Equilíbrio de interesses

Um exemplo sobre liberdade de associação na visão do STF

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10 de julho de 2014, 8h29

Artigo produzido por especialistas do Insper. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seus autores.

Em artigo anterior, intitulado “A liberdade de associação: aspectos gerais”, apresentamos noções introdutórias sobre o tema, que possui amplo reconhecimento e aplicabilidade prática aos empreendedores em nosso país. Neste artigo, no intuito de materializar essa discussão, apresentaremos um exemplo prático da visão do Supremo Tribunal Federal a respeito.

Em primeiro lugar, qualquer limitação à liberdade associativa, seja ela constitucional, legal ou até negocial, deve ser proporcional e razoável. O direito de se auto-organizar para desenvolver uma atividade econômica é regra geral, mas comporta exceções, sempre contando com uma interpretação sistemática e axiológica conforme a Constituição Federal de 1988 (“CF/88”), ou seja, em harmonia com os demais direitos fundamentais e com a utilização da técnica chamada “regra de prevalência”. Deve-se sempre priorizar o princípio da proporcionalidade e a proteção ao núcleo do direito fundamental à liberdade de associação, não se permitindo medidas excessivas e desnecessárias. Soluções intermediárias e menos gravosas devem sempre ser buscadas em caso de conflitos[1].

Também chamada de “liberdade de empreender”, tal direito possui ampla previsão e limitação constitucional, havendo diversos direitos fundamentais correlacionados, tais como: (a) legalidade; (b) devido processo legal e ampla defesa; (c) segurança jurídica; e (d) direito à imagem. Essa liberdade para iniciar e desenvolver atividades produtivas não se resume à iniciativa econômica, abrangendo a associativa, a cooperativa e a contratual. Cabe ao titular desse direito a organização[2] da atividade econômica, autodirecionando suas ações de posse dos seus meios de produção e respeitando as limitações impostas pela ordem jurídica. A atividade econômica é dinâmica, depende dessas liberdades e precisa ser adaptável a cenários mutantes para buscar maiores graus de eficiência[3].

 

Existe, portanto, um “molde de mercado”, reflexo das normas constitucionais que o delineiam. Trata-se do acesso a oportunidades de troca, uma liberdade de atuação em um determinado mercado, permitindo os agentes econômicos satisfazerem suas necessidades. Tal “molde” possui uma dimensão social mediante o sopesamento de princípios econômicos e sociais previstos na CF/88, que formatam as liberdades de livre iniciativa, livre concorrência e liberdade de contratar. E é esse mesmo “molde” que busca a preservação do funcionamento do próprio mercado, permitindo uma distribuição/alocação de riquezas com uma dimensão mais social[4].

Até o presente momento, o STF pouco discutiu sobre a liberdade de associação com base no artigo 5º, inciso XX da CF/88[5]. As poucas decisões que discutem o tema tratam-no de forma indireta. Até no STJ, perante o qual tais discussões poderiam ser dirimidas com mais frequência, o tema é raramente objeto de discussões[6]. Dentre os poucos julgados que discutem diretamente o tema, vale citar os Recursos Especiais nº 201.819/RJ, 158.215/RS e 161.243/DF[7], cujo tema merece discussão específica[8].

Em apertada síntese, o debate gira em torno de uma decisão assemblear de uma associação que teria afrontado uma série de princípios constitucionais, que seriam preceitos de ordem pública (e, portanto, inafastáveis), razão pela qual passível de anulação, retroagindo todos os efeitos jurídicos e econômicos. Tal decisão determinou a exclusão de um associado, apesar de aparentemente ter seguido as regras interna corporis da associação, desrespeitando vários direitos e garantias fundamentais do associado excluendo, direitos esses de eficácia imediata (horizontal) na relação entre particulares e que devem ser respeitados justamente para evitar abusos perpetrados nas relações privadas pelos chamados “poderes privados”[9].

A questão acima narrada exemplifica bem a importância e a limitação constitucional que existe sobre a liberdade constitucional de associação, senão vejamos.

Primeiro princípio constitucional claramente ferido é o da igualdade, previsto no artigo 5º, caput da CF/88. A pergunta que se faz é seguinte: o critério de discriminação utilizado para a exclusão (alegação de que a diretoria é ineficiente) é objetivo? Pelo que se sabe, eficiência é algo que qualquer organização procura, ou seja, atingir o melhor resultado possível com o menor desperdício de recursos. A discriminação ora feita, portanto, baseia-se em um critério subjetivo, qual seja a opinião do associado excluendo. Claramente, a decisão da associação baseou-se em um critério de discriminação gratuito, fortuito, subjetivo e desprovido de objetividade e conexão lógica e racional entre o motivo e a decisão tomada.

