Insegurança jurídica

Teorias têm visões distintas sobre dolo em acidente causado por embriaguez

Autor

  • Fernando Lopes

    é advogado membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito Penal Econômico consultor jurídico do projeto Cyberskies e professor da pós-graduação em Investimentos e Blockchain da EA Banking School.

9 de julho de 2014, 9h12

* Artigo publicado originalmente no Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), edição de maio.

Há diversos casos em que um motorista embriagado, em alta velocidade, provoca a morte de pessoas. Trata-se, infelizmente, de uma realidade brasileira. Em todos esses casos sempre surge a mesma questão: seria um caso de homicídio doloso ou culposo? Atualmente, um desses casos tem mobilizado a opinião pública, pois envolve um ex-deputado que renunciou ao mandato após provocar a morte de duas pessoas.

Ante esse contexto, verifica-se a importância de se ter na doutrina do Direito Penal critérios seguros para determinar a diferença entre o dolo e a culpa. Ocorre que esses critérios aparentemente não existem, sendo fácil encontrar na jurisprudência casos semelhantes que, todavia, foram resolvidos de forma distinta.

Feitas essas considerações, o objetivo deste artigo é o de provocar algumas reflexões, de modo a contribuir para que casos como o do acidente que envolveu o ex-deputado Carli Filho possam, no futuro, ser resolvidos com maior segurança jurídica, o que é uma exigência do princípio da legalidade.

Para tanto, será exposta a diferença entre a concepção psicológica e normativa do dolo, que, a meu entender, é o ponto chave para se compreender o porquê de existir tanta insegurança jurídica nesses casos.

Contudo, antes de passar à breve exposição doutrinária sobre a matéria, é fundamental ter como “background” algumas questões fundamentais.

Questões fundamentais
Nenhuma discussão científica sobre o conceito de dolo e sobre sua diferença em relação à culpa pode prescindir previamente de fornecer uma resposta para as seguintes questões:

1) O dolo é uma intenção que deve realmente existir no psiquismo do sujeito no momento em que pratica uma conduta perigosa, ou bastaria a existência de uma conduta perigosa para afirmar a existência do dolo?

Em outros termos, para afirmar a existência de dolo num caso de um motorista que ao dirigir a 173 km/h causara a morte de duas pessoas seria necessário exigir que ele tivesse ao menos cogitado, no caso concreto, que com sua conduta poderia provocar a morte de alguém, ou a mera conduta perigosa de dirigir a 173 km/h já seria suficiente para a afirmação do dolo?

2) Caso se reconheça que não basta a mera conduta perigosa, qual deveria ser o conteúdo do dolo? Bastaria ao motorista ter conhecimento de que dirigir a 173 km/h é uma conduta perigosa, ou ele precisaria saber isso e querer expor a vida de terceiros ao risco, por meio dessa conduta?

Isso faz diferença, porque numa preferencial, por exemplo, um motorista poderia ter colidido com um veículo que a tivesse invadido com conhecimento e vontade de expor ao risco apenas a sua própria vida.

Possíveis respostas às questões
De um modo geral existem duas teorias que se propõem a responder essas questões. A teoria tradicional, que encontra respaldo no senso comum, é chamada de teoria descritiva, pois entende o dolo como representando um estado intencional irredutivelmente subjetivo, ou seja, cuja existência seria passível de ser verificada empiricamente, como algo produzido pelo cérebro do sujeito.

Ou seja, de acordo com os descritivistas, o dolo é uma intenção que realmente deve existir no psiquismo do sujeito no momento em que pratica uma conduta perigosa.

Por sua vez, contrapondo-se à teoria tradicional existe a teoria normativa do dolo, que contraria o senso comum, na medida em que não considera possível a existência de intenções irredutivelmente subjetivas.

Para contrariar o senso comum, os normativistas encontram suporte em algumas correntes contemporâneas da filosofia da linguagem e, sobretudo, da filosofia da mente,([1]) no que reduzem o dolo a um mero fenômeno da linguagem, compreendendo-o como uma atribuição de significado compartilhada socialmente, e não como um estado psíquico ontológico, e irredutivelmente subjetivo.

As duas principais teorias representativas dessa controvérsia no Direito Penal são o descritivismo axiológico de Welzel e o normativismo extremo de Herzberg.

O conceito de dolo de acordo com Welzel
O esclarecimento da forma como Welzel compreendia o significado do conceito de dolo se deve muito à sua polêmica com Engisch sobre a teoria finalista. Engisch supunha que Welzel considerava que a ação humana seria apenas a ação típica, ou seja, a ação voltada para a realização do tipo. Assim, Engisch pensava que Welzel acreditava que uma enfermeira que injetasse veneno por engano em um paciente não haveria realizado ação alguma.([2])

Welzel, contudo, tratou de recusar a crítica que lhe foi feita, delineando, de um modo mais preciso, como ele entendia o conceito pré-jurídico de ação e sua relação com a tipicidade: “Suspeito que a falta de clareza sobre a relação entre dolo do tipo e vontade finalista de ação é o principal ponto de apoio para a crítica da doutrina da ação finalista. Por isso, para deixar claro: todo dolo do tipo é uma vontade finalista de ação, mas nem toda finalidade é um dolo do tipo”. ([3])

Nesse sentido, Welzel replicou a crítica de Engisch, dizendo que “a enfermeira não realiza uma ação finalista de matar, mas sim uma ação finalista de injetar”. ([4])

Em síntese, Welzel diferenciava a intenção final “finalität”, conceito pré-jurídico, do dolo “vorsats” que se apresenta no Direito Penal como uma intenção de praticar a conduta descrita pelo tipo, ou seja, como “tatbestandsvorsatz”.

