do artigo 20 do Código Civil.[3]

Não parece haver reações contrárias ao exercício do right to erasure, ao menos é o que se nota das principais matérias sobre o caso Google Espanha, celebrado como uma vitória do Davi (Mario Costeja González) contra o Golias multinacional. No entanto, o direito de apagar dados tem grande simetria com o direito de se impedir a publicação de obras ou textos biográficos. Evidentemente, há algumas diferenças. Ao menos de acordo com o teor da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, não se podem apagar dados de caráter histórico e, com ressalvas, os que se conectem ao interesse público. Mas, fatos privados, como a autodeterminação sexual de alguém, podem ser apagados ou não divulgados? O princípio é idêntico.

O Brasil deve enfrentar esse problema e é bom que o faça em termos legislativos. A nova lei do marco civil da internet fez uma opção por privilegiar as liberdades comunicativas em detrimento da proteção aos direitos fundamentais do artigo 5o, inciso X, da Constituição de 1988, como, é de ser lembrado, já o fez o Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 130. Na ação sobre as biografias, que deve ser julgada este ano no STF, o tribunal mais uma vez se pronunciará sobre o tema.[4] Quanto ao right to erasure, é crescente a judicialização e as decisões já divulgadas reconheceram o direito ao esquecimento e começam a admitir o direito de apagar dados. Esses dois caminhos, salvo uma solução intermédia, tão ao gosto brasileiro, parecem ser conflitantes.


[1] A íntegra desse histórico artigo está disponível em: http://groups.csail.mit.edu/mac/classes/6.805/articles/privacy/Privacy_brand_warr2.html. Acesso em 3-6-2014.
[2] Embora a Súmula STJ 385 declare que: “Da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento.”
[3] “Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes”.
[4] Sobre a polêmica das biografias, recomenda-se a leitura do editorial da revista Civilística.com: Revista Eletrônica de Direito Civil, ano 2, n. 2, 2013, intitulado “Biografias não autorizadas: conflito entre a liberdade de expressão e a privacidade das pessoas humanas?”, de Maria Celina Bodin de Moraes. Disponível em: http://civilistica.com/biografias-nao-autorizadas/. Acesso em 3-6-2014.

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    é advogado da União, professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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