Limite Penal

Direito à duração razoável do processo
tem sido ignorado no país

Autor

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

25 de julho de 2014, 8h00

Na coluna passada, Alexandre Morais da Rosa escreveu um excelente trabalho intitulado Duração razoável do processo sem contrapartida é como promessa de amor, que nos serviu de inspiração. O tema é um velho conhecido, desde 2004, quando dedicamos um capítulo a ele na obra Introdução Crítica ao Processo Penal e, posteriormente quando escrevi, em coautoria com Gustavo Henrique Badaró, a obra Direito ao Processo Penal no Prazo Razoável, em 2006. Atualmente trato do tema no capitulo V do livro Direito Processual Penal (11ª edição, Saraiva, 2014).

Mas é uma questão em aberto, principalmente porque o Brasil adotou a teoria do não prazo. Ou seja, existem muitos prazos no Código de Processo Penal, mas completamente despidos de sanção processual, o que equivale a não ter prazo algum…

Também é importante compreender que as pessoas têm o direito a razoável duração do processo estando presas (neste caso a demora é ainda mais grave) ou soltas (pois o processo é uma pena em si mesmo); sendo absolvidas ou condenadas ao final (a condenação não legitima a demora, sob pena de os fins justificarem a barbárie dos meios…). No Brasil, infelizmente, a visão sempre foi muito reducionista, falando-se apenas em excesso de prazo na prisão cautelar. O direito fundamental do artigo 5º, LXXVIII da Constituição é muito mais amplo e abrangente do que isso.

A jurisprudência engatinha, tímida e sem rumo, neste tema. Por isso, resolvemos retomar a discussão partindo de um acórdão bem interessante:

PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. BLOQUEIO DE CONTAS DETERMINADO HÁ 13 ANOS. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE DO PROCESSO. ART. 5º, LXXVIII, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. Bloqueio dos valores depositados, a qualquer título, nas contas bancárias de que é titular o paciente, determinado, em 1998. 2. Denúncia ofertada três anos depois, em 2001, sendo recebida neste mesmo ano. TREZE anos, o paciente tem os valores das suas contas bancárias bloqueadas! O processo ainda está fase das alegações finais. Não se sabe sequer qual o possível prejuízo causado pelo paciente. 3. O inciso LXXVIII do art. 5º, da Constituição Federal ("a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação"), princípio constitucional da razoabilidade do processo, impede que o acusado fique sob esta condição indefinidamente, aguardando que o feito tenha marcha processual normal. 4. O transcurso do tempo causado pela exagerada duração do processo contribui para disseminar um sentimento de injustiça e de incerteza na sociedade e gera para o acusado um grande transtorno, constituindo-se, por si só, punição. 5. O direito fundamental à razoável duração do processo é um direito constitucional e próprio do Estado Democrático de Direito. (TRF 1.ª R. – 3.ª T. – HC 0069549-49.2011.4.01.0000 – rel. Tourinho Neto – j. 13.12.2011 – public. 19.12.2011).

Sem dúvida um caso bastante preocupante: uma medida cautelar de bloqueio de contas bancárias que perdura há 13 anos. E, mais grave ainda, um processo criminal que se arrasta por 13 anos sem sentença. Tomarei esse case como pano de fundo da conversa.

O direito juridiciza o tempo e, por outro lado, o tempo, temporaliza o Direito. É uma íntima relação e interação em que o tempo é elemento constitutivo do nascimento, desenvolvimento e conclusão do processo, mas também influi na gravidade com que serão aplicadas as penas processuais, potencializadas pela (de)mora jurisdicional injustificada.

A concepção de poder passa pela temporalidade, onde o verdadeiro detentor do poder é aquele que está em condições de impor aos demais o seu ritmo, a sua dinâmica, a sua própria temporalidade. O Direito Penal e o Processo Penal já tomaram, ao longo da história, o corpo e a vida, os bens e a dignidade do homem. Agora, não havendo mais nada a retirar, apossa-se do tempo.

Quando a duração de um processo supera o limite da duração razoável, o processo em si mesmo se transforma numa pena. Basta fazermos um exercício imaginético e nos identificarmos (ficar-idem) com alguém que, além de estar sofrendo a pena processual (la pena de banquillo, como chamam os espanhóis) por ser réu há mais de 13 anos, teve suas contas bancárias bloqueadas durante todo esse tempo.

