"Double jeopardy"

Tribunais dos EUA discutem aplicação do princípio da dupla punição

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1 de junho de 2014, 9h15

Ninguém contesta, em juízo, o princípio de que uma pessoa não pode ser julgada duas vezes pela mesma infração penal. Porém, sua aplicação não é pacífica nos EUA. Vez ou outra, tribunais americanos, de diversos graus, se engajam em disputas sobre as bases nas quais se instalaria o princípio da double jeopardy (dupla punição — ou duplo julgamento).

A primeira questão, por exemplo, é se o julgamento se consumou ou não. Essa é uma questão recorrente nos tribunais. Eles têm dificuldades em entrar em acordo, em cada caso, porque há mais de um precedente na história, sempre com nuances diferentes, e cada um escolhe o que mais lhe aprouver. Se o julgamento se consumou ou não, se aplica ou não o princípio e o réu pode ou não sofrer dupla punição.

A par dessa discussão, há mais a considerar. Por exemplo, se a Promotoria precisa interromper os procedimentos, porque as circunstâncias não são boas, em que ponto do julgamento é possível fazê-lo, para que o juiz não declare “caso encerrado”. Outro ponto de discórdia: que estratégia a Promotoria deveria usar para impedir que um julgamento prossiga — se não há mais possibilidade de adiamento — para evitar a configuração do julgamento duplo.

Na última terça-feira (27/5), a Suprema Corte dos EUA anulou decisões de dois tribunais: o tribunal de recursos e o Tribunal Superior de Illinois, exatamente por causa dessas questões controversas. No caso que tramitou pelas cortes, a discussão começa pela primeira questão: se um julgamento, do qual a Promotoria desistiu por um problema circunstancial, se consumou ou não. E, em consequência, se pode ou não voltar a acusar o réu.

Nos EUA, como no Canadá e no México — diferentemente do Brasil, que adota o “ne bis in idem” — o princípio que proíbe o “duplo julgamento de um mesmo fato” é uma garantia constitucional do cidadão.

No caso em questão, as circunstâncias ficaram extremamente ruins para os promotores quando o juiz, depois de quatro anos, marcou a data do julgamento: as duas principais testemunhas, as que garantiriam o sucesso da Promotoria, desapareceram. Até então, estava tudo certo. Mas, com o desaparecimento das testemunhas na “hora H”, os promotores pediram — e conseguiram — inúmeros adiamentos do julgamento. Mas tudo tem um limite, de paciência e de custos para o tribunal.

O juiz chegou a sugerir aos promotores que pedissem a extinção do caso. A polícia não conseguia achar as testemunhas, dois ex-condenados, que, nesse caso específico, eram as vítimas do réu — Esteban Martinez, que foi acusado de agressão qualificada e uso temerário de violência contra Avery Binion and Demarco Scott.

No dia em que o juiz decidiu colocar um ponto final no caso, ele ainda deu mais 20 minutos à Promotoria para esperar pelas testemunhas, um prazo que aumentou, em seguida, para duas horas. Enfim, o juiz anunciou que iria iniciar o julgamento. Os promotores pediram para se aproximar e declararam sua estratégia: A Promotoria não iria participar do caso. E o juiz disse: “Muito bem. Vamos ver no que isso vai dar”.

Deu errado, porque a estratégia da Promotoria não funcionou. O juiz instalou o corpo de jurados no Tribunal do Júri e os fez prestar o juramento de praxe. Em seguida, solicitou aos promotores que apresentassem suas alegações iniciais. Os promotores declararam: “A Promotoria não vai participar do caso”. O juiz disse então aos promotores para chamar a primeira testemunha. Os promotores repetiram: “A Promotoria não vai participar do caso”. Aparentemente, essa seria a estratégia dos promotores: inviabilizar o julgamento e torcer para o juiz lhes conceder mais um adiamento, que, por sinal, já haviam peticionado.

Mas não deu certo. O advogado de defesa, chamado a se pronunciar, não perdeu a oportunidade de colocar um fim ao caso. Fez um pedido de decisão do juiz, não do júri (directed finds), de inocência (não culpado, nos EUA) do réu, com o consequente encerramento do caso, porque a Promotoria não tinha qualquer prova a apresentar contra seu cliente.

O juiz consultou os promotores, que repetiram: “A Promotoria não vai participar do caso”. O magistrado, então, concordou com o advogado de defesa. Declarou que, por falta de provas, o réu não era culpado e encerrou o julgamento. Os promotores recorreram ao tribunal de recursos. Pediram o reconhecimento da não consumação do julgamento. E, portanto, do direito da Promotoria de voltar a processar Martinez em um tribunal de primeiro grau.

O tribunal de recursos e o tribunal superior de Illinois decidiram que a Promotoria podia ir em frente e levar Martinez a julgamento, porque, nesse caso, a teoria do duplo julgamento não se aplicava. Isso porque, nos procedimentos anteriores, “Martinez nunca correu o risco de ser condenado”. Afinal, os promotores se abstiveram de participar do caso. Para esses tribunais, a estratégia da Promotoria foi correta.

O tribunal superior decidiu, com base em precedente, que a aplicação do princípio do duplo julgamento não pode se basear em uma “regra mecânica rígida”. A questão mais importante no caso, segundo o tribunal, é que Martinez realmente não foi julgado, porque os promotores declararam que não iriam participar do caso, antes do juramento do júri.

A Suprema Corte dos EUA discordou. Em uma decisão “per curiam” (tomada pelo tribunal como um todo, não por votos dos ministros), estabeleceu, com base em precedente, que o princípio do duplo julgamento passa a valer quando o juiz instala o júri e os jurados prestam o juramento. “E como o tribunal foi informado de que o Estado não tinha provas para sustentar a condenação, não resta dúvida de que Martinez não pode ir a um segundo julgamento, porque isso seria violar a Constituição”, diz a decisão.

Ao contrário dos tribunais anteriores, a Suprema Corte declarou, na decisão, que a estratégia da Promotoria foi incorreta. Os promotores deveriam ter aproveitado a oportunidade, criada pelo juiz, de extinguir o caso. “Se o Estado tivesse aceito o convite do juiz, a cláusula da ‘double jeopardy’ não o impediria de voltar a acusar Martinez. Em vez disso, o Estado participou na seleção dos jurados e não pediu a extinção do processo antes do juramento do júri”, diz a decisão.

Para a Suprema Corte, quando a Promotoria rejeitou a oportunidade de extinguir o caso, assumiu os riscos de entrar em um julgamento sem provas suficientes para condenar o réu. “O Estado sabia ou deveria saber que a absolvição do réu, que acabou acontecendo, barra para sempre a possibilidade de voltar a julgá-lo, porque o julgamento chegaria a um ponto em que o princípio do julgamento duplo passaria a valer”.

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