Pretor Peregrino

Julgador capaz de caminhar pela internet será bem-vindo

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21 de julho de 2014, 15h01

Para Deleuze, a jurisprudência é uma pulsão do sistema jurídico que dá folego e mantém vivos, a cada nova decisão, o múltiplo e o contingente. Warat retrucou: Deleuze não leu Deleuze! Para Warat, acreditar que a jurisprudência possa materializar a diferença em cada decisão é o mesmo que acreditar nas desculpas que as adúlteras de Nelson Rodrigues contam para seus maridos fiéis quando chegam em casa tarde da noite, ofegantes e enrubescidas de tesão e culpa.

Quando Deleuze elogia a jurisprudência como locus de materialização de cada parte do múltiplo, esquece que o fundamento casuístico, realizado por quem está afundado em significados dados de antemão, não cumpre com sua virtuosa tentativa de compreensão da complexidade.

A jurisprudência só é plural enquanto conjunto. Como multiplicidades de (juris)produção de um mesmo julgador, a complexidade é isolada, reduzida, vilipendiada pela constituição personalíssima do círculo de compreensões de cada um que julga. Daí que imaginar a jurisprudência como multiplicidade, como pensou Deleuze, é esquecer o imobilismo de uma considerável parcela de julgadores que opta pelo que Alexandre Morais da Rosa chamou de hermenêutica do conforto. Essa inércia é produto de uma infantilização que nasce do fracasso de matar simbolicamente as referências paternas, de acabar com o ideário das hierarquias e de superar a falsa noção de que, a cada nova decisão, está-se diante de marco zero de sentido (Lenio Streck) capaz de alimentar a fajuta noção de imparcialidade daí decorrente.

A possibilidade de julgar é a aquisição da potência formal de realizar uma observação. Porém, uma natural inflação do Ego que julga tende a transformar a mera potência formal de realizar uma observação em uma potência substancial de realizar uma observação, ou seja, na capacidade empática necessária para julgar. Empatia é uma capacidade mágica de amenizar os sentidos próprios para indagar os sentidos que vêm do olhar alheio. Estar formalmente apto não significa deter a aptidão necessária. O primeiro passo — a aprovação no certame — muitas vezes se transforma em último, o que faz da aprovação uma unidade de qualificação para julgar.

O risco é que a capacidade de reconstrução coerente da narrativa dos fatos e fundamentos de um caso processual depende da potência substancial de observar, e não só da potência formal obtida com a aprovação no certame. Observar é realizar deslocamentos horizontais para produzir rizomas. Deslocar significa, sobretudo, trocar vizinhanças. Deslocar é realizar trânsito entre lugares de uma mesma unidade.

Na medida em que se substitui genealogias por geologias, altera-se eticamente a possibilidade de observação. A ética possível em qualquer julgamento é deter a possibilidade de deslocar-se para a pele de quem é julgado, indagando seus motivos, analisando a complexidade que cerca o sujeito. Quando todas as teorias da decisão são atropeladas diariamente pela contingência caótica das decisões em cada fórum ou tribunal, é preciso, além de criticar a incapacidade do julgador (senso) comum, fortalecer a capacidade transformadora da crítica — de quem emite em direção a seus alvos, ou seja, se se tratam de motivos nobres, até para criticar são necessárias estratégias no jogo da crítica[1].

Deslocando-se, o julgador poderá ver sua casa de sentidos à distância — e dessa distância poderá ver como ela se assemelha, por diminuta, às demais casas. Esse deslocamento é a virtude fugitiva da potência substancial de observar. Daí a importância do fôlego, do caminhar, de pernas grossas que sustentem um corpo de olhos andarilhos e perspectivos. O Pretor Peregrino romano, como julgador caminhante, tinha, ao choque da vista, a multiplicidade da rua. O julgador capaz de caminhar pela internet, poderá ser uma reedição bem-vinda dos julgadores romanos da realeza, depois do fim das lágrimas sobre a lápide deste direito. “Nos processos emancipatórios, o sujeito não se constitui autônomo como uma configuração fechada, precisa de um espaço de relações com o outro. É a partir do outro, reconhecido como diferença, que o sujeito descobre o sentido de sua própria identidade como alteração de sentidos e desejos”, diz Warat. Já foi dito pela poesia de Antonio Machado: caminhante o caminho não existe, o caminho acontece ao caminhar. Necessária, portanto, uma crítica horizontal, uma pedagogia horizontal, uma observação horizontal, um julgamento horizontal. Assim como uma crítica vertical só pode modificar santos, essa raça rara de gente, um julgamento vertical resolve processos e não conflitos, que são sempre da ordem do complexo.  As críticas verticais são o mesmo que estar apenas formalmente apto a julgar: no fim, ambas modificam pouco a realidade que pretendem atingir.


[1] Alexandre Morais da Rosa escreve um livro paradigmático, que inaugura a possibilidade de uma análise subjetiva mas, sobretudo, malandra da teoria da decisão. Ver Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 2a ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro. 2014.

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