O caráter punitivo está calcado no tempo de submissão ao constrangimento estatal, e não apenas na questão espacial de estar (preso) intramuros. Messuti [1] afirma que não é apenas a separação física que define a prisão, pois os muros não marcam apenas a ruptura no espaço, senão também uma ruptura do tempo. A marca essencial da pena (em sentido amplo) é “por quanto tempo”? Isso porque o tempo, mais que o espaço, é o verdadeiro significante da pena. Infelizmente, nem mesmo uma sentença absolutória é capaz de devolver-lhe o tempo indevidamente apropriado, pois a flecha do tempo é irreversível.

Utilizamos a expressão (de)mora jurisdicional porque ela nos remete ao próprio conceito (em sentido amplo) de ‘mora’, na medida em que existe uma injustificada procrastinação do dever de adimplemento da obrigação de prestação jurisdicional, que é agravada em caso de imposição de medidas cautelares pessoais ou patrimoniais.

O artigo 5º, LXXVIII da CF infelizmente insiste na “doutrina do não prazo”, pois o CPP estabelece prazos, mas despidos de sanção. Ou seja: prazo-sanção=ineficácia. Em matéria cautelar (pessoal ou real) a situação é ainda mais grave: não existe qualquer definição de prazo máximo de duração, permitindo assim o bloqueio de uma conta bancária por 13 anos.

O ideal seria a clara fixação da duração máxima do processo e das medidas cautelares, impondo uma sanção em caso de descumprimento (extinção do processo ou liberdade automática do imputado). É necessário que o ordenamento jurídico interno defina limites ordinários para os processos, um referencial do que seja a “dilação devida”. Mas não foi essa a opção do legislador brasileiro, cabendo a análise da demora processual ser feita à luz dos três critérios consagrados pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) desde o caso Wemhoff (de 27 de junho de 1968): complexidade do caso, atuação dos órgãos do Estado e atuação do interessado; acrescidos do princípio da razoabilidade como elemento integrador.

Mas o resultado final, ainda assim, é excessivamente vago e discricionário, comprometendo a eficácia do direito fundamental, na medida em que conduz ao emprego de uma cláusula genérica (razoável duração), de conteúdo vago, impreciso e indeterminado.

Pastor[2] critica o entendimento dominante do não prazo, pois se, inteligentemente, não confiamos nos juízes a ponto de delegar-lhes o poder de determinar o conteúdo das condutas puníveis, nem o tipo de pena a aplicar, ou sua duração sem limites mínimos e máximos, nem as regras de natureza procedimental, não há motivo algum para confiar a eles a determinação do prazo máximo razoável de duração do processo penal, na medida em que o processo penal em si mesmo constitui um exercício de poder estatal, e, igual à pena, às buscas domiciliares, à interceptação das comunicações e todas as demais formas de intervenção do Estado, deve estar metajudicialmente regulado, com precisão e detalhe.

Deveria o legislador estabelecer de forma clara os limites temporais das medidas cautelares (e do processo penal, como um todo), bem como consagrar expressamente um “dever de revisar periodicamente” a medida adotada (inserido no PL 4208/2001 e vetado na Lei 12.403/2011).

É inadmissível continuarmos sem saber quanto tempo pode durar uma prisão preventiva! Tampouco resolve o problema fixar que o procedimento sumário deve encerrar em 30 dias, o ordinário em 60 dias e a primeira fase do júri em 90 dias se não temos uma sanção processual. São prazos absolutamente ineficázes e que se equiparam a ‘não ter prazo algum’.

Tampouco podemos admitir o já surrado discurso do excesso de trabalho para justificar uma longa demora, pois como bem decidiu o TEDH no caso “Bucholz”, é inadmissível transformar em “devido” o “indevido” funcionamento da justiça. Como afirma o TEDH, “o que não pode acontecer é que o normal seja o funcionamento anormal da Justiça, pois os Estados devem procurar os recursos necessários para que os processos transcorram em um tempo razoável”.

Portanto, acertada a decisão anteriormente citada, pois violado o direito de ser julgado em um prazo razoável, não só pela abusiva duração do bloqueio da conta bancária, mas também pela excessiva duração deste processo.

