Embargos Culturais

Em 1883, jurista sergipano Tobias Barreto fez discurso inovador e provocativo

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

20 de julho de 2014, 8h00

Spacca
Em 10 de abril de 1883 o jurista sergipano Tobias Barreto (1839-1889) proferiu discurso — na qualidade de paraninfo — em cerimônia de colação de grau, na Faculdade de Direito do Recife, onde conquistara cátedra em animado concurso[1]. Trata-se de discurso absolutamente inovador, provocativo, e ainda hoje o seria, passado mais de um século. Os problemas centrais da discussão jurídica, postos no século XIX, ainda hoje permanecem a espera de solução; refiro-me, especialmente, ao dilema que opõe o jusnaturalismo ao juspositivismo, a metafísica ao realismo[2].

Tobias Barreto foi um homem de ciência, muito adiante para o tempo no qual viveu[3]. Se estivesse entre nós, hoje, provavelmente criticaria a metafísica marca do raciocínio jurídico dominante no Brasil; manteria, certamente, como mote, passagem memorável: “uma coisa são princípios feitos; outras coisas os princípios que se fazem”[4]. Multiplicamos princípios e referências, como se referências e pressupostos fossem dados, e não construídos.

O então paraninfo iniciou sua fala lembrando que discursos proferidos em cerimônias de formaturas deveriam obedecer a formas e ritos, todos já estabelecidos. Nada de novo ou de inusitado poderia ocorrer. E assim, com mordacidade que lhe era característica, Tobias Barreto provocava:

“Como vedes, é uma questão de ritual, e eu tenho obrigação de cingir-me a ele. Não seria pois de estranhar que me limitasse a dizer: eu vos felicito, senhores doutores; a importância do grau que vos foi conferido, medi-a pela magnitude dos esforços que ele vos custou, e o uso que tendes a fazer das vossas letras, determinai-o vós mesmos, segundo os ímpetos do vosso talento e as inspirações de vosso caráter. Não seria de estranhar que a isto me limitasse, e desse então por findo o meu discurso. Nem haveria razão para se me acusar de esterilmente conciso, por excesso de respeito a uma disposição de lei (…)”[5].

Tobias Barreto de algum modo revoltava-se com o fato de que a condição de paraninfo o condenava a “(…) entoar o mesmo hino, a recitar o mesmo epitalâmio, por esta espécie de noivado científico(…)”[6].Via-se como mais um daqueles “ (…) condenados a repetir em estilo de brinde, as mesmas fazes frases consagradas, para acentuar a importância de um fato que ninguém contesta, e o verdadeiro uso de um título que todo mundo sabe qual seja”[7].

O discurso de formatura é mero cumprimento de ritual, cheio de mantras, e Tobias Barreto não era homem para o simples cumprimento de rituais e repetição de fórmulas litúrgicas. Pensava; não estava preocupado com a colocação de pronomes, com a crase, com a vírgula no hebraico, como sugeriu Monteiro Lobato, outro pensador autônomo, em delicioso conto, que deveria ser lido e aprendido pelos patrulheiros das formalidades.

O jurista sergipano se culpava por se apresentar, naquele momento, no “(…) modesto papel eclesiástico de um mestre de cerimônias”[8]. Por isso, aproveitou-se da ocasião para exercer papel de professor pensante, provocando o auditório, com questões que — naquele momento, como ainda hoje — colocam-se no centro das preocupações daqueles que refletem sobre a ação dos juristas no contexto dos arranjos sociais que herdamos, e que precisamos transformar. O mundo é um construído, e não um imaginário dado metafísico. Juristas, já o disse Roberto Mangabeira Unger, são técnicos a serviço da sociedade, e não sacerdotes detentores de verdades.

Tobias questionava por que a ciência do direito corria o risco “de ser classificada no meio dos expedientes grosseiros, de tornar-se uma ciência puramente nominal, que pode dar o pão, porém não dá a honra a ninguém, ou, como diz H. Post, uma irmã da teologia que se limita a folhear o Corpus Juris, como esta folheia a Bíblia?”[9]. Comparando o direito com a teologia, na forma e no fundo, Tobias Barreto irritava-se com o fato de que o pensamento jurídico resistia às mudanças que se processavam nas ciências naturais, e que deveriam ser levadas em conta, a exemplo da influência que Darwin exercera em Rudolf von Iehring. Para o jurista sergipano, todas as ciências haviam quebrado “o primitivo invólucro poético; só o direito não quer [queria] sair da sua casca mitológica”[10]. E assim, em passagem indicadora de pensamento culturalista[11], crítico da percepção de um direito transcendente, prosseguia o orador:

“A concepção do direito, como entidade metafísica (…), anterior e superior à formação das sociedades, contemporâneas, portanto, dos mamutes megatérios, quando aliás a verdade é que ele não vem de tão longe, e que a história do fogo, a história dos vasos culinários, a histórica da cerâmica em geral, é muito mais antiga do que a história do direito; essa concepção retrógrada, que não pertence a nosso tempo, continua e entorpecer-nos e esterilizar-nos. Aí está, senhores doutores, o segredo do descrédito em que caiu a ciência que cultivamos”[12].