O princípio da legalidade, previsto no artigo 5º, II da CF/88, também é desrespeitado, na medida em que o artigo 57 do CC/02 não é observado. Nota-se que determinada norma demanda a existência de uma “justa causa” para que haja a exclusão de um associado, que assegure direito de defesa e de recurso. Veja que, no caso em discussão, não houve nem justa causa, nem direito de defesa (em vinte e quatro horas é impossível estruturar qualquer defesa e produzir as respectivas provas), nem direito a recurso. Vide também a mudança ocorrida nesse dispositivo civilista ocorrida por meio da Lei nº 11.127/2005, que busca justamente delimitar eventual discricionariedade da assembleia geral em casos de exclusão de associados, trazendo, na nova redação, perfeita sintonia desse dispositivo infraconstitucional com os direitos fundamentais previstos na CF/88.

Além disso, claras estão as violações dos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório neste caso, conforme previstos nos incisos LIV e LV do artigo 5º da CF/88. O associado excluendo não teve tempo hábil para estruturar sua defesa, produzir provas a seu favor e não pode sequer recorrer internamente da decisão tomada pela associação.

Tal decisão poderia, ainda, ser também questionada sob o argumento de que ela causou, injustamente, danos materiais e morais ao associado excluendo.

Ademais, outro argumento em favor do sócio excluendo é o de que o princípio constitucional da livre associação (artigo 5º, XVII da CF/88), tema objeto deste artigo, não é absoluto, comportando uma série de limitações pelos próprios “colegas” princípios constitucionais listados no mesmo artigo 5º. Ou seja, não pode se alegar que a autonomia privada que justificou a organização da associação permitir que abusos como os deste caso sejam perpetrado, em razão do desrespeito de diversos dispositivos constitucionais que conformam e limitam, na prática, o exercício daquela prerrogativa privada dos demais associados.

Por fim, outra violação está no desrespeito ao artigo 5º, inciso IV da CF/88, que trata da livre manifestação de pensamento. O associado excluendo, ao “afrontar” a diretoria pela alegação de ineficiência, estava manifestando sua opinião sobre a forma de gestão dessa pessoa jurídica. Trata-se de direito e até de dever dos associados participar, ainda que indiretamente, da gestão de uma pessoa jurídica de direito privado que até pode possuir funções “quase estatais”, já que normalmente exercem atividades sociais e são invariavelmente receptoras de benefícios, inclusive fiscais. Trata-se, portanto, de uma arbitrariedade considerar uma manifestação de pensamento como “justa causa”, sendo verdadeira censura em uma associação que, pelos dados do problema, sequer tem uma conotação religiosa ou ideológica, o que poderia minimizar mas não eliminar o presente argumento.

À guisa de conclusão, é muito importante que se estude a liberdade constitucional de associação com bastante afinco e profundidade, principalmente em razão de sua grande importância histórica e aplicabilidade prática. Ela deve ser ampla e com a menor interferência estatal possível, deixando aos particulares a maior autonomia privada possível para regular seus próprios interesses. Ser livre é fazer escolhas e se associar é uma delas.

No entanto, tal liberdade deve ser espelhada e retratada em todas as normas infraconstitucionais que a contemplam, sob pena de haver uma desarmonia no sistema jurídico, serem consideradas normas inconstitucionais e terem sua validade questionada[10]. Os documentos e decisões de uma associação, qualquer que seja a sua modalidade, devem se pautar nessa ampla liberdade, mas também respeitar os demais princípios constitucionais. Ainda mais nos dias de hoje em que se clama por mais e mais liberdades em um país como o Brasil, a autolimitação de nossas liberdades é algo a ser cultuado por todos e corroborado pelo Estado. Talvez seja a hora de pensarmos mais no efeito coletivo de nossas liberdades do que somente na satisfação pura dos nossos interesses pessoais. A plena liberdade, seja qual for seu desdobramento, é aquela que provêm do equilíbrio entre interesses privados e a ordem social.


[1] Vide BINENBOJM, Gustavo. As associações e o novo Código Civil. Rio de Janeiro: Ano 6, v. 23, p. 207-229, jul./set. 2005. Nesse parecer, o autor analisa a constitucionalidade de uma alteração estatutária em uma associação que, em tese, limitaria a liberdade de associação de seus membros. O autor conclui que soluções intermediárias devem ser pensadas nesse caso, dentre elas o direito de retirada aos associados dissidentes, proteção de direitos mínimos aos associados, adoção de quóruns menores e dispensa de quóruns de deliberação a partir da segunda ou terceira convocações. Para ele, “…a livre conformação dos atos constitutivos da associação, com a definição da lógica interna de formação da vontade e distribuição de competências, é de tal forma conatural à noção de liberdade de associação, que esta não existiria sem aquela…” (p. 228).