Mas a pergunta é: poderíamos fixar um prazo máximo de duração do processo? Sim, devemos e, principalmente, adotar uma sanção processual. Temos conhecimento de boas pesquisas de campo levadas a cabo nas justiças estadual e federal que sinalizam três anos como sendo um prazo realístico (e razoável) entre o recebimento da denúncia e a sentença de primeiro grau. Muitos processos acabam em menos tempo e outros poucos demoram mais (a patologia sempre existirá), mas o prazo médio gira em torno de 24 a 28 meses (logo, menos de três anos).

Não sem razão, o CPP do Paraguai, no seu artigo 136, determina que “toda pessoa terá direito a uma resolução judicial definitiva em um prazo razoável. Portanto, todo procedimento terá uma duração máxima de quatro anos, contados a partir do primeiro ato do procedimento. Este prazo só poderá ser prorrogado por mais seis meses se houver uma sentença condenatória, para permitir a tramitação dos recursos.” Eis um exemplo bastante interessante de prazo máximo com sanção, pois o artigo 137 determina que “vencido o prazo previsto no artigo anterior, o juiz ou o tribunal, de ofício ou a requerimento da parte, declarará extinta a ação penal, conforme as disposições deste código.”

E em relação a prisão preventiva? Obviamente deveríamos ter um prazo máximo de duração, como a maioria dos países tem, com a determinação de soltura uma vez superado. Na reforma das cautelares, havia essa previsão no PL 4.208/2001, infelizmente vetado pela Lei 12.403/2011.

Mas já que não temos um prazo máximo de duração do processo fixado em lei, temos de recorrer aos seguintes critérios (definidos, inclusive, na condenação do Brasil no caso Ximenes Lopes):

— complexidade do caso;
— atuação do Estado (seus órgãos);
— atuação processual dos interessados;
— princípio da razoabilidade como elemento integrador.

Não é o ideal, dada a abertura e a dependência de reconhecimento judicial, mas infelizmente é o que temos. E, uma vez reconhecida a (de)mora jurisdicional, o que pode ocorrer? É a busca pelas soluções compensatórias, como define Daniel Pastor:

Soluções compensatórias: poderá ser de natureza civil (indenização danos materiais e/ou morais) ou penal (atenuação da pena pela aplicação do artigo 66 do CP ou mesmo o perdão judicial quando previsto). No primeiro caso há um imensa resistência dos tribunais em reconhecer esse tipo de indenização, sem falar na banalização da dor alheia (pois são ridículos os valores fixados a título de dano moral no Brasil), não raras vezes invocando o surrado “enriquecimento sem causa”(!). Na esfera penal, também há bastante timidez, sem falar na ínfima redução que atenuante opera em relação à pena.

Soluções Processuais: a melhor solução seria a extinção do feito ou mesmo a dispensabilidade da pena, mas não existe previsão legal no Brasil. É aqui que pensamos haver a maior lacuna e onde deveríamos investir em próximas reformas processuais. A adoção de soluções processuais é o ponto nevrálgico da eficácia do direito a um processo sem dilações indevidas.

Soluções sancionatórias: não é propriamente uma ‘solução’, mas a punição do agente público responsável pela demora. O artigo 93, II, “e” da Constituição prevê algo similar, ao determinar que não será promovido o juiz que injustificadamente retiver autos em seu poder além do prazo legal.

Enfim, o direito a razoável duração do processo penal é um capítulo a ser escrito no processo penal brasileiro e que deveria merecer muito mais atenção por parte das comissões de reforma do CPP, o que, infelizmente, não tem ocorrido. Precisamos definir claramente o prazo máximo de duração das prisões cautelares e também do próprio processo penal.

Por fim, para compreender a verdadeira pena processual que encerra a demora indevida, recordemos de Einstein, na clássica explicação que deu sobre a relatividade à sua empregada: “quando um homem se senta ao lado de uma moça bonita, durante uma hora, tem a impressão de que passou apenas um minuto. Deixe-o sentar-se sobre um fogão quente durante um minuto somente — e esse minuto lhe parecerá mais comprido que uma hora. Isso é relatividade”. Esse é o tempo no processo penal: tempo sentado na chapa quente do fogão.


[1] MESSUTI, Ana. O Tempo como Pena. São Paulo, RT, 2003, p. 33.

[2] PASTOR, Daniel. El Plazo Razonable en el Proceso del Estado de Derecho. Buenos Aires, Editorial Ad Hoc, 2002.

Autores

  • é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!