Em outras palavras, a enfermeira que injeta veneno num paciente pensando que está injetando um remédio possui a intenção “finalität” de injetar, enquanto aquela que injeta veneno com o fim de realizar a conduta descrita no art. 121 do CP atua com dolo “tatbestandvorsats”, pois utiliza sua conduta como um meio de matar alguém.

Logo, resta claro que para Welzel só se pode falar na existência de dolo, se o agente, no momento da prática da conduta perigosa, teve realmente a intenção de realizar a descrição contida no tipo, in casu, matar alguém, por meio de sua conduta.

Essa concepção permanece, em essência, no caso do dolo eventual, pois mesmo nesse caso a discussão ainda está centrada no núcleo do tipo, ou seja, deve o agente ter conhecimento e vontade de praticar a conduta perigosa, mesmo sabendo que sua prática poderá realizar os pressupostos objetivos do tipo.([5])

Porém, como ficaria a situação num caso em que há injeção de veneno, em quantidade suficiente para matar, e o paciente morre, porém descobre-se que a vontade da enfermeira era apenas a de causar lesões leves no paciente?

Poderia essa enfermeira ser condenada por homicídio, em vez de lesão corporal?

De acordo com o finalismo não, porque teria lhe faltado a vontade de realizar os pressupostos objetivos do tipo de homicídio. Todavia, o juízo de tipicidade poderia ser realizado de forma diversa, caso fosse adotado o normativismo de Herzberg e Puppe.

O conceito de dolo de acordo com os normativistas
Para normativistas como Herzberg e Puppe pouco importa se a enfermeira pretendeu lesionar o paciente em vez de matá-lo, pois o que importa é que ela conhecia um perigo que deveria ter levado a sério como um meio de matar.

Porém, o que é ainda mais importante para o que se discute neste trabalho é que os critérios para saber se ela levou ou não a sério esse perigo, ou seja, se realmente pretendia lesionar em vez de matar, são objetivos: “não interessa se o autor levou a sério um perigo conhecido, o que interessa é se ele conhece um perigo que deveria ter levado a sério”. E os critérios com base nos quais se deve valorar se o perigo é ou não levado a sério não são entregues à disposição do autor, mas sim determinados normativamente, como critérios objetivos. ([6])

Portanto, enquanto o que importa para os descritivistas é saber se o autor realmente quis o resultado típico, ou quis praticar a ação típica,([7]) o que importa para os normativistas é saber se o autor praticou uma conduta perigosa que, segundo critérios objetivos, ou após a adoção de uma postura intencional (intentional stance), nos termos de Dennett, permitiria atribuir a existência desse querer.

O próprio Herzberg propõe um desses critérios para saber se o agente atuou com dolo ou culpa. Se causou um perigo desprotegido atuou com dolo, do contrário, com culpa: “Herzberg denomina não coberto ou assegurado um perigo quando durante ou depois da ação do sujeito há de intervir a sorte ou causalidade, unicamente, ou em grande parte para que o tipo não se realize”.([8])

Essas são, em apertada síntese, as duas principais posições no que tange ao significado do conceito de dolo.

O caso Carli Filho
Dificilmente quem dirige em alta velocidade possui a vontade de matar alguém. Em regra, mesmo os motoristas mais negligentes sempre acreditam que possuem total controle sobre o veículo. Os homens, em geral, consideram-se exímios motoristas, e a cultura machista brasileira sempre disseminou que “dirigir devagar é coisa de mulher”.

Por outro lado, é irrefutável que apenas um motorista suicida poderia dirigir a 173/km/h, caso ao menos cogitasse a possibilidade da existência de um acidente. Tanto que, no acidente que envolveu o ex-deputado Carli Filho, este teve graves lesões e escapou da morte por sorte.

Nesse sentido, tenho dúvidas que alguém possa sustentar honestamente a existência de dolo, ainda que eventual, num caso como o desse acidente, se efetivamente respeitar e seguir os pressupostos descritivos da teoria finalista.

No entanto, parece igualmente irrefutável que, de acordo com a teoria normativista de Herzberg, o ex-deputado criou um perigo desprotegido, idôneo a provocar a morte de pessoas, como de fato provocou.

Portanto, a questão central que precisa ser resolvida pela doutrina e, sobretudo, pela jurisprudência, a fim de que casos como o que envolveu o ex-deputado Carli Filho possam ser resolvidos no futuro com segurança jurídica, é se a vontade deve ser interpretada de forma descritiva ou normativa.