[2] Vale destacar a teoria do contrato organização de Paolo Ferro-Luzzi (I contratti associativi. Milão: Giuffrè, 2001), tal como explicada por Calixto Salomão Filho. Para o autor, tal teoria seria a mais apta a explicar o chamado “interesse social”, grande “enigma” daqueles que militam no Direito Societário. Segundo essa teoria, o que caracterizaria um contrato de sociedade é o fato de ele criar uma organização, contendo uma coordenação de atos que buscam estruturar e organizar uma atividade, com o objetivo de solucionar os diversos conflitos internos e externos que essa organização possa ter. SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. 2ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 42-43. Ainda sobre essa teoria, vale citar o pensamento de Rachel Sztajn, segundo a qual “…a organização tipifica, ou deve tipificar, as relações internas entre os sócios e, externamente, afeta as relações dos sócios e da sociedade com terceiros… a atividade prevista no contrato é exercida pelas partes em comum, seja mediante a organização unitária, nas relações internas, seja através de representação unitária do grupo nas relações externas”. SZTAJN, Rachel. Contrato de Sociedade e Formas Societárias. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 39. Ainda sobre a teoria do contrato organização, vide SALOMÃO FILHO, Calixto. A Sociedade Unipessoal. São Paulo: Malheiros, 1995, p; 57-61; e CATAPANI, Márcio Ferro. Os Contratos Associativos in NOVAES FRANÇA, Erasmo Valladão Azevedo (coord.) Direito Societário Contemporâneo I. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 87-103.

[3] Vide TAVARES, André Ramos. Direito Constitucional da Empresa. São Paulo: Gen/Método, 2013. Nessa obra, o autor defende que é muito importante ao mundo empresarial ter essa autonomia privada garantida, para que se possa ter parâmetros e limites de atuação e autorregular seus interesses da forma mais eficiente possível (p. 109-110).

[4] Vide FORGIONI, Paula A. Princípios constitucionais econômicos e princípios constitucionais sociais – a formatação jurídica do mercado brasileiro. Revista do Advogado. São Paulo, n. 117, Ano XXXII, pp. 165-175, out. 2012. A autora correlaciona 4 (quatro) princípios constitucionais que, em conjunto, funcionam como fatores catalisadores do fluxo de relações econômicas em um mercado: (a) livre iniciativa (que garante acesso à arena de trocas); (b) livre concorrência (que garante a disputa pela oportunidade de troca); (c) liberdade de contratar (que garante a disposição de oportunidade de troca); e (d) proteção do consumidor (que garante a manutenção de possibilidades de troca). (p. 173).

[5] Em pesquisa realizada no site do STF (http://www.stf.jus.br), em 03.03.2014, utilizando a expressão combinada “liberdade de associação” foram encontradas somente 36 (trinta e seis) acórdãos, com a seguinte distribuição temática: (a) 21 (vinte e uma) sobre a liberdade sindical prevista no artigo 8º, “caput” da CF/88; (b) 5 (cinco) sobre a vedação de associações para fins ilícitos prevista no artigo 5º, XVII da CF/88; (c) 4 (quatro) sobre a adesão facultativa ao regime de previdência privada, prevista no artigo 202, “caput” da CF/88; (d) 1 (uma) sobre a criação de partidos políticos, prevista no artigo 17, “caput” da CF/88; e (e) demais versando sobre temas relacionados a entidades com fins econômicos.

[6] Em pesquisa realizada no site do STJ (http://www.stj.jus.br), em 03.03.2014, utilizando a expressão combinada “liberdade de expressão”, foram encontradas igualmente 36 (trinta e seis) acórdãos tão somente, sendo 31 (trinta e uma) sobre a liberdade sindical prevista no artigo 8º, “caput” da CF/88. As demais decisões tratavam de situações envolvendo exclusão de cooperado de uma cooperativa, dissolução total e parcial de sociedade, contribuição obrigatória para associação e associação (e contribuição) obrigatória ao ECAD – Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de Direitos Autorais.

[7]Vide teor completo dos respectivos acórdãos pelo site http://www.stf.gov.br/, acesso em: 15/03/2014.

[8] Temática versa sobre uma determinada associação, cujos associados deliberaram a expulsão de um associado que afrontou a diretoria, acusando-a de “ineficiente”. O estatuto da referida associação teria uma cláusula que dispõe que “… proposta a expulsão de qualquer associado por qualquer outro associado, cabe à diretoria decidir sobre essa expulsão, em um prazo de 10 dias, ouvido o associado, que terá prazo de 24 horas para apresentar defesa”. Tal exercício foi objeto do curso de pós-graduação “lato sensu” em Direito Constitucional oferecido pela Escola Superior de Direito Constitucional, cuja análise aproveitamos, com alguns ajustes, para compor este artigo.

[9] Em razão do princípio da maioria e do teor das regras estatutárias em vigor, cria-se, de fato, um poder de fato sobre aquele associado destinatário de uma determinada decisão colegiada, tal como é o caso em tela.

[10] Vide HINORAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes et al O Código Civil de 2002 e a Constituição Federal: 5 anos e 20 anos in MORAES, Alexandre de. (coord.) Os 20 Anos da Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Atlas, 2009, p. 465.

Autores

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    é advogado em São Paulo, LL.M. em Direito Societário e Contratual pela Universidade da Califórnia (EUA), doutor em Direito Comercial pela Universidade de São Paulo, professor e coordenador-geral do Insper Direito e do Insper Instituto de Ensino e Pesquisa, professor dos programas de educação executiva (abertos e fechados) e de MBA do Insper, professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP, professor convidado da Universidade de St. Gallen (Suíça) em cursos voltados à governança corporativa na América Latina e no Brasil (2008 e 2011), membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Empresarial (Thomson Reuters – Revista dos Tribunais).

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