Liberdade de expressão

Estrangeiro que queima bandeira nacional não deve sofrer ação penal

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19 de julho de 2014, 7h40

Após a celebração da vitória alemã na Copa FIFA 2014, os diversos veículos da mídia foram inundados com as tristes cenas de torcedores argentinos que se aprumavam para o doloroso retorno para as terras portenhas. O clima de alegria nos locais disponibilizados para estacionamentos de trailers e outros veículos havia sido substituído pelo luto e pelo ressentimento de mais uma participação futebolística fracassada dos chamados hermanos.

Por parte dos anfitriões, chamou a atenção o fato de a bandeira nacional ter sido queimada na praia de Copacabana pelos argentinos. Imediatamente, os noticiários trouxeram esse ato[1].

É comum ouvir que queimar, inutilizar ou destruir os símbolos nacionais, o que certamente inclui a bandeira do Brasil, consistiria em crime, mas seria essa afirmação correta?

A questão a ser enfrentada no presente texto é, então, a seguinte: há, de fato, alguma repercussão jurídica, mais especificamente penal, para o comportamento dos argentinos que queimaram a bandeira nacional?

Para o presente texto e em decorrência do estabelecimento do Estado Constitucional, adota-se a distinção entre os conceitos de vigência e validade. É oportuno frisar que mesmo doutrinadores que se utilizam de modelos teóricos distintos, vide as diferenças existentes entre os pensamentos de Luigi Ferrajoli[2] e Lênio Streck[3], ainda assim defendem a necessidade de diferenciar a vigência da validade. De maneira bem sintética, pode-se afirmar que essa distinção tem como base o reconhecimento da supremacia constitucional, devendo todas as normas jurídicas buscarem amparo formal e, principalmente, material na Constituição vigente.

No que se refere especificamente à incriminação pela incineração da bandeira, chama atenção o fato de que o Decreto-Lei 898, de 29 de Setembro de 1969, a Lei de Segurança Nacional imposta no período mais duro da ditadura civil-militar, tipificar, vide o contido o artigo 44, a conduta de destruir ou ultrajar a bandeira, sendo imposta a pena de 2 a 4 anos.

A Lei 5.700, de 1º de Setembro de 1971, prescreve como contravenção penal todo e qualquer desrespeito aos símbolos nacionais, que não se encontrassem subsumidos ao já citado artigo 44, Decreto-Lei 898/69.

No ano de 1978, nova Lei de Segurança Nacional surgiu – a Lei 6.620, sendo certo que persistia a previsão de incriminação pelo ato de destruir ou ultrajar a bandeira, segundo o disposto no seu artigo 41, com a previsão de pena de 1 a 4 anos.

O mosaico normativo é, por fim, composto pela Lei 7.170/83, que revogou expressamente a Lei de Segurança Nacional anterior, a Lei 6.620/78, não tipificando, ao contrário das anteriores, qualquer conduta de destruição ou ultraje de bandeira.

Dessa forma, hodiernamente, pelo viés da vigência, subsiste tão-somente a contravenção penal prevista na Lei 5.700/71.

No entanto, e até mesmo como forma de manter a coerência com aquilo que foi dito, não basta aferir a vigência, é imprescindível ir além, o que, no presente caso, significa constatar a validade da norma em questão.

Todo o conjunto de normas proibitivas se insere em período de déficit democrático, o que não pode jamais ser olvidado, sob pena de examinar o novo, que na hipótese é materializado pela Constituição-cidadã, a partir das lentes do velho.

Se em outras quadras, a punição pela queima da bandeira seria incontestável, há de se perquirir se ainda se mostrava possível a utilização do sistema criminal para combater esse comportamento.

Em um Estado Constitucional, o manejo do Direito Penal não se mostra possível a qualquer custo. Como toda manifestação do exercício do poder estatal, deverá ser limitado, sendo certo que na apreciação de suas fronteiras os princípios constitucionais se mostram importantes.

A partir do catálogo de direitos fundamentais consagrados pelo Texto Constitucional vigente, afirma-se que a eleição de uma conduta como criminosa deve-se, inicialmente, pautar pela proteção de bens jurídicos tidos como relevantes para a realidade nacional.

O artigo 13, § 1º, Constituição da República afirma ser a bandeira do Brasil um dos símbolos da República, o que poderia justificar a responsabilização, caso prevista em lei, pela inutilização, destruição ou incineração do lábaro estrelado.

Contudo, a mera referência ao artigo 13, § 1º, Constituição da República já justificaria a previsão legislativa do crime de queimar a bandeira? A postura açodada poderia dizer que sim, não sendo esta a postura assumida neste breve estudo.