Nesse mesmo discurso, Tobias Barreto proferiu a frase que provavelmente mais resume o seu pensamento: “o direito não é um filho do céu, é simplesmente um fenômeno histórico, um produto cultural da humanidade”[13]. Pensava como Rudolf von Iehring, aproximando a ideia de direito à ideia de força, em sentido absolutamente construtivo; lê-se no que se registrou do discurso aqui comentado: “a força que não vence a força não se faz direito; o direito é a força, que matou a própria força”[14]. Tobias Barreto não mencionava a força da contingência, bruta, abusiva; não falava de uma “(…) força de polícia, às ordens de um delegado, cercando igrejas para fazer eleições (…)”[15]. Tobias Barreto acreditava no direito:

“Assim como, de todos os modos possíveis de abreviar o caminho entre dois pontos dados, a linha reta é o melhor; assim como, de todos os modos imagináveis de um corpo girar em torno de outro campo, o círculo é o mais regular; assim também, de todos os modos possíveis de coexistência humana, o direito é o melhor modo”[16].

Tobias Barreto pensava, como Henrique von Sybel, “(…) que as faculdades não são somente estabelecimentos de instrução, mas ainda e principalmente (…) verdadeiros laboratórios, oficinas de ciência”[17]. Sempre preocupado com esse mistério que é a vida humana, procurava “(…) melhor compreender os homens e melhor perdoar-lhes as suas fraquezas”[18]. Para Tobias Barreto, como se colhe nesse vibrante discurso de paraninfo, o direito é “(…) a pacificação do antagonista das forças sociais, da forma que, perante o telescópio moderno, os sistemas planetários são tratados de paz entre as estrelas”[19].

Ainda que telescópios de hoje não sejam os mesmos toscos instrumentos do tempo de Tobias Barreto, permanece iluminada e intrigante a imagem que comparou sistemas planetários a tratados de paz entre as estrelas. Onde há o caos, há espaço para a harmonia. Essa, creio, a grande lição de Tobias Barreto, levada, ao limite, por outro iluminado sergipano, Carlos Ayres Britto.   


[1] O discurso encontra-se reproduzido em Barreto, Tobias, Estudos de Direito- I, Rio de Janeiro: J. E. Solomon; Sergipe: Editora Diário Oficial, 2012, pp. 49-55. Organização de Luiz Antonio Barreto.
[2] Conferir, por exemplo, Roberto Mangabeira Unger, The Universal History of Legal Thought, disponível em www.robertounger.net.
[3] Dedico esse ensaio a Boni de Moraes Soares e a Ariella Ferreira da Mota, ilustres e jovens advogados sergipanos, ele na Advocacia-Geral da União, ela, na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, profissionais com quem tenho a honra de trabalhar em Brasília, e com quem muito aprendo.
[4] Barreto, Tobias, cit., p. 113, a propósito de um texto crítico sobre o Poder Moderador.
[5] Barreto, Tobias, cit., loc. cit.
[6] Barreto, Tobias, cit., loc. cit.
[7] Barreto, Tobias, cit., loc. cit.
[8] Barreto, Tobias, cit., p. 50.
[9] Barreto, Tobias, cit., p. 51.
[10] Barreto, Tobias, cit., p. 52.
[11] Esse tema, a relação de Tobias Barreto com o culturalismo, foi explorado exaustivamente por Miguel Reale. Consultar, Reale, Miguel, Horizontes do Direito e da História, São Paulo: Saraiva, 1956, pp. 225-233.
[12] Barreto, Tobias, cit., loc. cit.
[13] Barreto, Tobias, cit., loc. cit.
[14] Barreto, Tobias, cit., loc. cit.
[15] Barreto, Tobias, cit., p. 53.
[16] Barreto, Tobias, cit., loc. cit.
[17] Barreto, Tobias, cit., p. 54.
[18] Barreto, Tobias, cit., p. 55.
[19] Barreto, Tobias, cit., p. 53.

Autores

  • Brave

    é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC- SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília, ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

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