Análise Constitucional

Sobre árbitros e jogadores: quem é quem no Direito constitucional brasileiro?

Autores

  • José Levi Mello do Amaral Júnior

    é professor associado de Direito Constitucional da USP professor do mestrado e do doutorado em Direito do Ceub livre-docente doutor e mestre em Direito do Estado procurador da Fazenda Nacional cedido ao TSE e secretário-geral da Presidência do TSE.

  • Carlos Bastide Horbach

    é advogado em Brasília professor doutor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e professor do programa de mestrado e doutorado em Direito do UniCEUB.

14 de julho de 2014, 17h36

Spacca
“Juízes são servos do Direito e não o contrário. Juízes são como árbitros de esportes. Os árbitros não fazem as regras do jogo, eles as aplicam.

O papel de um árbitro ou de um juiz é crítico. Eles garantem que todos joguem de acordo com as regras.

Mas esse é um papel limitado. Ninguém vai a uma partida para ver o árbitro. (…) Meu trabalho é marcar as bolas e os pontos e não arremessar ou rebater”.[1]

Com essa analogia com o jogo de baseball, o então juiz John Roberts iniciou a sabatina na qual o Comitê Judiciário do Senado norte-americano avaliaria suas credenciais para o cargo de Chief Justice, que é por ele ocupado já há quase dez anos.

No contexto em que apresentada, a alegoria de Roberts dizia com a constante discussão envolvendo o ativismo judicial e procurava assegurar aos senadores que o futuro chefe do Judiciário norte-americano não contribuiria para tornar a Suprema Corte a protagonista da vida político-institucional dos Estados Unidos.[2]

Entretanto, para além dessa análise inicialmente superficial, a imagem relacionada com o baseball suscita ainda a disputa que se apresenta entre diferentes compreensões do direito constitucional, disputa essa que – com contornos peculiares — igualmente se faz presente nos ambientes institucional e acadêmico brasileiros.

Há quem, no direito constitucional brasileiro, insinue – ou afirme – a existência de duas compreensões: uma considerada conservadora, anacrônica, ora porque tida como positivista, ora porque classificada como dogmática, ora porque apegada às regras normativas (sejam elas constitucionais, sejam elas legais), ora porque avaliada como avessa ao diálogo com “o novo”; e uma outra compreensão, considerada progressista, moderna, justamente porque nega o positivismo, porque se liberta da dogmática, porque não se apega a regras, mas, sim, a princípios constitucionais, e dialoga com “o novo”, sobretudo aquele oriundo da doutrina estrangeira.

Por isso mesmo, a segunda compreensão autodenomina-se “neo” alguma coisa. A primeira compreensão, por sua vez, é adjetivada — acusada — de modo pejorativo pela segunda como conservadora e positivista.

A primeira compreensão ainda considera válida a ordem institucional democrática, sobretudo no que se refere a uma organização de poderes com Executivo (chefia de Estado e chefia de governo conjugadas ou não), Legislativo e Judiciário, eventualmente com Tribunal Constitucional. Para ela, o Estado de Direito pressupõe um governo de leis, não de individualidades. As leis são votadas no Parlamento – eleito pelo povo para representá-lo — e sancionadas pelo governo (também fruto de eleição). São aplicadas pelo Judiciário e eventualmente declaradas inconstitucionais pelo mesmo Judiciário (ou por um Tribunal Constitucional).

A segunda compreensão não acredita nessa mecânica de coisas. Ou não tem paciência de esperar que ela funcione, que ela amadureça. Num caprichoso voluntarismo, quer ver de pronto realizado um programa que considera ser o constitucional e, para tanto, admite colocar em segundo plano a organização de poderes, passando o protagonismo das políticas públicas para agentes não eleitos, sobretudo juízes, promotores, procuradores, advogados. Minimiza a importância dos agentes eleitos, que são genericamente considerados por essa segunda compreensão como inapetentes – quando não nocivos ou, até mesmo, criminosos – para os negócios públicos.

O discurso encanta desde os bancos acadêmicos. O estudante de Direito é inoculado com a perspectiva de mudar o mundo, fazendo a revolução que a política teima em não fazer.

O resultado disso, por mais paradoxal que seja, é uma cultura contrária ao próprio Estado de Direito, contrária à forma própria do Direito, que é a lei votada no Parlamento, nunca no Judiciário ou no Tribunal Constitucional. Contrariar esse esquema de coisas implica reação imediata e bem concertada: trata-se de discurso de conservador, de positivista.

Esse é um engodo grosseiro cuja falácia é de fácil demonstração.

Em tempos de Copa do Mundo, entremeada com eleições iminentes, pode-se fazer a seguinte comparação, adaptando as palavras do chief justice Roberts acima transcritas: a relação entre Política e Direito é análoga à relação havida entre os times que disputam uma partida de futebol e a respectiva equipe de arbitragem.

Os torcedores, no futebol, desejam ver os gols de Neymar, Robben, Klose e Messi. Da mesma forma, os cidadãos, enquanto eleitores, na política, desejam ver boas políticas públicas realizadas pelos sujeitos em que eles – eleitores – votam nas eleições.

Da mesma forma como nenhum torcedor deseja ver um gol feito pelo árbitro da partida (hipótese risível e que se afigura absolutamente inconcebível), nenhum cidadão deseja – ou deveria em sã consciência desejar – ver uma política pública ser concebida por um juiz ou tribunal em detrimento das políticas públicas concebidas pelos agentes eleitos.

Da mesma forma como no futebol o árbitro deve limitar-se a assegurar o exato cumprimento das regras do jogo, o Poder Judiciário também deve limitar-se a assegurar o exato cumprimento da Constituição e das leis. Não é sua tarefa elaborar normas constitucionais e legais que porventura repute melhores que aquelas estabelecidas pelo constituinte ou pelo legislador.

Ora, é exatamente isso que pretende a compreensão “neo” alguma coisa.

Enquanto não houver clareza sobre a nocividade desse maniqueísmo, que relega a segundo plano a boa doutrina, por mais tradicional e conservadora que seja (como se isso, por si só, fosse pecado), o direito constitucional brasileiro permanecerá aberto à manipulação ideológica, que faz com que os árbitros possam ser mais importantes que os jogadores.


[1] Para a declaração integral de Roberts, ver: http://www.cnn.com/2005/POLITICS/09/12/roberts.statement/

[2] Ainda que, para muitos críticos, Roberts não tenha cumprido a promessa. Nesse sentido, há manifestações de integrantes da Suprema Corte, como demonstra a seguinte entrevista da Justice Ginsburg ao The New York Times: http://www.nytimes.com/2013/08/25/us/court-is-one-of-most-activist-ginsburg-says-vowing-to-stay.html?pagewanted=all&_r=0

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