O símbolo nacional, por si só, configura um bem jurídico capaz de permitir a utilização da mais gravosa intervenção estatal na liberdade de alguém? É, na verdade, esse o ponto fulcral de toda a análise. E, quanto a isso, defende-se que não se mostra possível punir alguém única e exclusivamente pelo desrespeito à bandeira nacional. A depender do cenário, outras causas poderão justificar a incriminação. A título ilustrativo, é possível destacar, dentre outros, as seguintes situações. A inutilização da bandeira por militar frente a tropa e a queima da bandeira precedida de furto do referido bem. Na primeira situação, a punição não será pautada pela bandeira em si, mas sim pela disciplina, bem jurídico tido como relevante para a organização da vida militar, sendo essa razão de ser do contido no artigo 161, Código Penal Militar. Por outro lado, o segundo exemplo, ensejará a responsabilização pelo crime de furto tão-somente.

Sem sombra de dúvida, o gesto perpetrado pelos argentinos não apresenta a polidez esperada daquele que visita território soberano alheio. Todavia, mesmo sendo uma postura desprovida dos esperados costumes, não se pode deixar de falar que a mesma se encontra protegida pela liberdade expressão[4].

Nesse ponto, o Texto Constitucional é claro em afirmar que a liberdade de expressão é direito fundamental. Dessa forma, sequer se mostra necessário recorrer aos critérios supostamente científicos e que atendem pelas alcunhas de ponderação, proporcionalidade ou razoabilidade. A realidade é que a liberdade expressão, conforme já ressaltado, é direito fundamental; ao passo que os símbolos nacionais, o que inclui a bandeira do Brasil, não gozam do mesmo status. Ora, se a dignidade da pessoa humana é princípio fundamental e o Estado somente justifica a sua existência para servir o indivíduo, e não o contrário, não pode qualquer ato de salvaguarda do estandarte, mesmo aquele de aniquilar, prevalecer frente à liberdade de expressão.

Ainda no âmbito constitucional, é relevante recordar que o pluralismo, que não se restringe ao aspecto político, permite também afastar a tentativa de incriminar a destruição da bandeira nacional, tal como realizado pelos argentinos frustrados com a derrota de sua seleção e localizados na praia de Copacabana. Tolerar outras visões de mundo é uma decorrência da imposição constitucional plural, mesmo que isso signifique um ato, desde que pacífico, que simbolicamente represente o desprezo ao Estado brasileiro.

O princípio da legalidade, e que tem assento constitucional – vide o contido no artigo 5º, inciso XXIX, é multidimensional. Para a análise do presente caso, não se pode menosprezar para o fato de que a analogia não pode servir para incriminar ninguém. Na única disposição proibitiva em vigor, ou seja, o artigo 35, Lei 5.700/71, não há qualquer referência ao ato de destruir ou ultrajar a bandeira nacional. Logo, à luz da legalidade penal, o comportamento adotado pelos argentinos não possui qualquer relevância penal.

Feitas todas essas considerações, mostra-se perfeitamente possível censurar o ato de incinerar a bandeira nacional que teria sido praticado por argentinos insatisfeitos com a perda do título. Porém, essa censura não poderá alcançar a seara penal em razão de 3 intransponíveis motivos: a liberdade de expressão, o pluralismo e a legalidade penal.


[1] http://oglobo.globo.com/rio/apos-derrota-argentinos-provocam-tumulto-em-copacabana-13245110

[2] “Para que uma norma exista ou esteja em vigor, é suficiente que satisfaça as condições de validade formal, as quais resguardam as formas e os procedimentos do ato normativo, bem como a competência do órgão que a emana. Para que seja válida, é necessário que satisfaça ainda as condições de validade substancial, as quais resguardam o seu conteúdo, ou seja, o seu significado” (FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão. Teoria do garantismo penal. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 806)

[3] “A hermenêutica que proponho – desde Hermenêutica jurídica e(m) crise (agora já em sua 10ª edição) até Verdade e consenso (já em 4ª edição) – é esse modelo de conhecimento que tem a tarefa de tornar visível o habitus que domina a interpretação/aplicação do direito. Sua tarefa também é de denunciar – constantemente – a tradição inautêntica (no sentido que Gadamer dá a essa palavra) do direito. Essa tradição inautêntica (que equipara vigência e validade, texto e norma, e que sustenta em uma espécie de positividade ôntica, mediante a constituição de uma dimensão antipredicativa para o direito, obstaculizando, desse modo, a verdade ontológica, que somente ocorre quando a verdade ôntica adquire um sentido – um sentido de ser-no-mundo (o ser-no-mundo é que diferencia a verdade ôntica da verdade ontológica)” (STRECK, Lênio. Jurisdição constitucional e decisão jurídica. 3. ed. São Paulo: RT, 2013. p. 227)

[4] Apesar das diferenças existentes entre as realidades, não se pode ignorar o posicionamento assumido pelo Supremo Tribunal Federal no HC 83.996, que “trancou” ação penal ajuizada em face do diretor teatral Gerald Thomas, que, ao se deparar com as críticas da plateia, respondeu com gestos que imitavam atos libidinosos. O voto do Ministro Gilmar Mendes foi claro em afirmar que postura “inadequada ou deseducada” ainda assim se encontra protegida pela liberdade de expressão.

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