Lei 13.015

Tempo e cabresto — a equação que sempre estoura do lado mais fraco

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25 de julho de 2014, 9h51

E, mais uma vez, crê-se que a celeridade processual é a metamater a ser atingida, como uma Meca para os julgadores, os quais devem obedecer ao consenso por imposição legislativa em tempo, (mal)dito, hábil. Sempre que se fala em economia e aceleração processuais, um arrepio percorre a espinha e a inquietação racional se arvora em levantar hipóteses para tais desesperos, como se a remissão dos pecados (também) não dependesse do tempo, mas apenas da confissão instantânea sem qualquer reflexão sobre o porquê o perdão deve ser buscado e, principalmente, concedido.

Para além da ferida narcísica da lei (SALO DE CARVALHO), na qual legisladores, juristas, atores e (até) operadores do Direito colocam sua fé acreditando que ela resolverá todas as mazelas sociais, a (falácia da) celeridade processual ganha especial relevo em um cenário de judicialização do cotidiano, onde os indivíduos (NORBERT ELIAS), insertos numa tirania da urgência e sedentos pela liquidez da modernidade (ZYGMUNT BAUMAN), não querem esperar pelo tempo do processo, o qual é mais lento do que o tempo social, por uma questão de garantia (FRANÇOIS OST).

Olvidam-se os crentes e pregadores dessas seitas que, de acordo com os dados do IBGE, a taxa de desemprego no Brasil fechou em 5,4% (2013), o que corresponde a um maior número de trabalhadores formais, alicerçada pelo bom desempenho econômico a partir do Plano Real e do crescimento da economia na última década, o que gera, inevitavelmente, um aumento de demandas trabalhistas. Portanto, o cálculo é por deveras lógico: quanto maior a população, considerando o cenário econômico, maior o número de trabalhadores, o que gera, consequentemente, maior número de reclamações junto à Justiça do Trabalho, a qual, com a mesma estrutura de mais de 10 anos atrás, não dá conta de prestar jurisdição a todos num prazo razoável (artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal de 1988). Para que se tenha uma ideia, neste ano de 2014, o TST está começando a julgar os recursos que bateram a sua porta em 2011…

Assim, parece que o milagre para a solução desse problema se dá no sermão sobre o tempo, buscando abreviá-lo para o término expedito da relação processual. E a cura do mal da morosidade judiciária dessa especializada é a novel Lei Federal 13.015/2014, publicada na última terça-feira (22/07).

Tal lei busca remediar o lapso temporal (“gasto”) com o trânsito em julgado, trazendo possibilidades (?) ao Judiciário Trabalhista de uniformizar a jurisprudência (já) no âmbito dos respectivos TRT’s, bem como no TST, a partir da multiplicidade de Recursos de Revista fundados em idêntica questão de direito, tal qual os recursos Extraordinário e Especial repetitivos, nos termos dos artigos 543-B e 543-C do CPC. Além disso, criou outros requisitos recursais objetivos para a interposição do Recurso de Revista (artigo 896 da CLT), e incluiu a necessidade de ser “atual” a divergência jurisprudencial apta a comprovar a interposição dos Recursos de Revista e Embargos (artigo 894, CLT), dentre outras alterações e inclusões no diploma celetista.

Sempre que se fala em aceleração processual, ocorrem acidentes para com direitos e garantias fundamentais. E, dessa forma, o desafio do ciclista é também o desafio do Poder Judiciário na condução do processo: nem tão lento a ponto de deixar o ciclista cair, nem tão rápido a ponto de ele atropelar (AURY LOPES JR.). 

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 6º, elenca o trabalho como direito social fundamental. Com isso, no artigo 7º consta o rol de direitos dos trabalhadores, bem como aqueles que visam a melhoria de suas respectivas condições sociais. Portanto, pode-se dizer que é erigida “em uma dupla pretensão, para além daquele que compra a força de trabalho, o Estado que deverá garantir e desenvolver condições de plena efetividade desse direito fundamental da pessoa humana” (ALDACY RACHID COUTINHO[1]).

Portanto, cabe ao Poder Judiciário Trabalhista aplicar o sistema de princípios e regras jurídicos envoltos nesse ramo para proteger o trabalhador, não se olvidando que a interpretação deve ser norteada pela Constituição Federal. Isso não quer dizer que na seara trabalhista não possam ser decididas reclamações em desfavor do empregado e em prol do empregador. Essa advertência serve apenas para lembrar que esse sistema jurídico serve para proteger o lado mais fraco da relação de trabalho/emprego, ensejando a proteção devida pelo reconhecimento da “lei do mais débil” (LUIGI FERRAJOLI).

