Segunda Leitura

Cultura tem papel essencial
para profissionais da área jurídica

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

1 de junho de 2014, 8h01

Spacca
O tema foi escolhido de propósito. É dedicado aos estudantes e profissionais do Direito que ainda não perderam suas ilusões. Aos que resistem ao massacrante noticiário sobre violência, manifestações a qualquer dia e hora, greves simultâneas de todas as categorias, flechada de índio na polícia e notícias de corrupção de toda ordem, culminando com a de deputado estadual que estaria  envolvido com o crime organizado e com patrimônio invejável. Os leitores merecem uma coluna menos deprimente do que as notícias da mídia impressa ou eletrônica.

 A coluna deste domingo será sobre a importância da cultura para o profissional do Direito. E terá por palco a cidade de São Paulo, onde me encontro para uma atividade acadêmica. São Paulo, a cidade que é grande em tudo, e que, se tem muitos problemas, tem também uma invejável oferta de cultura. Aproveitá-la é um privilégio de quem tem disponibilidade.

Com o guia do jornal Folha de S.Paulo, de todas as sextas-feiras, começo. E o faço pela ópera “Carmen”, de Bizet, baseada na novela de Prosper Mérimée, em exibição no Teatro Municipal.  Ópera nada mais é do que um gênero teatral que apresenta uma composição dramática, acompanhada de música instrumental e canto, com presença ou não de diálogo falado. “Carmen” tem ligação com o Direito Penal, no registro da prática de contrabando, conduta repudiada pelo Estado por razões econômicas e tributárias, mas aceita pela sociedade, que não vê no contrabandista um verdadeiro criminoso.

Melhor ainda seria a ópera “Otello”, de Giuseppe Verdi, baseada em obra de Shakespeare, onde o ciúme, alimentado pelo invejoso Yago, corrói a alma de Otello, levando-o a matar a bela Desdêmona.  Nossas varas de Família estão sempre cheias de dramas motivados pelo ciúme, Desdêmonas e Otellos modernos digladiam-se nos Tribunais. Um bom advogado de família precisa entender o ciúme, sentimento inato ao ser humano, para bem conduzir os casos que lhe são submetidos. Da mesma forma o juiz, para julgar.

No cinema, o destaque pode ficar com “Heli”, filme mexicano dirigido por Amat Escalante, premiado como melhor diretor no Festival de Cannes de 2013. Aborda realisticamente a questão do tráfico de drogas no México e toda a violência envolvida, que não poupa ninguém. Trata também da corrupção e impunidade necessárias para manter o tráfico. No Brasil a gravidade ainda não chegou a tal ponto, mas o risco é grande e o filme é um bom alerta.

O teatro não fica atrás. A obra “Ana”, de David Turner, dirigida por Márcia Mendonça, apresenta as reflexões de Ana Bolena, rainha da Inglaterra de 1533 a 1536 e segunda esposa de Henrique VIII, sobre sua condenação à morte, por acusações de adultério e bruxaria. As intrigas palacianas, ontem e hoje, lá como cá, desembocam muitas vezes na Justiça. Destaca-se, ainda, “Quanto custa”, de Bertolt Brecht, que envolve assassinatos, traições, contratos e interesses comerciais escusos. São caminhos, por vezes, semelhantes às ligações econômicas no Brasil.

“Maldito Benefício”, no Teatro Leonardo Cortez, mostra os dramas de um aposentado que recebe um benefício previdenciário que poderá solucionar os problemas financeiros de um filho. Uma doença mortal impede-o de ter acesso ao dinheiro e daí surgem disputas moralmente reprováveis, que são conhecidas daqueles que militam nas varas e juizados especiais previdenciários.

Música também é cultura. O espetáculo “Bibi, histórias e canções”,  no Teatro Shopping Frei Caneca, retrata 7 décadas de música da melhor qualidade, na  interpretação de Bibi Ferreira. Chitãozinho e Chororó, no Sheraton São Paulo Hotel,  levam ao público a música sertaneja, com os anseios e os dramas vividos pela população interiorana. Guilherme Arantes, no Terra da Garoa, não deixará de cantar o clássico “Planeta Água”, música com forte proximidade ao Direito Ambiental, reforçada nestes tempos de represas secas e ameaças de racionamento.  Cada um no seu estilo, todos representam e são importantes para a cultura popular brasileira.