De igual modo, é preciso saber se o Código Penal brasileiro consagra alguma dessas duas teorias, ou nenhuma delas,([9]) o que neste último caso significaria que a condenação de alguém por homicídio doloso no Brasil, em última instância, não depende da lei, mas das contingências sociais, da preferência doutrinária do julgador, da posição social do réu, da irresignação das vítimas, do clamor público, entre outros fatores aleatórios.

Os limites deste trabalho não dão margem a discussões mais aprofundadas sobre as críticas existentes na doutrina jurídica a respeito das teorias descritivas e normativas do dolo, bem como não permitem uma exposição das críticas filosóficas relacionadas a seus pressupostos epistemológicos. De igual modo, não permitem discutir acerca da legalidade de uma ou outra teoria em relação ao Código Penal brasileiro, que teve em 1984 sua última reforma. Enfim, não permitem expressar aspectos políticos existentes na aceitabilidade de uma ou outra teoria. Tudo isso deverá ser feito em outra oportunidade, pois todas essas discussões não podem ser reduzidas a algumas poucas páginas.

Porém, é possível concluir no sentido de que um caso como o do acidente que envolveu o ex-deputado Carli Filho, bem como tantos outros semelhantes que lamentavelmente fazem parte da realidade brasileira, não podem ser decididos com base nas contingências sociais, mas a partir de fundamentos epistemológicos claros e inequívocos, que devem encontrar ainda amparo legal.

Verificou-se que, entre esses fundamentos epistemológicos, o principal é a definição do aspecto normativo ou descritivo do dolo. Essa questão é inclusive mais importante que a clássica porfia entre a chamada “teoria da vontade” e a “teoria da representação”, tão discutida nos manuais brasileiros.

Com efeito, de nada adianta adotar a teoria da vontade, se esta for interpretada de acordo com as premissas filosóficas normativistas, pois estas podem reduzi-la a efetivamente nada, ou seja, podem presumi-la onde não existe.

Isso, por óbvio, caso se aceite que a vontade não é meramente uma atribuição de sentido, mas um estado mental cuja ontologia é irredutivelmente subjetiva, tal como pregam os finalistas.


([1]Daniel Dennett, por exemplo, entende que, a rigor, não existem intenções irredutivelmente subjetivas como a “vontade de matar alguém”. Para Dennett as intenções são meras atribuições de significado, que resultam da adoção de uma postura intencional (intentional stance) por parte do intérprete: “A Postura intencional é a estratégia de interpretar o comportamento de uma entidade (pessoa, animal, artefato, qualquer coisa) tratando-a como se fosse um agente racional que governa suas escolhas de ação por uma consideração de suas crenças e desejos” (Dennett, Daniel Clemente. 1997. Tipos de mentes. Rumo a uma compreensão da consciência. Rio de Janeiro: Rocco, p. 32). No mesmo sentido se manifesta Paulo Busato, mas com base em outros pressupostos filosóficos: “É necessário admitir que o dolo se compreende e não se reconhece a partir de uma realidade ontológica. O dolo não só é normativo como ainda vinculado a um sentido que se obtém através de um processo de comunicação” (grifo nosso) (Busato, Paulo César. O dolo e o processo de comunicação. Lumiar: Revista de Ciências Jurídica. Disponível em:

([2]) Welzel. Hans. Estudios de filosofia del derecho y derecho penal. Buenos Aires: Euro Editores, 2004. p. 5.

([3]) Idem, ibidem, p. 22.

([4]) Idem.

([5]) Roxin, que pouco alterou a concepção de Welzel quanto ao tipo subjetivo, ao falar sobre o dolo eventual, bem observou que, em vez de se conceituar este como um dolo condicionado “bedingter vorsatz”, “seria mais correto falar de um dolo sobre a base de fatos de cuja insegurança se está consciente” (Roxin, Claus. Derecho penal: parte general. Tradução e notas Miguel Diaz y Garcia Conledo, Javier de Vicente Remesal. Madri: Civitas, 1997. t. I, p. 426.

([6]) Puppe, Ingeborg. A distinção entre dolo e culpa. Tradução, introdução e notas Luís Greco. Barueri: Manole, 2004. p. 79.

([7]) Não é desnecessário observar a interessante posição de Wolfgang Frisch, no sentido de que o objeto do dolo não é o resultado típico, mas a conduta típica, considerando que ninguém pode conhecer o que sequer aconteceu. Roxin, Claus. Derecho penal... cit., p. 439.

([8]) Idem, ibidem, p. 443.

([9]) Luis Greco, por exemplo, acredita que o Código Penal brasileiro sequer decidiu a questão no que se refere a exigir ou não a vontade como integrante do dolo. E para isso cita Schröder, que malgrado seja um defensor da teoria da possibilidade (teoria cognitiva), utilizava a expressão assumir o risco “Inkaufnahme des Risikos”, presente no Código Penal brasileiro, para caracterizar o dolo. Puppe, Ingeborg. A distinção… cit., p. 17. Se essa afirmação de Greco é correta, então estaríamos realmente muito longe da questão objeto deste artigo, que, na prática, é o que definirá a responsabilidade penal.

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