Grotescamente falando, e em franca comparação com o processo civil e com o processo penal, da sentença de primeiro grau cabe, na seara trabalhista, o Recurso Ordinário à respectiva corte regional do Trabalho, recurso que equivale à apelação naqueles, vigorando igualmente o princípio reitor dos recursos: tantum devolutum quantum appelatum.

Portanto, até aqui, nenhum problema recursal, já que o tribunal regional poderá analisar tanto a matéria fático-probatória quanto a jurídica. E (a partir d)aqui, principalmente, é onde surgem novos pecados, diante da aplicação daquilo que ALEXANDRE MORAIS DA ROSA chama de “jurisprudência do conforto”, reveladora da estagnação hermenêutica existente (há tempos) na Justiça Trabalhista, exercida pela aplicação acrítica e atemporal de súmulas existentes desde a época do regime militar. Não se pode olvidar que a CLT é de 1943. Cabe lembrar ainda que, por súmulas, os tribunais superiores analisam somente questões de Direito.

E antes que se diga que o TST tem revisado suas respectivas súmulas, basta uma simples pesquisa para notar que a inclusão do vocábulo “mantida” e a indicação de nova data referente a tal “revisão” demonstra apenas a manutenção do status quo da verbete sumular sem nenhum novo precedente, vez que se trata apenas da aplicatio indistinta da redação desde sua criação, sem passar pela filtragem constitucional.

Nesse ínterim, o maior pecado nesta especializada é a falta de densidade constitucional das decisões proferidas pelos magistrados trabalhistas, que preferem, em nome do senso comum teórico dos juristas (WARAT), perpetuar a aplicação das súmulas, as quais funcionam como entes sem ser, ou invólucros que pretendem fazer justiça tópica sem considerar as propriedades do caso, como há tempos pondera LENIO STRECK[2].

A súmula não é, e não pode ser, um “texto universalizante”(!). A aplicação das súmulas vem antes mesmo dos fatos e dos direitos questionados no processo. Faz parte do “saber-julgar” do magistrado. E, assim agindo, o que se denota pela simples leitura de diversas delas, é que a proteção, a qual deveria ser do trabalhador, mostra-se rompida a partir do momento em que as súmulas não poderão mais ser questionadas. Essa devoção a elas, sem questionamentos, mascara a neutralidade do julgador.

Oras, não se pode falar em neutralidade do juiz. A neutralidade é um mito. A imparcialidade pertence à jurisdição, garantia da qual todo e qualquer trabalhador que busque o acesso à Justiça tem, no sentido de que seu processo será julgado por alguém que não tenha interesse na (re)solução da causa (vide casos de impedimento e suspeição). No entanto, basta percorrer as varas do Trabalho e as turmas de cada tribunal para conhecer as tendências e posicionamentos dos magistrados, assegurada, aliás, pela independência no exercício da jurisdição, para se dar conta de que, assim como todos, as tendências não pertencem à capa, mas àqueles que a vestem.

 Portanto, a única forma de questionar as pré-compreensões julgadores e atacar o solipsismo desses julgadores (LENIO) é através do enfrentamento direto dos dispositivos constitucionais requeridos pelas partes (inclusive pela mais fraca), de modo a ensejar efetividade ao direito social fundamental do trabalho e seus consectários (art. 6º c/c art. 7º, CF/88), denotando-se não apenas cumprimento de função burocrática estatal (o ato de processamento), mas de compromisso de proteção do trabalhador (missão constitucional e institucional da Justiça do Trabalho). E para isso, é forçoso lembrar que o Mosteiro deve seguir o Livro Sagrado (CF/88), ou seja, se criado pela Palavra (divina) do Constituinte, deve igualmente cumprir com seu papel fundamental.

Com isso, quer-se dizer que inúmeras súmulas editadas (e “revisadas”) pelo TST carecem de constitucionalidade e, com o advento da Lei federal 13.015/2014, sepulta-se, praticamente, as possibilidades de Recurso Extraordinário na seara trabalhista. E a gravidade disso é que o STF ainda não se manifestou, mas precisa se manifestar, sobre diversas verbetes sumulares editadas pelo TST.