Museus são fonte de conhecimento. No Museu de Arte Moderna (MAM), a exposição “Poder Provisório” narra, através de fotografias, os momentos marcantes da ditadura militar até as manifestações populares ocorridas em 2013. O que pretende a mostra é levar à reflexão sobre o poder. O Museu da Imigração, em prédio de 1887 de nome Hospedaria do Brás, transmite aos descendentes de italianos, japoneses, alemães, poloneses e tantos outros povos que contribuem para o engrandecimento deste país, o caminho percorrido e as dificuldades passadas por seus ascendentes. Em junho e julho a entrada é gratuita.

Espaços culturais também são destaque. Em tempos de movimentos pela liberalização da maconha, a mostra “A história da cannabis: uma planta proibida”, na Matilha Cultural, propõe uma reflexão sobre o tema sob aspectos variados, como a medicina e a economia, abastecendo o profissional do Direito para discussões teóricas e práticas.

Comida é cultura e faz parte do Direito. Nossa Constituição protege o patrimônio cultural imaterial e nele se incluem os pratos típicos do Brasil. O acarajé da Bahia foi um dos primeiros a ter reconhecida tal condição. Restaurantes não faltam em São Paulo e um bom exemplo é o “Brasil a Gosto”, que tem receitas de todo o país. O Bar Brahma, com a mais genuína música brasileira e na esquina imortalizada na música “Ronda”, de Enzo de Almeida Passos, Ipiranga com São João, também é representativo.

Juiz, promotor, policial, advogado ou outra profissão jurídica qualquer, um bom profissional não pode prescindir de uma boa cultura geral. Não entenderá os dramas da humanidade, que acabam desfilando nos tribunais, se não tiver noções dos fenômenos ocorridos em outras épocas ou em outros países. Por exemplo, não entenderá o que pretendem os membros do black bloc, se não souber o que é anarquismo.

Tudo isto sem falar na boa ou má impressão que alguém pode causar, dependendo de seus conhecimentos. Imagine-se um jovem professor de Direito, encarregado de ciceronear um professor italiano que fará palestra em sua universidade. Se não tiver um leque de assuntos para tornar aqueles momentos agradáveis, se seu tema ficar confinado ao frio da estação ou sobre o excesso de veículos no trânsito de sua cidade, certamente sua amizade não irá além daquele dia. E ele perderá uma boa oportunidade de ter um ilustre amigo no exterior.

Depois de tudo que foi dito, alguém poderá afirmar: “mas eu moro longe, não tenho acesso a isso tudo”.  A resposta não me convence. Primeiro, porque muitas capitais e grandes cidades brasileiras possuem uma rica vida cultural. Já vi excelentes espetáculos no Rio, Curitiba, Porto Alegre, Recife,  São Luis, Santos e outras tantas. Segundo, porque, perto de uma pequena cidade, sempre há uma média onde tem algo de bom. Na cidade de Umuarama (PR), em 1970, assisti a Agnaldo Timóteo, com seu vozeirão sonoro. Em pequenas cidades onde vivi, não perdi oportunidades de assistir a manifestações folclóricas, como a “Festa do Divino”, danças como “Moçambique” e “Cateretê” e cantores em circos. No Rio Grande do Sul assisti a grandes espetáculos de música, legítima expressão da cultura gaúcha. Além disso tudo, atualmente a internet também possibilita cinema e espetáculos fantásticos. Em suma, é mais uma questão de querer do que de poder.

Por isso tudo, aos jovens que alimentam sonhos de crescimento, àqueles e àquelas que perdem dias e noites em cursos de pós-graduação, que, mesmo calejados pelos anos, persistem em querer apenas bem exercer sua profissão,  que, em suma, não abrem mão de seus sonhos, fica o registro: procurem o crescimento como pessoas, com uma rica cultura geral. Evidentemente, além da cultura jurídica.

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