Isso porque, diferentemente do que ocorre na Justiça comum (seja no âmbito federal ou estadual), onde cabe ao STF a guarda precípua da Constituição Federal (art. 102, I, CF/88), na Justiça do Trabalho, o próprio TST julga, mediante Recurso de Revista das decisões proferidas em grau de Recursos Ordinários, afronta direta e literal à Constituição Federal (art. 896, c, CLT).

E, portanto, a pergunta que não quer calar, a estilo de AGOSTINHO RAMALHO NETO (que questionou: “quem nos salva da bondade dos bons?”): quem decide sobre a constitucionalidade daquilo que o próprio TST escolheu ser constitucional?

Num Estado (que se diz e se quer) Democrático de Direito, a quantidade de julgados não pode se sobrepor à qualidade dessas decisões. A CLT não está acima da Constituição Federal. As regras não podem se sobressair aos princípios. A celeridade processual não deve atingir aceleração apta a negar o próprio direito que só através do processo se pode buscar. A subversão dessas lógicas coloca em xeque os direitos trabalhistas dos empregados na hora da escolha operada pelo Julgador ao optar pela procedência/improcedência deste ou daquele pedido (considerando a diferença entre escolha e decisão apontada por ANDRÉ KARAM TRINDADE).

Não é limitando o acesso à Justiça, como (tenta) faz(er) a novel lei, que vai proteger o trabalhador de exercer seu amplo direito de ação buscando créditos trabalhistas resultantes da relação de trabalho/emprego e da garantia da ampla defesa, e assegurar ao empregador o respectivo contraditório. Mas é somente a partir de uma razão constitucional que se poderá permitir uma maior delegação de poder aos julgadores investidos na função jurisdicional de ministros ou desembargadores federais do Trabalho, os quais podem decidir uniformizar a jurisprudência, inclusive ex officio, numa confusa e equivocada utilização da common law como já denunciou LENIO sobre essa mania em terrae brasilis.

E mais: não se está pregando sermão sobre a (in)segurança jurídica existente hoje no panorama jurisprudencial brasileiro. A complexidade e a divergência fazem parte da democracia. A segurança jurídica não é buscada com unanimidade de entendimentos, mas a partir do contraditório e da decisão fundamentada na Lei Maior. O fato de a lei querer que determinado direito pleiteado em juízo tenha certo grau de previsão aceitável é descrer na potencialidade racional dos julgadores, pois o processo, como instrumento de defesa do mais fraco, está inserto na epistemologia da incerteza, dependendo de provocações e situações jurídicas a serem enfrentadas com respeito às regras do jogo (leia-se: devido processo legal-constitucional-laboral). Portanto, o que se quer e o que deve ser buscado é o grau racional da decisão judicial tendo como termômetro a eficácia dos direitos trabalhistas assegurados, sendo a certeza e a aceitabilidade decorrentes dessa (alta) temperatura (constitucional).

E antes que a omissão seja apontada, é claro que o sistema (processual) recursal trabalhista prevê a oposição de Embargos, nos termos do artigo 894 da CLT. No entanto, de forma limitada: somente quando a decisão do julgamento do Recurso de Revista for não unânime e, para fins desta análise (inciso II), das decisões das Turmas que divergirem entre si, ou das decisões proferidas pela Seção de Dissídios Individuais, salvo se a decisão recorrida estiver em consonância com súmula ou orientação jurisprudencial do Tribunal Superior do Trabalho ou do Supremo Tribunal Federal.

Isto é, a blindagem criada pela Lei 13.015/2014, em vez de proteger o mais fraco (trabalhador), possibilita a perpetuação do cabresto (leia-se: senso comum teórico dos juristas trabalhistas) e a manutenção no poder daqueles que detém as rédeas do poder econômico: os empregadores.

Em resumo, como questionou o imortal JOÃO UBALDO RIBEIRO em sua última coluna no jornal O Globo (20/7): o uso do papel higiênico também deve ser regulamentado, porque é melhor para a coletividade?

Por fim, quem escolhe o que é melhor para a coletividade, sem olvidar da(s) individualidade(s)?

Aguardemos a vacatio legis…

 


[1] COUTINHO, Aldacy Rachid in CANOTILHO, José Joaquim Gomes. MENDES, Gilmar Ferreira. SARLET, Ingo Wolfgang. STRECK, Lenio Luiz. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva, Coimbra: Almedina, 2013, p. 552.

[2] Vide STRECK. Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em Direito. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

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